ÍNDICE
1. Chamada universal à santidade, no meio do mundo, em todas os âmbitos sociais.
3. Formação na doutrina social da Igreja.
4. Sentido de responsabilidade.
5. Amor pela liberdade, pluralismo.
7. Espírito de serviço. Governar é servir.
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1. Chamada universal à santidade, no meio do mundo, em todos os âmbitos sociais.
A mensagem que São Josemaria recebeu de Deus em 2 de outubro de 1928 se concentrava na chamada à santidade no meio do mundo através do trabalho profissional e das circunstâncias habituais do cristão. Todos os cristãos são chamados à santidade em virtude do batismo, e para a imensa maioria dos homens tender a ela não significa “sair do seu lugar”. O mundo – a vida corrente, com os seus âmbitos característicos do trabalho profissional, a família e os deveres de estado na sociedade civil – é o habitat onde o cristão se identifica com Cristo. A santificação da vida cotidiana exige o auxílio da graça e da relação pessoal com Deus. Ao mesmo tempo, a própria vida espiritual necessariamente envolve e se refere às circunstâncias normais da existência em meio ao mundo.
O Senhor espera que nos santifiquemos e façamos apostolado em nossa família, no nosso local de trabalho, em nosso grupo de amigos, nas iniciativas sociais em que estamos envolvidos, na nossa cidade, região e país. Sempre com uma visão universal, católica, que nos faz ver com os olhos da fé que a influência que podemos ter no nosso ambiente pode chegar aos confins do mundo. Mas é preciso começar pelo que temos ao alcance da mão. Se não aproveitarmos as nossas circunstâncias imediatas, cairíamos em visões imaginárias que impediriam toda a fecundidade apostólica.
Ponhamos um exemplo literário. Em “Casa Soturna”, um dos melhores romances de Charles Dickens, há uma personagem grotesca: Mrs. Jellyby. Esta senhora representa aquelas pessoas que estão obcecadas por ajudar a todo o mundo – quanto mais longe das suas circunstâncias vitais estiver esse mundo, melhor – mas se esquecem de que há pessoas necessitadas junto a si, muitas vezes na casa, na sua vizinhança ou em sua própria cidade.
Mrs. Jellyby dedica todas as horas do dia a escrever cartas, a respondê-las, a organizar reuniões com o fim de ajudar uma missão em África: Borriobula-Gha. É mãe de família numerosa, mas os seus filhos vivem no meio da desordem e da sujeira. Ninguém se ocupa deles, e quando reclamam a atenção da sua mãe, esta repreende-os por “não se interessarem pelos grandes problemas do mundo”. No fundo, segundo Mrs. Jellyby, os seus filhos são uns egoístas. Seu marido também é vítima da preocupação da esposa com a missão africana. Ele vive isolado, em meio a problemas financeiros terríveis, sem ninguém que se preocupe por ele. Mrs. Jellyby desinteressa-se dos problemas familiares, porque a sua preocupação reside nos pobres africanos que têm tantas necessidades materiais e espirituais. Preocupação, por outro lado, ingênua, pois dedica-se a tecer casacos de lã, que seriam de pouca utilidade no calor tropical da África[1].
Na realidade, a egoísta é ela: o seu zelo pela África é uma fuga dos problemas e necessidades comuns da vida cotidiana: preparar a comida, limpar a casa, manter a ordem no meio de uma família numerosa, cuidar de um filho doente, consolar o que está triste, animar a filha que tem dificuldades sentimentais, servir de apoio ao seu marido nos momentos de crise econômica, melhorar a convivência com os vizinhos etc.
O Senhor nos chama a santificar a vida diária, incluindo todos os aspectos da vida social, com um saudável realismo sobrenatural. Queremos mudar o mundo, mas precisamos começar por mudar o nosso próprio coração e o ambiente que nos rodeia. Para esta obra de santificação há duas condições necessárias: que mostremos coerência nos nossos atos com a fé que professamos, e que nos formemos suficientemente para nos regermos pelos princípios do Evangelho, que tanta luz lançam sobre os caminhos para alcançar o bem comum da sociedade. Passemos a analisar estas duas condições.
2. Unidade de vida
Provavelmente já vimos – na nossa vida ou na vida dos nossos parentes, amigos ou vizinhos – incoerências entre a moral natural ou a doutrina cristã e as atuações na vida social de muitos católicos. Pessoas que não respeitam as leis de trânsito, que mentem na declaração do imposto de renda, que repetem calúnias infundadas ou que simplesmente tratam com desprezo aqueles que ocupam um lugar inferior na escala social. Tudo isto representa um obstáculo evidente para a busca do bem comum com sentido cristão.
Há muitos anos, São Josemaria escrevia: “É frequente, de fato, mesmo entre católicos que parecem responsáveis e piedosos, o erro de pensar que só estão obrigados a cumprir os seus deveres familiares e religiosos, e sequer querem ouvir falar de deveres cívicos. Não se trata de egoísmo: é simplesmente falta de formação, porque ninguém lhes disse nunca claramente que a virtude da piedade – parte da virtude cardeal da justiça – e o sentido da solidariedade cristã se concretizam também neste estar presentes, neste conhecer e contribuir para resolver os problemas que interessam a toda a comunidade”[2].
A chamada à santidade no meio do mundo traz, como uma das suas consequências mais importantes, a encarnação do que São Josemaria chamava “unidade de vida”. As pessoas que não atuam de modo coerente com a sua fé poderiam ser descritas como homens ou mulheres com dupla personalidade ou, utilizando uma expressão muito citada nos Evangelhos, pessoas com duplicidade e engano. Conclui São Josemaria: “É, pois, necessário imitar a Jesus Cristo para dá-Lo a conhecer com a nossa vida. Sabemos que Cristo se fez homem a fim de introduzir todos os homens na vida divina, para que – unindo-nos a Ele – vivêssemos individual e socialmente a vida de Deus”. Note-se que se fala de viver “socialmente” a vida de Deus[3].
3. Formação na doutrina social da Igreja
Acabamos de ver como São Josemaria afirmava que a ignorância é um dos fatores que explicam a falta de compromisso social dos católicos. Juntamente com a unidade de vida, outra implicação da chamada à santidade no meio das relações sociais é o conhecimento da doutrina social da Igreja. Citemos textualmente o santo aragonês: “Direi a vocês, a este respeito, qual é o meu grande desejo: Gostaria que, no catecismo da doutrina cristã para crianças, se ensinasse claramente quais são esses pontos firmes, nos quais não se pode ceder, ao agir de uma forma ou de outra, na vida pública; e que, ao mesmo tempo, se afirmasse o dever de agir, e não de abster-se, de prestar a própria colaboração para servir com lealdade e com liberdade pessoal, ao bem comum”[4]. Graças a Deus, isso já é uma realidade no Catecismo da Igreja Católica e no Compêndio da Doutrina Social da Igreja.
O Papa Francisco também faz eco a esta mesma preocupação. Em sua encíclica Fratelli tutti expressa sua tristeza pela confusão que muitos cristãos têm em questões sociais, como os que apoiam nacionalismos fechados, xenofobias e desprezo pelas pessoas diferentes. O remédio é a formação: “A fé, com o humanismo que inspira, deve manter vivo um sentido crítico perante estas tendências e ajudar a reagir rapidamente quando começam a insinuar-se. Para isso, é importante que a catequese e a pregação incluam, de forma mais direta e clara, o sentido social da existência, a dimensão fraterna da espiritualidade, a convicção sobre a dignidade inalienável de cada pessoa e as motivações para amar e acolher a todos”[5].
Quem deseja impregnar as estruturas terrenas com o espírito de Cristo deve necessariamente se formar para não errar o caminho. O Evangelho lança uma luz intensa para compreender o projeto de Deus sobre a organização social, a família, a economia, a cultura. Bento XVI falava com frequência dos “princípios não negociáveis” que o cristão coerente deve defender para levar este mundo o mais próximo possível do plano de Deus para ele. Mas se há princípios “não negociáveis”, também há muitas coisas que são negociáveis, objeto de acordo, de diálogo, de busca de consenso etc. Distinguir o que está essencialmente ligado à fé do que está aberto à opinião é fundamental para contribuir para a construção de uma sociedade cada vez mais alinhada com os planos de Deus. E para distinguir corretamente é preciso estar bem formado.
São Josemaria não pretendia que todos os cidadãos fossem profissionais da política ou das ciências sociais, mas incentivava que todos tivessem “um mínimo de conhecimento dos aspectos concretos que adquire o bem comum da sociedade, em que cada um vive, em circunstâncias históricas determinadas; e também se pode exigir um mínimo de compreensão da técnica – das possibilidades reais, limitadas – da administração pública e do governo civil, porque sem essa compreensão não pode haver crítica serena e construtiva nem opiniões sensatas”[6].
Na Itália há um ditado popular que diz o seguinte: Piove. Governo ladro! (Chove. O Governo é ladrão!). A crítica fácil, o protesto gratuito, as reivindicações exageradas, tão comuns na vida política, na opinião pública e nas redes sociais, não contribuem em nada para a busca do bem comum. Seguir o conselho de São Josemaria de nos formarmos bem e de tentar entender com empatia o mundo que nos circunda criaria um ambiente de paz, de justiça e de compreensão que ajudaria ao bem social da comunidade.
4. Sentido de responsabilidade
No Evangelho, o Senhor faz vários apelos aos seus discípulos para que tenham consciência de sua responsabilidade pelo mundo. O cristão deve ser sal e luz, fermento na massa. A parábola dos talentos, na qual o Senhor nos pede para fazer frutificar nossas habilidades a serviço dos nossos irmãos, está entre as mais comentadas pela tradição da Igreja, pois é sempre um alerta para evitar a passividade e a indolência. Lemos essa parábola no capítulo 25 de São Mateus, onde também se encontra a descrição do Juízo Universal: o Senhor pedirá contas rigorosas de como cuidamos dos nossos próximos, especialmente dos mais necessitados.
A parábola do bom samaritano é outro alerta para a nossa responsabilidade para com todos. O Papa Francisco comenta que “esta parábola é um ícone iluminador, capaz de manifestar a opção fundamental que precisamos de tomar para reconstruir este mundo que nos está a peito. Diante de tanta dor, à vista de tantas feridas, a única via de saída é ser como o bom samaritano. Qualquer outra opção deixa-nos ou com os salteadores ou com os que passam ao largo, sem se compadecer com o sofrimento do ferido na estrada. A parábola mostra-nos as iniciativas com que se pode refazer uma comunidade a partir de homens e mulheres que assumem como própria a fragilidade dos outros, não deixam constituir-se uma sociedade de exclusão, mas fazem-se próximos, levantam e reabilitam o caído, para que o bem seja comum. Ao mesmo tempo, a parábola adverte-nos sobre certas atitudes de pessoas que só olham para si mesmas e não atendem às exigências ineludíveis da realidade humana”[7].
Unidade de vida e formação na doutrina – sempre com base em uma vida espiritual sincera – fortalecerão nosso senso de responsabilidade social. Precisamos deixar de lado a passividade, a comodidade, e carregar sobre nossos ombros este mundo nosso, tão cheio de necessidades, de injustiças, de sofrimentos. “O amor a todos os homens deve levar vocês a enfrentar os problemas temporais com valentia, segundo a sua consciência. Não tenham medo do sacrifício, nem de assumir cargas pesadas. Nenhum acontecimento humano pode ser indiferente para vocês, antes pelo contrário, todos devem ter oportunidade para fazer bem às almas e facilitar-lhes o caminho para Deus”[8].
A principal manifestação do senso de responsabilidade social está no cumprimento de nossas obrigações de estado: trabalhar bem, com toda a perfeição de que formos capazes, para prestar o serviço que nossos concidadãos esperam de nós em justiça; criar um ambiente familiar adequado para que os filhos possam crescer nas virtudes, a fim de que sejam futuros cidadãos responsáveis; respeitar as leis e as ordens jurídicas válidas para que a convivência seja ordenada e pacífica. É aí que o Senhor nos espera, e assim poderemos contribuir eficazmente para o bem comum. Mons. Fernando Ocáriz referia-se ao caráter transformador do trabalho: “O trabalho santificado é sempre uma alavanca para transformar o mundo, e o meio habitual pelo qual devem ser produzidas as mudanças que dignificam a vida das pessoas, para que a caridade e a justiça penetrem verdadeiramente em todas as relações. O trabalho assim realizado pode contribuir para purificar as estruturas de pecado, convertendo-as em estruturas onde o desenvolvimento humano integral seja uma possibilidade real”[9].
5. Amor à liberdade, pluralismo
O bem comum exige criar as circunstâncias para que cada pessoa possa alcançar sua plenitude na vida pessoal e na relação com os outros. Para isso, é necessário garantir amplos espaços de liberdade. Não é este o momento para nos determos em todos os aspectos da liberdade: apenas destacamos que a plenitude da vida humana é o Amor – com maiúscula, que se identifica com Deus –, e sem liberdade não poderemos amar.
Em muitas sociedades contemporâneas, a liberdade sofre uma deterioração preocupante. Ao impor o que supostamente é “o correto” a partir de uma perspectiva fechada ao espírito, essa liberdade fica limitada, e muitas pessoas caem em uma espiral de medo e silêncio para não ficar fora de jogo, como tem acontecido com a chamada cultura do cancelamento, denunciada pelos reitores de algumas das universidades mais destacadas dos Estados Unidos. Em algumas regiões, são impostas ditaduras de vários tipos, impregnadas de ideologias totalitárias, que impedem a expressão de pensamentos que não coincidam com a doutrina oficial, sob pena de prisão. Mais grave ainda são as tentativas de negar a liberdade religiosa aos cidadãos, exercendo uma perseguição sistemática àqueles que não compartilham o único credo oficial de uma sociedade baseada no fundamentalismo. Não se trata apenas do fundamentalismo religioso: o laicismo também chega a ser totalitário quando impede as manifestações públicas de uma fé religiosa.
São Josemaria gostava do ar puro e da água clara. Onde a liberdade é negada, o ambiente social fica cheio de escuridões, e a água que deveria correr livremente para saciar a sede dos cidadãos permanece estagnada e apodrece. Por isso, uma das características mais marcantes de seus ensinamentos – e não apenas na dimensão social – era precisamente seu amor à liberdade. Ele afirmava com força que há um âmbito libérrimo na pessoa humana em que apenas ela e Deus podem entrar, e que sempre deve ser respeitado: a intimidade das consciências. O respeito irrestrito pelo santuário íntimo das consciências o levava a defender a liberdade em matéria religiosa. Mantinha relações de amizade autêntica com pessoas de todas as crenças ou sem crença alguma e estava disposto a dar a vida para defender a liberdade das consciências delas. Travou uma “batalha” filial com a Santa Sé para permitir que o Opus Dei pudesse ter cooperadores não católicos, e até mesmo não cristãos. Ficou repleto de alegria com a declaração sobre a liberdade religiosa, Dignitatis humanae, do Concílio Vaticano II. Parafraseando a declaração do Magistério, afirmava: “Eu defendo com todas as minhas forças a liberdade das consciências, que denota não ser lícito a ninguém impedir que a criatura preste culto a Deus. É preciso respeitar as legítimas ânsias de verdade; o homem tem obrigação grave de procurar o Senhor, de conhecê-lo e adorá-lo, mas ninguém na terra deve permitir-se impor ao próximo a prática de uma fé que este não possui; assim como ninguém pode arrogar-se o direito de maltratar quem a recebeu de Deus”[10].
Junto à liberdade religiosa, São Josemaria defendia a liberdade de todos os cristãos para defender suas opiniões em assuntos que Deus deixou ao livre arbítrio dos homens. Fomentava um clima aberto, em que cada um pudesse simplesmente se expressar como era, e em que as opiniões dos outros eram respeitadas. Detestava a tirania, “porque é contrária à dignidade da pessoa humana”[11], e manifestava um grande respeito pelo pluralismo em questões opináveis, fossem elas políticas, sociais, econômicas, culturais ou esportivas: em suma, no vasto mundo do não dogmático. Lemos em Surco: “Que coisa triste é ter uma mentalidade cesarista, e não compreender a liberdade dos demais cidadãos, nas coisas que Deus deixou ao juízo dos homens”[12].
Em um artigo publicado no jornal ABC de Madri em 2 de novembro de 1969, São Josemaria expressava-se da seguinte forma: “Deus, ao criar-nos, correu o risco e a aventura da nossa liberdade. Quis uma história que fosse uma história verdadeira, feita de autênticas decisões, e não uma ficção nem um jogo. Cada homem deve cultivar a experiência de sua autonomia pessoal, com tudo o que isso supõe de acaso, de tentativa e, em algumas ocasiões, de incerteza. Não esqueçamos que Deus, que nos dá a segurança da fé, não nos revelou o sentido de todos os acontecimentos humanos. Juntamente com as coisas que, para o cristão, são totalmente claras e certas, há outras — muitíssimas — em que só cabe uma opinião: isto é, um certo conhecimento do que pode ser verdadeiro e oportuno, mas que não pode ser afirmado de um modo incontrovertível. Porque não só é possível que eu me engane como, mesmo tendo eu razão, é possível que os demais também a tenham. Um objeto que parece côncavo a alguém, parecerá convexo aos que estiverem situados numa perspectiva diferente”[13].
A responsabilidade trazia consigo a obrigação moral de intervir na vida da sociedade, deixando nela uma marca evangélica, sempre com respeito às opções temporais livres. “Interpretem, portanto, minhas palavras, como elas são realmente: um chamado para que exerçam – diariamente!, não apenas em situações de emergência – os direitos que têm; e para que cumpram nobremente as obrigações que têm como cidadãos – na vida pública, na vida econômica, na vida universitária, na vida profissional – assumindo com valentia todas as consequências das suas livres decisões, e arcando com o peso da correspondente independência pessoal. E essa cristã mentalidade laical permitirá fugir de toda e qualquer intolerância, de todo fanatismo; vou dizê-lo de um modo positivo: fará que todos convivam em paz com todos os concidadãos, e fomentará também a convivência nas diversas ordens da vida social”[14].
A liberdade em temas opináveis é parte essencial do espírito secular e laical do Fundador do Opus Dei. Ele abominava a mentalidade de “partido único” e reivindicava para os cristãos a liberdade de opinião e de decidir responsavelmente em suas atividades profissionais e sociais: “Não há dogmas nas coisas temporais. Não está de acordo com a dignidade dos homens o intento de fixar verdades absolutas em questões sobre as quais, necessariamente, cada um tem de contemplar as coisas do seu ponto de vista, segundo os seus interesses particulares, as suas preferências culturais e a sua própria experiência peculiar. Pretender impor dogmas no âmbito temporal conduz, inevitavelmente, a forçar as consciências das pessoas, a não respeitar o próximo”[15].
É preciso acrescentar que, em nosso autor, inseparavelmente ligada a esta consciência da liberdade do cristão em questões temporais, estava a obrigação de formar a consciência e a afirmação do direito-dever da hierarquia eclesiástica de pronunciar juízos morais sobre as realidades temporais quando exigido pela fé e moral cristãs[16].
6. Capacidade de diálogo
O pluralismo social impulsionado por São Josemaria implica que se instaure na sociedade uma “cultura do diálogo”. Foi precisamente ao diálogo que São Paulo VI dedicou sua primeira encíclica, Ecclesiam suam. O fundador do Opus Dei incentivava a não discutir, mas a trocar opiniões, com caridade e respeito pela pessoa cuja opinião difere da nossa. O diálogo requer humildade: não somos donos da verdade e podemos – e devemos – aprender com os outros; requer caridade: nunca poderemos maltratar uma pessoa, mesmo que tenhamos certeza de que ela está errada; requer compreensão, ou seja, colocar-nos nas circunstâncias dos outros. Em resumo, no diálogo exercitamos muitas virtudes cristãs que tornam a sociedade em que vivemos mais humana.
Para que o diálogo seja real, é fundamental permanecer fiel à própria identidade. A grande maioria das questões é discutível. Por sua vez, há um núcleo de verdades – tanto de fé quanto de ordem natural – das quais uma pessoa de consciência reta não pode ceder: trata-se da “santa intransigência”, expressão usada por São Josemaria, ou dos “princípios inegociáveis” de Bento XVI. Um ponto de Sulco citado anteriormente termina assim: “Somente na fé e na moral é que há um critério indiscutível: o da nossa Mãe Igreja”[17]. Defender com elegância esses pontos irrenunciáveis, não significa ser fundamentalista: é ser coerente com nossa consciência humana e cristã.
Em uma carta enviada a seus filhos em 21 de janeiro de 1966, São Josemaria falava longamente sobre o diálogo que todo cristão deve manter na sociedade, para torná-la mais humana e, em consequência, mais cristã. Vamos reproduzir alguns trechos desta carta, pois acredito que merece ser conhecida e, acima de tudo, aplicada em um ambiente de tensão como o atual no debate público, tanto na política quanto na cultura e religião.
Como sempre, o modelo é a vida de Jesus, que manteve um diálogo contínuo com todos os tipos de pessoas. “Com a luz sempre nova da caridade, com um amor generoso a Deus e ao próximo, renovaremos, à vista do exemplo que o Mestre nos deu, nossos desejos de compreender, de desculpar, de não nos sentirmos inimigos de ninguém”[18]. Nossa atitude deve ser a de semeadores de paz e alegria no mundo, amando e defendendo a liberdade das almas, conquistada e respeitada pelo próprio Senhor.
São Josemaria considerava uma finalidade própria do Opus Dei – mas podemos aplicá-la a todos os cristãos – “espalhar pelo mundo a mensagem de amor e paz que o Senhor nos legou; para convidar todos os homens ao respeito pelos direitos da pessoa”[19].
O fundador descreve um panorama pouco animador da época em que viveu, que é muito semelhante à nossa: fala-se muito de paz, mas a paz brilha por sua ausência; fala-se de democracia e igualdade, mas existem castas fechadas e impenetráveis; clama-se por compreensão, mas não se vive assim, nem mesmo entre os cristãos. “São momentos em que os fanáticos e intransigentes – incapazes de admitir razões alheias – se defendem, acusando de violentos e agressivos aqueles que são suas vítimas. O Senhor nos chamou, enfim, quando se ouve falar muito de unidade, e talvez seja difícil conceber que possa haver maior desunião, não somente entre os homens em geral, mas sim entre os próprios católicos”[20].
São Josemaria aborda um tema central na atuação dos cristãos na praça pública: fidelidade à doutrina – que chama, como vimos, de “santa intransigência” – e acolhimento e respeito por todas as pessoas, mesmo as que estão no erro: é a “santa transigência”. E esclarece: “É preciso, no entanto, que vocês ensinem muitas pessoas a praticarem esta doutrina, porque não é difícil encontrar quem confunda a intransigência com a intemperança, e a transigência com a renúncia a direitos ou verdades que não podemos barganhar”[21].
Os cristãos não podem transigir com as verdades da fé. O depósito da Revelação não nos pertence. Se fizéssemos as mudanças na doutrina que muitos estão pretendem fazer, com a boa intenção de fazer com que todos concordem, acabaríamos com uma espécie de religião vaga e sentimental, que já não seria sal e luz. O cristão deve defender o que a Igreja ensina em matéria de fé e costumes “com o exemplo, com a palavra, com a escrita, com todos os meios nobres que estiverem ao nosso alcance”[22].
A fidelidade à verdade não pode nos levar ao desejo de aniquilar quem está errado, nem nos deixar levar pela ira ou a cair no fanatismo. Não se trata de ser um 'martelo de hereges'. É preciso distinguir entre o erro e a pessoa errada. Mas no próprio erro é preciso resgatar a parte da verdade que leva consigo. “As más ideias geralmente não são totalmente más; elas têm, ordinariamente, uma parte de bem, porque senão, ninguém as seguiria. Elas quase sempre têm uma centelha de verdade, que é sua bandeira de atração; mas essa parte da verdade não pertence a elas: está tomada de Cristo, da Igreja; e, portanto, são essas ideias boas – que estão misturadas com o erro – as que virão atrás dos cristãos, que são os que possuem a verdade plena: não devemos ser nós os que seguiremos atrás delas”[23].
A “santa transigência” nos leva a conviver com todos, a dialogar com todos. “Devemos viver, em uma palavra, numa conversa contínua com nossos companheiros, com nossos amigos, com todas as almas que se aproximam de nós. Esta é a santa transigência. Certamente poderíamos chamá-la de tolerância, mas tolerar me parece pouco, porque não se trata apenas de admitir, como um mal menor e inevitável, que os outros pensem de maneira diferente ou estejam no erro. Trata-se também de ceder, de transigir em tudo o que é nosso, no opinável, naquilo que – não tocando o essencial – poderia ser motivo de discrepância. Trata-se, enfim, de limar asperezas, onde for possível, para criar uma plataforma de entendimento, que facilite a luz aos equivocados”[24].
Se faltasse essa abertura, prestaríamos um mau serviço à verdade, como aqueles que “transformam sua vida em uma cruzada perpétua, em uma constante defesa da fé, mas às vezes se obstinam, esquecendo que a caridade e a prudência deveriam governar esses bons desejos, e se tornam fanáticos. Apesar de sua intenção correta, o grande serviço que querem prestar à verdade se desnaturaliza, e acabam fazendo mais mal do que bem, defendendo talvez sua opinião, seu amor-próprio, sua teimosia de ideias. Como Dom Quixote, veem gigantes onde só há moinhos de vento; tornam-se pessoas mal-humoradas, amargas, de zelo amargo, de modos bruscos, que nunca encontram nada de bom, que tudo veem negro, que têm medo da legítima liberdade dos homens, que não sabem sorrir”[25].
Longe dessa atitude, a conduta do cristão no debate público é presidida pela caridade, que tem, entre outras características, a gentileza, a boa educação, o amor à liberdade alheia, a cordialidade, a simpatia. Por outro lado, não podemos nos limitar a falar ou a dar um bom exemplo: “é necessário também que escutem, que estejam dispostos a iniciar um diálogo franco e cordial com as almas que desejam aproximar de Deus”[26].
São Josemaria incentiva a compreender a todos, a caminhar de braço dado com todos, a trabalhar em conjunto mesmo com pessoas que têm uma sintonia ideológica diferente. Para aproximar essas pessoas da verdade, é necessário fortalecer nossa formação doutrinal e regar tudo com a caridade de Cristo. “Contra quem estamos? Contra ninguém. Não posso amar o diabo, mas a todos que não sejam o diabo – por piores que sejam ou pareçam – eu os quero bem. Não me sinto nem nunca me senti contrário a ninguém; rejeito as ideias que vão contra a fé ou contra a moral de Jesus Cristo, mas ao mesmo tempo tenho o dever de acolher, com a caridade de Cristo, todos os que as professem”[27].
Em 1974, São Josemaria realizou uma visita pastoral por alguns países da América do Sul. Na Argentina, havia um ambiente tenso, de desunião nacional e de violência fratricida. Suas palavras em voz alta ressoaram nos corações de milhares de argentinos que estavam sofrendo essa situação, e podem muito bem ser aplicadas a muitas circunstâncias da atualidade: “Que semeiem a paz e a alegria em todos os lugares. Que não digam nenhuma palavra desagradável para ninguém; que vocês saibam andar de braços dados com as pessoas que não pensam como vocês; que nunca maltratem a ninguém; que sejam irmãos de todas as criaturas: semeadores de paz e de alegria”[28].
7. Espírito de serviço. Governar é servir.
A palavra serviço não é muito popular. Pelo contrário, a palavra poder parece algo desejável. Este fato talvez evidencie que vivemos em um mundo secularizado, que esqueceu que reinar é servir. Pelo menos essa foi sempre a visão cristã da autoridade. Quem ocupa um cargo de responsabilidade na sociedade – um governante, um professor universitário, um pai de família etc. – deve estar ciente de que está ali para servir a seus súditos, a seus alunos, aos membros da sua família. Muitas vezes vemos o oposto: parece que quem exerce o poder pode servir a si mesmo. O poder é visto como uma propriedade pessoal da qual pode se aproveitar. Essa é a origem de fenômenos tão difundidos nos cinco continentes como a corrupção política e econômica, a arbitrariedade, os desejos de se perpetuar no poder. A história e a literatura – pensemos em tantos reis das obras de Shakespeare, como Macbeth ou Ricardo III – demonstram isso claramente. Graças a Deus, também há numerosos exemplos de pessoas que exercem o poder com autoridade moral, com mansidão, com respeito, com espírito de serviço: honram o nome de “ministros”, palavra que vem do latim “ministrare”, ou seja, servir.
Uma das características que São Josemaria destaca com mais frequência para a santificação de todas as dimensões sociais é precisamente o espírito de serviço. Toda tarefa humana honesta tem como finalidade intrínseca o serviço aos outros. O médico serve tanto quanto a dona de casa, o varredor de rua tanto quanto o pesquisador ou o funcionário do banco. O serviço não é algo acrescentado ao trabalho humano. “Vamos pensar devagar o que há no cerne do nosso labor profissional. Vou dizer-lhes que é uma única intenção: servir. Porque no mundo, agora, a importância da missão social de todas as profissões está clara: até a caridade se tornou social, até o ensino se tornou social”[29].
Escrivá se referia a esse desejo sobrenatural de servir a Deus e às almas que deve reinar nos corações de todos os cristãos, e que também tem uma dimensão humana: “tentar alcançar a perfeição cristã no mundo limpidamente, com sua atuação libérrima e responsável em todos os campos da atividade cidadã. Um serviço abnegado, que não avilta, mas educa, que dilata o coração – torna-o romano, no sentido mais alto desta palavra – e leva a buscar a honra e o bem das pessoas de cada país: para que haja cada dia menos pobres, menos ignorantes, menos almas sem fé, menos desesperados, menos guerras, menos insegurança, mais caridade e mais paz”[30].
O espírito de serviço leva necessariamente a pensar nos outros, a viver essa chave antropológica cristã, indicada no n. 24 da Gaudium et spes: a pessoa humana se realiza no dom sincero de si. É na trama das relações sociais que exercemos essa dedicação aos outros. “A atuação de cada um de nós, filhos, é pessoal e responsável. Devemos procurar dar bom exemplo diante de cada pessoa e diante da sociedade, porque um cristão não pode ser individualista, não pode desentender-se dos outros, não pode viver egoisticamente, de costas para o mundo: é essencialmente social, membro responsável do Corpo Místico de Cristo”[31].
De acordo com a sua visão, se na sociedade prevalecer o espírito de serviço, a transformação do mundo – sempre conscientes das limitações humanas – será uma realidade. “Nosso labor apostólico contribuirá para a paz, para a colaboração entre os homens, para a justiça, para evitar a guerra, para evitar o isolamento, para evitar o egoísmo nacional e os egoísmos pessoais: porque todos perceberão que fazem parte de toda a grande família humana, que é dirigida à perfeição pela vontade de Deus”[32]. São Josemaria é um mestre na hora de ampliar horizontes: embora nossa tarefa na sociedade seja aparentemente ínfima ou de pouca importância aos olhos humanos, podemos mudar o mundo precisamente a partir dali.
Se todos os âmbitos sociais constituem uma oportunidade para contribuir ao bem comum, para servir, é evidente que alguns deles são estratégicos. São Josemaria destaca em particular o serviço público, a atividade política. “Em todos os campos onde os homens trabalham, vocês também devem se fazer presentes, com o maravilhoso espírito de serviço dos seguidores de Jesus Cristo, que não veio para ser servido, mas para servir: sem abandonar imprudentemente – seria um gravíssimo erro – a vida pública das nações, na qual agirão como cidadãos comuns, que é o que vocês são, com liberdade pessoal e responsabilidade pessoal”[33]. E insiste: “A presença leal e desinteressada no terreno da vida pública oferece imensas possibilidades de fazer o bem, de servir: os católicos não podem (...) abandonar esse campo, deixando as tarefas políticas nas mãos daqueles que não conhecem ou não praticam a lei de Deus, ou daqueles que se mostram inimigos de sua Santa Igreja”[34].
Seguindo uma longa tradição de filosofia política e doutrina social, cujos representantes mais eminentes são Platão, Aristóteles, Santo Agostinho e São Tomás, Escrivá oferece uma definição da atividade política: “Política, no sentido nobre da palavra, não é senão um serviço para alcançar o bem comum da Cidade terrena. Mas este bem tem uma extensão muito grande e, por conseguinte, é no terreno político onde se debatem e se ditam leis da maior importância, como são as que concernem ao matrimônio, à família, à escola, ao mínimo necessário de propriedade privada, à dignidade – aos direitos e deveres – da pessoa humana”[35].
Nos textos clássicos de filosofia política é habitual encontrar seções dedicadas às virtudes do governante. São numerosos os textos de São Josemaria em que ele oferece uma série de conselhos para governar bem, tendo em vista o bem comum. Por exemplo, saber distribuir responsabilidades, sem acumular poder em uma só pessoa (cfr. Sulco972); cercar-se de pessoas sábias e moralmente retas, e não de medíocres para querer sobressair (cfr. Sulco, 968); tomar as decisões ouvindo os colaboradores, para evitar visões unilaterais (cfr. Sulco, 392); nunca julgar ou falar levianamente sobre pessoas ou temas que o governante desconhece (cfr. Sulco, 397); ter a convicção de que quem governa não sabe tudo e deve aprender com os outros (cfr. Sulco, 388).
Em uma carta datada de 1959 e dirigida aos membros do Opus Dei, ele dava uma série de indicações que não obedeciam às suas ideias políticas pessoais, mas à doutrina social da Igreja: “Quando tiverem de participar em tarefas de governo, coloquem todo empenho em ditar leis justas, que possam ser cumpridas pelos cidadãos. O contrário é um abuso de poder e um atentado à liberdade das pessoas: deforma suas consciências, além disso, porque – nesses casos – têm perfeito direito de deixar de cumprir essas leis que só o são de nome”[36].
Ao mesmo tempo, não era suficiente ditar boas leis, mas fazer com que todos os cidadãos participassem do bem comum, e em particular os mais fracos: “Respeitem a liberdade de todos os cidadãos, tendo em conta que o bem comum deve ser compartilhado por todos os membros da comunidade. Deem a todos a possibilidade de elevar sua vida, sem humilhar alguns para levantar os outros; ofereçam, aos mais humildes, horizontes abertos para seu futuro: a segurança de um trabalho remunerado e protegido, o acesso à igualdade de cultura, porque isso – que é justo – trará luz às suas vidas, mudará seu humor e facilitará a busca de Deus e de realidades mais altas”[37].
8. Compaixão e ação
Uma das características mais presentes na cultura contemporânea é a rejeição de todo tipo de discriminação. Isso é algo muito positivo do ponto de vista cristão, embora seja doloroso ver que diversos grupos de pessoas continuam a ser discriminados, principalmente os mais fracos ou aqueles com capacidades diferentes. Além desses grupos, também são discriminados os que consideram que existem verdades objetivas, ou que acreditam que a vida tem sentido, ou os que se atrevem a professar sua fé publicamente: não é raro que essas pessoas – muitos dos leitores deste livro, suponho – sejam rotuladas de fundamentalistas, incapazes de dialogar com quem pensa diferente ou que constituem um perigo para a democracia.
Recentemente, um documento da Santa Sé reafirmou a dignidade de toda pessoa: “Uma dignidade infinita, que se fundamenta inalienavelmente em seu próprio ser, cabe a cada pessoa humana, além de toda circunstância e em qualquer estado ou situação em que se encontre. Este princípio, plenamente reconhecível até mesmo pela simples razão, fundamenta a primazia da pessoa humana e a proteção de seus direitos”[38].
Para esclarecer possíveis mal-entendidos sobre o termo dignidade, o documento explica que é possível distinguir quatro dimensões dela: dignidade ontológica, dignidade moral, dignidade social e dignidade existencial. A primeira dimensão é a mais importante. A dignidade ontológica “corresponde à pessoa como tal pelo mero fato de existir e ter sido querida, criada e amada por Deus. Esta dignidade nunca pode ser eliminada e permanece válida além de qualquer circunstância na qual os indivíduos possam se encontrar”[39]. A dignidade moral refere-se ao exercício da liberdade pela pessoa humana. Muitas vezes fazemos mau uso da liberdade, e nesse caso nos comportamos de uma maneira “não digna” da pessoa humana. “A história nos testemunha que o exercício da liberdade contra a lei do amor revelada pelo Evangelho pode atingir níveis incalculáveis de mal infligido aos outros. Quando isso acontece, encontramos pessoas que parecem ter perdido todo vestígio de humanidade, todo vestígio de dignidade. A este respeito, a distinção aqui introduzida nos ajuda a discernir com precisão entre o aspecto da dignidade moral, que de fato pode 'se perder', e o aspecto da dignidade ontológica que nunca pode ser anulada. E é precisamente em razão desta última que se deve trabalhar com todas as forças, para que todos aqueles que fizeram o mal possam se arrepender e se converter”[40].
A dignidade social refere-se às condições de vida de uma pessoa. Pode-se afirmar que existem vidas “indignas” porque suas circunstâncias sociais não respeitam a dignidade ontológica de que toda pessoa desfruta. Falar de uma ‘vida indigna’ “não indica de forma alguma um julgamento em relação à pessoa, pelo contrário, quer destacar o fato de que sua dignidade inalienável é contradita pela situação em que se vê obrigada a viver”[41].
Por fim, a dignidade existencial: “com essa expressão nos referimos a situações de tipo existencial: por exemplo, no caso de uma pessoa que, mesmo não lhe faltando, aparentemente, nada essencial para viver, por diversas razões, acha difícil viver com paz, com alegria e com esperança. Em outras situações é a presença de doenças graves, de contextos familiares violentos, de certas dependências patológicas e de outros males que levam alguém a experimentar sua própria condição de vida como 'indigna' em face da percepção daquela dignidade ontológica que nunca pode ser obscurecida. As distinções aqui introduzidas, em todo caso, não fazem mais do que nos lembrar do valor inalienável dessa dignidade ontológica enraizada no próprio ser da pessoa humana e que subsiste além de qualquer circunstância”[42].
São João Paulo II, a partir de uma perspectiva personalista, sublinhava que “a pessoa é um ser para o qual a única dimensão adequada é o amor”[43]. E Francisco acrescenta: “O amor implica, então, algo mais que uma série de ações benéficas. As ações brotam de uma união que nos inclina mais e mais para o outro, considerando-o valioso, digno, grato e belo, além das aparências físicas ou morais. O amor ao próximo por quem ele é, nos move a buscar o melhor para sua vida. Só cultivando essa forma de nos relacionarmos tornaremos possível a amizade social que não exclui ninguém e a fraternidade aberta a todos”[44].
São Josemaria, seguindo o exemplo de Jesus Cristo crucificado, dizia que todo cristão devia abrir os braços de par em par para abraçar todas as almas. Considerava que toda pessoa tinha um valor infinito, pois “valemos todo o sangue de Cristo”. Usando a terminologia do documento que acabamos de citar, podemos afirmar com segurança que, tanto em sua vida quanto em sua doutrina, ele vivia plenamente o respeito à dignidade da pessoa humana em suas quatro dimensões: a dignidade ontológica, que o levava a defender a vida desde o momento da concepção até a morte natural, em um apostolado constante em um contexto cultural onde a mentalidade contra a vida já estava muito desenvolvida; a dignidade moral, que o levava a buscar o pecador para aproximá-lo das fontes da graça, até mesmo chegando às portas do inferno; a dignidade social, despertando as consciências de todas as pessoas de boa vontade para promover o desenvolvimento de todos, especialmente dos mais pobres, e alcançar um nível de vida condizente com a dignidade de filhos de Deus; e, por fim, a dignidade existencial, por sua constante preocupação em acompanhar as pessoas solitárias, consolar os doentes, pregar a paz familiar, etc.
A atitude pessoal de São Josemaria unia-se à sua vontade de transmitir aos seus filhos espirituais e a todas as pessoas a quem sua pregação alcançava, a responsabilidade de colaborar na solução dos problemas sociais. Se um primeiro passo é a “compaixão” diante do fraco, do pobre, do discriminado, o passo seguinte deve ser a “ação”: o cristão – e toda pessoa de boa vontade – não pode ficar de braços cruzados diante das injustiças sociais. Seu amor a Cristo, a quem via nos pobres, o impulsionava a buscar meios para reverter as situações de pobreza e miséria de tantas pessoas nos cinco continentes. Ele considerava que, se a vida espiritual fosse autêntica, necessariamente deveria resultar na nossa proximidade às pessoas que sofrem. De outra forma, cairíamos em uma religiosidade subjetivista, que incluiria um conforto contrário ao espírito de Cristo[45]. “Não se ama a justiça, – escrevia em uma homilia dedicada a São José – se não se deseja vê-la estendida aos outros. Como também não é lícito encerrar-se numa religiosidade cômoda, esquecendo as necessidades alheias. Quem deseja ser justo aos olhos de Deus esforça-se também por fazer com que se pratique de fato a justiça entre os homens. E não apenas pelo bom motivo de que não se injurie o nome de Deus, mas porque ser cristão significa acolher todas as instâncias nobres que existem no ser humano. Parafraseando um conhecido texto do Apóstolo São João, podemos dizer que quem se proclama justo com Deus, mas não é justo com os outros homens, é um mentiroso; e a verdade não habita nele”[46].
Respeitando o legítimo pluralismo que existe quando se trata de encontrar soluções técnicas para resolver as emergências sociais, ele não deixava de lembrar a todos que parte central do Evangelho é a predileção pelos pobres e doentes, que devem ter os mesmos direitos que as outras pessoas. Sem meias palavras, ele afirmava em meados do século passado: “Nestes tempos de confusão, não se sabe o que é direita, nem centro, nem esquerda, no político e no social. Mas se por esquerda se entende conseguir o bem-estar para os pobres, para que todos possam satisfazer o direito de viver com um mínimo de conforto, a trabalhar, a ser bem assistidos se adoecerem, a se distrair, a ter filhos e poder educá-los, a ser idosos e serem atendidos, então eu estou mais à esquerda que ninguém. Naturalmente, dentro da doutrina social da Igreja, e sem compromissos com o marxismo ou com o materialismo ateu; nem com a luta de classes, anticristã, porque nessas coisas não podemos transigir”[47].
Para São Josemaria, as exigências da justiça são indispensáveis, e devemos buscar todos os meios adequados para que elas sejam respeitadas. Ao mesmo tempo, em sua visão social impregnada pelo amor de Cristo, considerava que a justiça sozinha não basta. “Convençam-se de que só com a justiça vocês não resolverão nunca os grandes problemas da humanidade. Quando se faz justiça a seco, não se admirem de que a pessoas se sintam magoadas: pedem muito mais a dignidade do homem, que é filho de Deus. A caridade tem que ir dentro e ao lado, porque tudo dulcifica, tudo deifica: Deus é amor (...). Para chegarmos da justiça estrita à abundância de caridade, temos todo um trajeto a percorrer. E não são muitos os que perseveram até o fim. Alguns se conformam com aproximar-se dos umbrais: prescindem da justiça e limitam-se a um pouco de beneficência, que qualificam como caridade(...). A caridade - que é como um generoso exorbitar-se da justiça - exige primeiro o cumprimento do dever. Começa-se pelo que é justo, continua-se pelo que é mais equitativo…, Mas, para amar, requer-se muita finura, muita delicadeza, muito respeito, muita afabilidade; numa palavra, é preciso seguir o conselho do Apóstolo: Levem uns as cargas dos outros, e assim cumprireis a lei de Cristo. Então, sim, já se vive plenamente a caridade, já se realiza o preceito de Jesus”[48].
Ao longo de sua vida, o fundador do Opus Dei promoveu inúmeras iniciativas ao serviço dos mais necessitados: institutos de formação profissional, dispensários médicos, escolas agrícolas, centros de formação para empregadas domésticas etc. Ao mesmo tempo, ele não tinha uma mentalidade “assistencialista”: era necessário colocar nas mãos dos mais necessitados os instrumentos necessários para que pudessem progredir por si mesmos, respeitando sua dignidade. Isso implicava dar-lhes formação humana e profissional, sem esquecer a formação espiritual, porque então, como agora – é uma denúncia do Papa Francisco – “a pior discriminação que os pobres sofrem é a falta de atenção espiritual”[49]. O próprio São Josemaria dizia: “Filhos da minha alma, não esqueçam, contudo, que a miséria mais triste é a pobreza espiritual, a falta de doutrina e de participação na vida de Cristo”[50].
O Fundador do Opus Dei também promoveu universidades e escolas de negócios onde se procura estimular a responsabilidade social e o espírito de serviço, para colocar essa formação de alto nível a serviço do bem comum. Ele procurava que as pessoas mais instruídas e com maiores possibilidades econômicas afinassem sua sensibilidade social, produto não tanto de princípios de filosofia política ou econômica, mas de uma mentalidade que se ajusta aos sentimentos do Coração de Cristo: “Um homem e uma sociedade que não reajam perante as tribulações ou as injustiças, e não se esforcem por aliviá-las, não são nem homem nem sociedade à medida do amor do Coração de Cristo. Os cristãos - conservando sempre a mais ampla liberdade à hora de estudar e de aplicar as diversas soluções, e, portanto, com um lógico pluralismo - devem identificar-se no mesmo empenho em servir a humanidade. De outro modo, o seu cristianismo não será a Palavra e a Vida de Jesus: será um disfarce, um logro perante Deus e perante os homens”[51].
Não podemos nos conformar com resolver os problemas pessoais e familiares. Eles são prioritários, mas devem constituir a plataforma para nos lançarmos “mar adentro” para procurar todos os homens, para levar a mensagem de Cristo a cada um e a cada uma. “A caridade de Cristo – escreve São Paulo – nos urge” (2 Cor 5,14). E o amor implica entrega, sair de si mesmo, doação sincera. Em outras palavras, leva a complicar a vida. Na Venezuela, em uma daquelas reuniões multitudinárias que manteve com todo tipo de pessoas, respondendo a uma pergunta sobre a educação dos filhos em relação aos bens materiais, São Josemaria destacou:
“Eu passearia com eles um pouco por esses bairros que há à volta da grande cidade de Caracas. Colocaria a mão diante dos olhos, e depois a tiraria para que vissem as favelas, umas em cima das outras: e já lhes respondeste! Que saibam que têm de aproveitar bem o dinheiro; que têm de saber administrá-lo, de modo que todos participem de alguma maneira dos bens da terra. Porque é muito fácil dizer: – Eu sou muito bom, se não se passou por nenhuma necessidade. Um amigo meu, homem de muito dinheiro, dizia-me certa vez: Eu não sei se sou bom, porque nunca tive a minha mulher doente, estando eu sem trabalho e sem um centavo; não tive os meus filhos debilitados pela fome, estando eu sem trabalho e sem um centavo; não me encontrei no meio da rua, estendido sem um teto... Não sei se sou um homem honrado: que teria feito eu, se me tivesse acontecido tudo isso? Vejam, temos de procurar que ninguém passe por isso; é preciso habilitar a gente para que, com o seu trabalho, possa garantir um bem-estar mínimo, estar tranquila na velhice e na doença, cuidar da educação dos filhos, e tantas outras coisas necessárias. Nada que diga respeito aos outros nos pode ser indiferente e, do lugar em que nos encontramos, temos de procurar que se fomente a caridade e a justiça”[52].
O cristão que, coerente com o Evangelho e bem formado na doutrina social, procura influenciar a comunidade, com responsabilidade social, respeito à liberdade dos outros, capacidade de diálogo, espírito de serviço e compaixão ativa pelos mais pobres, é um gerador de mudanças positivas. Como os círculos concêntricos produzidos por uma pedra jogada na água, sua influência chegará até os confins da terra. Se houver muitos cristãos assim, haverá razões para esperar por um mundo melhor, com mais amor, compreensão, paz, perdão. Não caiamos na utopia, pois a presença do mal sempre estará presente até o fim dos tempos. Mas é nossa responsabilidade dar nossa contribuição para tornar a convivência social mais cristã e, portanto, mais humana.
Há poucas semanas, vi nas estantes de uma livraria de Yaoundé, capital dos Camarões, um livro com o título: Le pire n’est pas encore arrivé (O pior ainda não chegou). Como título, não é muito animador. Com as certezas que a fé nos dá, podemos afirmar que, se formos fiéis à nossa vocação de cidadãos cristãos no mundo, o melhor ainda está por vir. Tudo depende, ao mesmo tempo, de Deus e da nossa correspondência livre e responsável à graça divina.
[1] Cfr. Ch. DICKENS, A Casa soturna, Ed. Nova Fronteira; 2ª edição (março 2024).
[2] Cartan. 3, 46a, em Cartas I, Quadrante, São Paulo, 2023.
[3] Carta n. 3, 29b, em ibidem.
[4] Carta n. 3, 45b, em ibidem
[5] FRANCISCO, Encíclica Fratelli tutti, 3/10/2020, n.86.
[6] Cartan. 3, 46c, em Cartas I, cit.
[7] FRANCISCO, Fratelli tutti, n. 68.
[8] Carta, 15/10/1948, n. 28.
[9] F. OCÁRIZ, Conferência “Dilatar o coração”, 22 de janeiro de 2023.[10] Amigos de Deus, 32.
[11] Entrevistas com Mons. Josemaria Escrivá, 53
[12] Sulco, 313.
[13] ArtigoAs riquezas da fé, ABC 2/11/1969.
[14] Entrevistas, 117.
[15] As riquezas da fé, ABC 2/11/1969.
[16] Cfr. A. RODRÍGUEZ LUÑO, A formação da consciência nos planos social e político segundo os ensinamentos de São Josemaria Escrivá.[17] Sulco, 275.
[18] Cartan. 4, 3a, em Cartas I, cit.
[19] Ibidem, 3c.
[20] Ibidem, 4c.
[21] Ibidem, 6d.
[22] Ibidem, 8c.
[23] Ibidem, 11a.
[24] Ibidem, 12a.
[25] Ibidem, 12e e d.
[26] Ibidem, 13 e
[27] Ibidem, 24 b, c e d.
[28] Anotações de uma reunião familiar, 15/06/1974 (Arquivo Geral da Prelazia, a partir de agora, AGP, biblioteca, PO4, vol II, 482). Ver o vídeo: O que quer deixar em nossos corações?
[29] Carta n.3, 26 b
[30] Carta n.8, 1 b, em Cartas II, Quadrante, São Paulo, 2024.
[31] Ibidem, 37 d.
[32] Ibidem, 38 a.
[33] Ibidem, 40, e.
[34] Ibidem, 41 a.
[35] Ibidem, 42 a.
[36] Ibidem, 40 e.
[37] Ibidem, 41 a.
[38] Dicastério para a doutrina da fé, Declaração “Dignitas infinita” sobre a dignidade humana, 8/04/2024, n. 1.
[39] Ibidem, n. 7.
[40] Ibidem.
[41] Ibidem, n.8.
[42] Ibidem.
[43] João Paulo II, Cruzando o umbral da esperança, Planeta, Brasil.1994.
[44] FRANCISCO, Fratelli tutti, n. 94.
[45] Cfr. SCHLAG, M., voz Promoción y desarrollo, Diccionario…, cit., 1026.
[46] É Cristo que passa, 52.
[47] Instrucción, V-1935/14-IX-1950, nota 146.
[48] Amigos de Deus, 171-173.
[49] FRANCISCO,Evangelii gaudium, 200.
[50] Carta n. 29, 52.
[51] É Cristo que passa, 167.
[52] Anotações de uma reunião familiar, 9-II-1975 (AGP, Biblioteca, P04, 1975, vol. III, 83-84).