A Fadiga da Santidade

O fundador tinha falecido havia menos de um ano. A 5 de Março 1976, Mons. Alvaro del Portillo, seu sucessor, foi recebido pela primeira vez, pelo Papa. Durante aquela audiência, Paulo VI recomendou-lhe que começasse a recolher, de maneira sistemática, os seus escritos e documentos que iluminavam a sua vida porque constituiam- disse - "um tesouro que já não pertence só ao Opus Dei"

Mons. Flavio Capucci, Postulador da Causa de Canonização de Josemaria Escrivá

Embora o Santo Padre lhe desse autorização para falar disto, D. Álvaro del Portillo foi – como sempre – muito discreto. Fez referência a elas no dia 2 de Fevereiro de 1978, quando, ao anunciar-me que agora já tinha chegado o tempo de começar a preparar a Causa de canonização, perguntou se estava disposto a ocupar-me do assunto. Não é por acaso que, hoje, elas voltam à minha mente, porque a canonização nos diz antes de mais, precisamente aquilo que Paulo VI antecipou nesse dia, isto é, que Josemaria Escrivá pertence ao tesouro da santidade da Igreja. A sua mensagem é patrimônio da Igreja. Nela vibra a novidade perene do Evangelho, que fala a todos os cristãos e a que todos podem alcançar.

O ato que o Papa se prepara para realizar nesta manhã diante do mundo acrescenta mais um elo a uma cadeia que jamais se interromperá até ao fim dos tempos: cada época será marcada pelo testemunho dos santos, figuras que, na sua variedade, confirmam a inesgotável riqueza do mistério da Igreja. Só a perspectiva eclesiológica fornece a chave da compreensão. Por exemplo, para compreender como os santos (467) e os beatos (1290) elevados aos altares por João Paulo II não podem ser vistos como uma chuva de partículas isoladas, embora numerosos, uma pluralidade de indivíduos escolhidos para representar grupos de fiéis, instituições eclesiais, sensibilidades ou escolhas espirituais particulares. Não: é a Igreja universal que neles palpita. A realidade em todos vive e a todos dá vida católica.

A substância da santidade

Para mim, conclui-se hoje um trabalho iniciado há quase vinte e cinco anos. A história de cada uma das causas de canonização pode ser reconstruída através de dados numéricos que ajudam a ter uma ideia do percurso seguido: duração dos processos (quase 1.000 sessões, no nosso caso), número das testemunhas de visu (uma centena), assiduidade das suas relações com o protagonista (mais de 20 anos na maioria dos casos), consistência das provas documentais (390 arquivos examinados) densidade da Positio (4 volumes de 6.000 páginas), extensão da devoção (mais de 120.000 testemunhos de favores, em quase 90 países), frequência dos milagres registrados (48 completamente documentados, até agora), etc. Mas não me parece ser este o momento para fazer uma averiguação técnica da causa do fundador do Opus Dei. E de resto, só quem está empenhado nestes trabalhos poderia compreender todo o significado daquelas cifras. Além delas, uma causa é o estudo analítico, jurídica e criteriosamente fundado, que deve responder à pergunta: existem provas válidas, que tirem qualquer dúvida sobre a santidade de um determinado Servo de Deus? A certeza que provém disto é suficientemente sólida para consentir à autoridade competente propor sem reservas que o Papa o proclame santo? A decisão final é unicamente do Papa; o procedimento que o prepara constitui, no seu conjunto, a causa de canonização.

Todas as causas nos apresentam aquilo a que poderíamos definir como o paradoxo da santidade

Todas as causas nos apresentam aquilo a que poderíamos definir como o paradoxo da santidade. Com maior razão a de Josemaria Escrivá que, desde o final dos anos vinte, pregou com vigor a vocação universal para a santidade. O centro da sua mensagem e da sua ação pastoral consiste precisamente nesta convicção, e nas suas imediatas consequências, isto é, no desempenho da vida cotidiana (o trabalho, a família, as relações sociais) como âmbito e matéria de santidade. Se a santidade é para todos e não só para poucos indivíduos especiais; significa que ela não consiste em realizar ações extraordinárias; é suficiente desempenhar com amor extraordinário os pequenos deveres do dia a dia... Como ele mesmo escreveu: "Queres de verdade ser santo? – Cumpre o pequeno dever de cada momento; faz o que deves e está no que fazes" (Caminho, n. 815). A santidade "grande" está em cumprir os "deveres pequenos" de cada instante" (Caminho, n. 817). Qual é o paradoxo?

O paradoxo consiste em manter esta verdade, proclamada solenemente também pelo Concílio e confirmada na realidade do número acima citado das beatificações e das canonizações efetuadas por João Paulo II. Em mantê-la, dizia, e, ao mesmo tempo, em não tornar banal o seu conteúdo. A Congregação para as Causas dos Santos requer a demonstração da heroicidade das virtudes, como condição indispensável para proceder primeiro à beatificação e depois à canonização: uma condição extremamente difícil de satisfazer. Por conseguinte, deve-se admitir-se que o heroísmo é para todos; mas, se as palavras têm um sentido, permanece uma meta acima do comum: um ponto de chegada que não é para todos. Em conclusão, a santidade alcança-se ao preço de esforços não indiferentes. Aqueles 467 santos e aqueles 1290 beatos dizem-nos que todos podemos chegar à plenitude da vida cristã, mas também que ela não é automática, é preciso desejá-la com aquela determinação resoluta de qual fala Santa Teresa. Nas suas causas percebemos a fadiga da santidade. Esta é a impressão dominante que tive do estudo da trajetória espiritual existencial do fundador do Opus Dei, o santo da vida de todos os dias: um percurso extremamente árduo, sempre subindo, com a pendência que se aprumava cada vez mais na medida em que se aproximava da meta. Para difundir a mensagem que o Senhor lhe confiou, ele pagou um preço muito elevado.

Santidade e luta

A santidade está na luta, em saber que temos defeitos e em tratar heroicamente de evitá-los.

Em síntese, seria um erro descrever a vida espiritual prescindindo dos conceitos essenciais na tradição da espiritualidade, como a conversão, a contrição, a penitência, a mortificação, etc., mesmo com a intenção de torná-la compreensível aos não crentes ou a quem não conhece as suas leis. Durante alguns anos tive de responder às objeções de quem se escandalizava com o fato de que o fundador do Opus Dei recomendava a prática da mortificação, como se se tratasse de uma herança medieval, felizmente abandonada pela sensibilidade contemporânea. Mas a Cruz não pode ser removida do horizonte do cristão. Assim o amor ao mundo é um amor redentor, que passa através do sacrifício. Santidade é sinônimo de luta ascética: "A santidade está na luta, em saber que temos defeitos e em tratar heroicamente de evitá-los. A santidade – insisto – está em vencer esses defeitos..., mas morreremos com defeitos: senão, já te disse, seríamos uns soberbos". (Forja, n. 312). A conclusão desta passagem parece-me iluminadora e em sintonia com a experiência comum: sempre estaremos lutando com as nossas limitações; portanto só nos resta aceitar combater toda a vida nas mesmas frentes; por isso, antes de confiar nas nossas forças (caindo na ilusão pelagiana) deveríamos ter confiança, antes de mais, na ajuda da graça: "Alcança-se a santidade com o auxílio do Espírito Santo – que vem morar em nossas almas –, mediante a graça que nos é concedida nos sacramentos, e com uma luta ascética constante. Meu filho, não nos iludamos: tu e eu – não me cansarei de repeti-lo – teremos de combater sempre, sempre, até o fim da nossa vida. Assim amaremos a paz, e daremos a paz, e receberemos o prêmio eterno". (Forja, n. 429). Este é o ponto, o esforço pela santidade a que nenhum cristão pode subtrair-se. É também verdade, porém, que este trabalho, esta luta de amor traz consigo a alegria, porque "Ter a Cruz é ter a alegria: é ter-te a Ti, Senhor!" (Forja, n. 766).

Do ponto de vista existencial, no conceito de santidade convergem diversas noções basilares da antropologia cristã, como as da conversão contínua, do tempo como sequência de chamadas por parte de Deus e de respostas do homem, da vida como prova ou, na linguagem de São Josemaria, como um contínuo "começar e recomeçar" (Caminho, n. 292). Nesta perspectiva, resulta perfeitamente justificada a identidade de santidade e heroísmo, pressuposta pela metodologia da Congregação para as Causas dos Santos. Heroísmo é, precisamente, constância sem flexões. A busca da santidade requer que respondamos sempre sim aos apelos de Deus, contidos também nas vicissitudes menos evidentes do dia. Na gradualidade quase infinita de possíveis respostas, não teria sentido teórico nem abstrato, pretender que o santo deva dar sempre a mais difícil. Mas não podemos esquecer que ele responde todas as vezes ao melhor nível das suas capacidades. Assim como, para emitir uma nota afinada, uma corda de violão deve estar esticada ao máximo, assim é também a vocação cristã (que é chamada à santidade: mas quando é que compreenderemos que santidade é sinônimo de salvação?) exige que não nos detenhamos, que as nossas ações não sejam realizadas com parcimônia, que não sigamos a lei do menor esforço.

Procurar a Deus

Para ser santo não é preciso ser um super-homem nem um gênio. Mas é indispensável a coerência, isto é, uma vontade totalmente orientada para Deus

Para ser santo não é preciso ser um super-homem nem um gênio. Mas é indispensável a coerência, isto é, uma vontade totalmente orientada para Deus: sem intervalos, sem reservas. É necessário detestar o pecado com todas as forças. O pior inimigo da santidade são as omissões, a insídia que devemos evitar é a tibieza. Isto faz-nos compreender como é importante possuir qualidades humanas integrais se quisermos alcançar a meta da santidade. Ela é incompatível com a mediocridade. Não é questão de músculos, mas de amor, contudo sem um caráter forte, decidido, pronto a levantar-se, a santidade limita-se a uma quimera verdadeiramente impensável. Vale a pena meditar nas seguintes considerações de Josemaria Escrivá: "Acostuma-te a dizer que não". Caminho, n. 5). "Não sejas frouxo, mole. – Já é tempo de repelires essa estranha compaixão que sentes por ti mesmo". (Caminho, n. 193).

Pronto a levantar-se, dizia. A menção não é casual. A santidade é compatível com todos os erros e imperfeições nas quais todos podemos cair. Considerando a realidade deste ponto de vista, o maior perigo é o desânimo: "Não nos esqueçamos de que santo não é o que não cai, mas o que se levanta sempre, com humildade e com santa teimosia". (Amigos de Deus, n. 131). As quedas não nos devem oprimir, mesmo quando são graves, contanto que nos dirijamos a Deus no sacramento da Penitência, com arrependimento sincero e propósito reto. O cristão não é um fanático colecionador de folhas de bons serviços impecáveis. Jesus Nosso Senhor, que se comove tanto com a inocência e a fidelidade de João, enternece-se da mesma forma, depois da queda de Pedro, devido ao seu arrependimento. (cfr. É Cristo que passa, n 75). Quando erra, o santo volta a arrepender-se, à luta. Confia na capacidade infinita de perdão de Deus, mas não abusa dela. O temor filial ajuda-o a concentrar todas as energias para procurar agradar a Deus.

Estamos falando da santidade como diálogo vital com Deus, em que as nossas respostas se seguem às contínuas chamadas do Senhor. Estamos em plena sintonia com a tradição que define a santidade como esforço para cumprir a vontade de Deus do melhor modo possível. Neste sentido, chamou sempre muito a minha atenção um ponto do Caminho que diz assim. "Gradação: resignar-se com a Vontade de Deus; conformar-se com a Vontade de Deus; querer a Vontade de Deus; amar a Vontade de Deus". (Caminho, n. 774). Um percurso de perfeição progressiva que Josemaria Escrivá percorreu até ao fim, tanto, que pessoalmente considero o total abandono à vontade de Deus, como a expressão que descreve melhor o cume por ele alcançado no cumprimento da missão recebida: não resignação passiva, não adaptação, mas amor sincero àquilo que o Senhor quer. "Jesus, o que tu "quiseres"..., eu o amo". (Caminho, n. 773).

A santidade é fadiga, mas permanece sempre ao alcance de todos.

Este abandono constitui, a meu ver, o ponto mais alto do heroísmo e podemos vê-lo na vida dos santos aos quais o Senhor confiou uma missão de particular relevo eclesial. A estratégia seguida por Deus com o fundador do Opus Dei foi particularmente dura, marcada pela presença de uma Cruz que, com o passar do tempo, se fez cada vez mais pesada.

Certa literatura hagiográfica tende a engrandecer as figuras dos santos. Apesar de surgirem obstáculos que constelam o caminho da santidade, aqui não se quis absolutamente seguir essa tendência. O santo não é inimitável: Distanciá-lo da terra equivale a negar a sua exemplaridade. A santidade é fadiga, mas permanece sempre ao alcance de todos. O paradoxo mantém-se em ambos os polos. São os méritos infinitos de Cristo, aplicados a nós nos sacramentos, que nos dão a certeza da meta. É a intercessão de Nossa Senhora – omnipotência suplicante – que apoia a nossa esperança. Assim como a ajuda que, in Ecclesia, nos é dada pelos santos: eles, que na vida combateram infatigavelmente por nós, não nos podem deixar sós. Josemaria Escrivá vai nos ajudar a enfrentar com alegria a nossa fadiga da santidade na vida cotidiana.

Mons. Flavio Capucci, Postulador da Causa de Canonização de Josemaria Escrivá

Suplemento de L’Osservatore Romano, 6 de Outubro de 2002