A Loteria de Natal

No dia 22 de dezembro de 1957 o Sorteio Extraordinário de Natal na Espanha foi transmitido por televisão pela primeira vez. No entanto, a maior parte da população acompanhou o sorteio pelo rádio porque poucos tinham televisão em casa.

El Gordo de Natal

No dia 22 de dezembro de 1957 o Sorteio Extraordinário de Natal na Espanha foi transmitido por televisão pela primeira vez. No entanto, a maior parte da população acompanhou o sorteio pelo rádio porque poucos tinham televisão em casa.

El Gordo é o apelido dado ao emocionante sorteio de Natal realizado na Espanha. Mediante a compra de bilhetes de loteria, são distribuídos diversos prêmios em dinheiro. Conhecido localmente como “Loteria de Navidad”, este sorteio começou a ser realizado há mais de 200 anos, em 1812, e continuou acontecendo mesmo durante a Guerra Civil Espanhola.

Em 1957 El Gordo caiu em Bilbao. Lá se venderam o primeiro prêmio, o terceiro e parte do quarto prêmio. O número contemplado foi o 53.414, um número que os mais velhos e com boa memória ainda lembram. Mas para Montse Grases, o prêmio veio em Barcelona e foi todo para ela. Um prêmio que mudou tudo completamente, um prêmio para compartilhar... que abriu para ela as portas do Céu. Assim nos conta José Miguel Cejas em seu livro Montse Grases, La alegría de la entrega.


Albert Camus recebe o Prêmio Nobel de Literatura. A União Soviética coloca em órbita o Sputnik e mais tarde o Sputnik 2 com a cadela Laika a bordo. Alemanha Ocidental, Bélgica, França, Itália, Luxemburgo e Holanda assinam o Tratado de Roma. Na Espanha, o Real Madrid ganha sua terceira e consecutiva Copa da Europa e o Camp Nou é construído em Barcelona.

No final de 1957 Montse conta à sua mãe, depois de refletir durante meses e após fazer um retiro:

— Mãe, acho que eu tenho vocação.

— Mas, você pensou bem, Montse?

— Sim, sim, sim, mãe. Tenho vocação e quero pedir a admissão como numerária.

— Mas Montse, você já consultou o seu diretor espiritual?

— Não, mãe, porque primeiro quero ter certeza.

— Bem, eu sugiro que você o consulte, porque ele pode ajudá-la. O que você acha de contarmos ao papai?

Montse não parecia muito disposta. A mãe insistiu:

— Veja, o papai pode nos ajudar a rezar mais

Montse hesitou por um momento. Ela não contava com isso. No final, aceitou:

— Bem, vamos falar com ele

Manuel Grases recebeu a notícia com a sua calma habitual e procurou disfarçar a alegria que isso lhe causava.

— Veja, Montse — comentou com voz serena — tudo o que eu posso dizer é o seguinte: a vocação é um dom maravilhoso que Deus nos dá e envolve uma decisão que devemos meditar muito bem, na presença de Deus... A única coisa que sua mãe e eu podemos fazer neste caso é rezar. E já que estamos perto do Natal, o que vamos fazer os três é pedir ao Menino Jesus, para que Ele faça você ver claramente qual é a sua vocação. O que você acha?

Manuel Grases conteve sua emoção como pôde. Sim. Era algo pelo que tinha rezado toda a sua vida ... Deus lhe estava dando – como havia pedido – uma nova vocação entre seus filhos. Mas agora o importante não era que seu sonho pessoal fosse cumprido, mas que se cumprisse a Vontade de Deus.

Montse Grases com a família
Montse (direita) com a família

Vinte e um mil e setecentooooos. Oitocentas mil pesetaaaaaaas... Quarenta e oito mil, oitocentos e noventa e quatro. Oitocentas miiiiil peseetaaaaaaaaas...

Desde 1812 os resultados são cantados pelos alunos do Colégio San Ildefonso. Sua emoção, sua alegria ao cantar cada um dos números premiados e o prêmio correspondente durante todos estes anos é uma das tradições mais arraigadas da Espanha.

Naquela manhã de 22 de dezembro, as vozes agudas dos meninos do Colégio San Ildefonso ecoando pelos rádios perfuravam os tímpanos dos sofridos vizinhos da casa da rua Paris. Por toda parte, incessante, ouvia-se a cantilena anual dos prêmios da loteria. Fazia frio: 9 graus. Pela rua, os pedestres, enregelados atrás de seu cachecóis de lã, se felicitavam: “Feliz Natal! Feliz Natal!”

Os Grases foram à missa na paróquia, como sempre. Na volta, a cantilena do sorteio ainda ressoava pelo pátio interno da casa, sempre deixando nervosas as senhoras que preparavam o almoço do dia. Manolita não gostava de “desperdiçar dinheiro nessas coisas de loteria”, mas no prédio, uns mais, outros menos, guardavam uma esperança distante de ganhar seu deciminho, ou sua pequena – ou grande – participação na loteria de Natal, com a esperança secreta, nunca confessada – “para mim, para mim dessa vez cai El Gordo – e, se não for o prêmio total, pelo menos algumas moedinhas. Se não, para encerrar bem as festas, alguma “pontinha” do “Sorteo del Niño”, segunda maior loteria que corre na festa dos Reis Magos...

...Cinquenta e três mil setecentos e vinte e cincooooo: Seiscentas miiiiil pesetAAaaas. Cinco mil e seiscentos e setenta e seteee: Qua-tro- cen-tas-mil peseee-TAAAAaaaaaaaaaaaaas...

Manolita não deixava de observar sua filha Montse. Aparentemente, em casa, o clima era de agitação própria de qualquer Natal: as crianças estreavam ruidosamente os primeiros dias de férias, brincavam com alvoroço pelos corredores, enquanto Manuel instalava o presépio... e tudo com a música de fundo dos choros do pequeno Rafael. Mas Montse...

Montse estava diferente… Contente, mas inquieta. E não contribuíam exatamente à calma o eco dos números da sorte que eram ouvidos por todos “graças à Rádio Nacional da Espanha”, como repetia o locutor a cada dez minutos. Faltando cinco minutos para o meio dia houve um breve silêncio. El Gordo? O Gordo” saiu? Muitas senhoras do prédio suspenderam por um momento seus afazeres domésticos na cozinha. Houve uma trégua no movimento das panelas e aguçaram o ouvido. Sim, finalmente, lá estava: O Gordo! Ouviu-se pela rádio uma voz grave e metálica que lia, sílaba por sílaba, com um tom solene.

Cin-quen-ta-e-três-mil qua-tro-cen-tos- e-ca-tor-ze: trin-ta mi-lhões de pe-se-tas.

A seguir, em muitos lares se armou uma pequena agitação, à procura daquele bilhete que talvez... talvez… Mas, depois de comprová-lo, nada, nem de longe… Nem sequer o último número. Está bem. Será no ano que vem. E as bolas da sorte continuavam distribuindo fortunas, dando voltas dentro do globo da loteria...

Montse, enquanto isso, continuava dando voltas à sua entrega. Já estava quase decidida, mas de vez em quando, aparecia outra vez a dúvida... Todo cristão – sabia disso muito bem – está chamado à santidade. A vocação à Obra é uma determinação dessa chamava universal. Mas… Deus lhe pedia isso? E se tudo não fosse mais que um sonho, um número errado da loteria?

E se…?

E se seu verdadeiro número, seu verdadeiro caminho fosse esse, e estava a ponto de ganhar o presente mais maravilhoso com que jamais poderia ter sonhado?

Às 11 horas da manhã de 22 de dezembro, a Rádio Vaticana transmitiu a mensagem de Natal do Papa para todo o mundo. Pelas ondas de rádio se ouviu a voz grave e solene de Pio XII: “Deus confiou aos homens os seus desígnios para que os realizem pessoal e livremente, contribuindo com a sua plena responsabilidade moral e exigindo, se necessário, fadigas e sacrifícios ao serviço de Cristo”.

Na tarde do dia 24, véspera de Natal, Pepa [Castelló] e Montse voltaram a conversar. “Montse – lembra Pepa – veio me ajudar a terminar de montar o presépio. Depois saímos juntas para fazer várias compras e fomos até a praça da catedral onde ficavam os mercadinhos em que se vendiam figuras de presépio, pandeiros, musgo ... Depois fomos a Monterols, e pudemos ver os enfeites de Natal que Carmiña Cameselle tinha feito. Conversamos sobre a sua vocação e ela me disse que estava com dor na perna, mas não dei mais importância a isso. Ela estava praticamente decidida”.


Em 24 de dezembro, Montse solicitou a admissão no Opus Dei. Seis meses depois, o médico informa a Manuel Grases que a sua filha sofre de sarcoma de Ewing, uma doença dura e dolorosa que Montse carrega com muita força, alegria e união com Deus, enquanto sua família, médicos e amigos procuram aliviá-la. Ela faleceria em 26 de março de 1959 e imediatamente após sua morte, a sua fama de santidade se espalhou por todo o mundo. Em 19 de dezembro de 1962 teve início seu processo de beatificação.

No seu último Natal na terra, já muito doente, na cama, Montse festejou o primeiro aniversário da sua vocação. A sala estava quase escura, com todas as janelas fechadas. De repente, ela exclamou:

— Acendam as luzes! Abram as venezianas! E não falem em voz baixa ...! Vamos ver ... por que não cantamos uma música? Uma canção de Natal!

Ela queria que houvesse alegria ... e começamos a cantar a sua canção de Natal favorita:

Sou uma mula, Menino, Menino, mas te amo, te amo.

Pega-me pelas orelhas, dá-me um beijo e outro beijo, eu não quero beijar-te porque terias medo.

Suas vozes se sufocavam em suas gargantas. Mas Montse continuava, muito alegre:

Menino, monta a cavalo, iremos pela vereda.

Eu te mostrarei a terra. Tu me mostrarás o Céu...


Veja a letra e áudio da música no artigo Canções de Natal com história.