22 de outubro: São João Paulo II

Hoje a Igreja celebra a festividade de São João Paulo II. Com esta ocasião oferecemos as homílias que seus sucessores pronunciaram nas missas de exéquias, beatificação e canonização.

Missa de Exéquias (8 abril de 2005)

Homilia do Cardeal Ratzinger

«Segue-me», diz o Senhor ressuscitado a Pedro, como sua última palavra a este discípulo, escolhido para apascentar as suas ovelhas. «Segue-me» esta palavra lapidária de Cristo pode ser considerada a chave para compreender a mensagem que vem da vida do nosso saudoso e amado Papa João Paulo II, cujos despojos mortais hoje depomos na terra como semente de imortalidade o coração cheio de tristeza, mas também de jubilosa esperança e profunda gratidão.

São estes os sentimentos do nosso ânimo, Irmãos e Irmãs em Cristo, presentes na Praça de São Pedro, nas estradas adjacentes e em diversos outros lugares da cidade de Roma, povoada nestes dias por uma imensa multidão silenciosa e orante. A todos saúdo cordialmente. Também em nome do Colégio dos Cardeais, desejo dirigir a minha deferente saudação aos Chefes de Estado, de Governo e às Delegações dos vários Países. Saúdo as Autoridades e os Representantes das Igrejas e Comunidades cristãs, assim como das diversas religiões. Saúdo depois os Arcebispos, os Bispos, os sacerdotes, os religiosos, as religiosas e todos os fiéis que vieram dos cinco Continentes; de modo especial os jovens, que João Paulo II gostava de definir futuro e esperança da Igreja. A minha saudação alcança também aqueles que, em todo o mundo, estão unidos a nós através da rádio e da televisão nesta coral participação no solene rito de despedida do amado Pontífice.

«Segue-me» quando era jovem estudante Karol Wojtyla entusiasmava-se com a leitura, o teatro, a poesia. Trabalhando numa fábrica química, circundado e ameaçado pelo terror nazista, ouviu a voz do Senhor: «Segue-me»! Neste contexto muito particular começou a ler livros de filosofia e de teologia, entrando depois no Seminário clandestino criado pelo Cardeal Sapieha e, depois da guerra, pôde completar os seus estudos na faculdade teológica da Universidade Jagelónica de Cracóvia. Muitas vezes nas suas cartas aos sacerdotes e nos seus livros autobiográficos falou-nos do seu sacerdócio, para o qual foi ordenado a 1 de Novembro de 1946. Nestes textos interpreta o seu sacerdócio particular a partir de três palavras do Senhor. Em primeiro lugar, esta: «Não fostes vós que me escolhestes; fui eu que vos escolhi a vós e vos destinei a ir e dar fruto, e fruto que permaneça» (Jo 15, 16). A segunda palavra é: «O bom pastor dá a sua vida pelas ovelhas» (Jo 10, 11). E finalmente: «Assim como o Pai me tem amor, assim eu vos amo a vós. Permanecei no amor»(Jo 15, 9). Vemos nestas três frases toda a alma do nosso Santo Padre. Ele foi real e incansavelmente a todas as partes para levar fruto, um fruto que permanece. «Levantai-vos, vamos!», é o título do seu penúltimo livro. «Levantai-vos, vamos!» com estas palavras despertou-nos de uma fé cansada, do sono dos discípulos de ontem e de hoje. «Levantai-vos, vamos!» diz-nos também hoje a nós. O Santo Padre depois foi sacerdote até ao fim, porque ofereceu a sua vida a Deus pelas suas ovelhas e por toda a família humana, numa doação quotidiana ao serviço da Igreja e sobretudo nas difíceis provas dos últimos meses. Assim tornou-se uma só coisa com Cristo, o bom pastor que ama as suas ovelhas. E por fim, «permanecei no meu amor»: o Papa que procurou o encontro com todos, que teve uma capacidade de perdão e de abertura do coração a todos, diz-nos, também hoje, com estas palavras do Senhor: Habitando no amor de Cristo aprendemos, na escola de Cristo, a arte do verdadeiro amor.

«Segue-me»! Em Julho de 1958 começa para o jovem Karol Wojtila uma nova etapa no caminho com o Senhor e no seu seguimento. Karol foi, como de costume, com um grupo de jovens apaixonados de canoa aos lagos Masuri para umas férias a transcorrer juntos. Mas levava consigo uma carta que o convidava a apresentar-se ao Primaz da Polônia, Cardeal Wyszynski e podia adivinhar a finalidade do encontro: a sua nomeação para Bispo Auxiliar de Cracóvia. Deixar o ensino acadêmico, deixar esta estimulante comunhão com os jovens, deixar a grande arena intelectual para conhecer e interpretar o mistério da criatura homem, para tornar presente no mundo de hoje a interpretação crista do nosso ser tudo isto lhe devia parecer um perder-se a si mesmo, perder precisamente quanto se tinha tornado a identidade humana deste jovem sacerdote. «Segue-me» Karol Wojtyla aceitou, sentindo na chamada da Igreja a voz de Cristo. E depois deu-se conta de quanto é verdadeira a palavra do Senhor: «Quem procurar salvar a vida há-de perdê-la; e quem a perder, há-de conservá-la» (Lc 17, 33). O nosso Papa todos nós o sabemos nunca quis salvar a própria vida, tê-la para si; quis oferecer-se a si mesmo sem limites, até ao último momento, por Cristo e também por nós. Precisamente desta forma pôde experimentar como tudo o que confiara nas mãos do Senhor voltou de novo: o amor à palavra, à poesia, às letras foi uma parte essencial da sua missão pastoral e deu renovado vigor, renovada atualidade, renovada atração ao anúncio deste sinal de contradição.

«Segue-me»! Em Outubro de 1978 o Cardeal Wojtyla ouviu de novo a voz do Senhor. Renova-se o diálogo com Pedro narrado no Evangelho desta celebração: «Simão, Filho de João, tu amas-Me? Apascenta as minhas ovelhas!». À pergunta do Senhor: Karol, tu amas-Me?, o Arcebispo de Cracóvia respondeu do fundo do seu coração: «Senhor, tu sabes tudo, sabes que te amo». O amor de Cristo foi a força dominante do nosso amado Santo Padre; quem o viu rezar, quem o ouviu pregar, bem o sabe. E assim, graças a este profundo radicamento em Cristo pôde carregar um peso, que vai além das forças meramente humanas: ser pastor do rebanho de Cristo, da sua Igreja universal. Este não é o momento para falar de cada um dos conteúdos deste Pontificado tão rico. Gostaria apenas de ler dois trechos da liturgia de hoje, nos quais se encontram elementos centrais do seu anúncio. Na primeira leitura São Pedro e o Papa com São Pedro diz-nos: «Reconheço, na verdade, que Deus não faz acepção de pessoas, mas que, em qualquer povo, quem o teme e põe em prática a justiça, lhe é agradável. Enviou a sua palavra aos filhos de Israel, anunciando-lhes a Boa-Nova da paz, por Jesus Cristo, Ele que é Senhor de todos» (Act 10, 34-36). E, na segunda leitura, São Paulo e com São Paulo o nosso Papa defunto exorta-nos em voz alta: «Meus caríssimos e saudosos irmãos, minha coroa e alegria, permanecei assim firmes no Senhor, caríssimos»(Fl4, 1).

«Segue-me»! Juntamente com o mandato de apascentar o seu rebanho, Cristo anunciou a Pedro o seu martírio. Com esta palavra conclusiva e recapitulativa do diálogo sobre o amor e sobre o mandato de pastor universal, o Senhor recorda outro diálogo, tido no contexto da última ceia. Nele, Jesus dissera: «Para onde Eu vou, vós não podeis ir». Disse Pedro: «Senhor, para onde vais?». Jesus respondeu-lhe: «Não podes seguir-me agora aonde eu vou; mas me seguirás mais tarde» (Jo 13, 33.36). Jesus, da ceia vai para a cruz, para a ressurreição entra no mistério pascal; Pedro ainda não o pode seguir. Agora depois da ressurreição chegou este momento, este «mais tarde». Apascentando o rebanho de Cristo, Pedro entra no mistério pascal, encaminha-se para a cruz e para a ressurreição. O Senhor diz isto com as seguintes palavras, «... quando eras mais novo... ias onde querias, mas quando fores velho, estenderás as mãos e outro há-de atar o cinto e levar-te para onde não queres» (Jo 21, 18). No primeiro período do seu pontificado o Santo Padre, ainda jovem e cheio de forças, sob a guia de Cristo ia até aos confins do mundo. Mas depois, entrou cada vez mais na comunhão dos sofrimentos de Cristo, compreendeu cada vez mais a verdade das palavras: «Outro há-de atar o cinto...». E precisamente nesta comunhão com o Senhor sofredor anunciou incansavelmente e com renovada intensidade o Evangelho, o mistério do amor que vai até ao fim (cf. Jo 13, 1).

Ele interpretou para nós o mistério pascal como mistério da divina misericórdia. Escreveu no seu último livro: o limite imposto ao mal «é definitivamente a divina misericórdia» (Memória e identidade, pág. 70). E refletindo sobre o atentado diz, «Cristo, ao sofrer por todos nós, conferiu um novo sentido ao sofrimento; introduziu aquele amor numa nova dimensão, numa nova ordem... E o sofrimento que queima e consome o mal com o fogo do amor e haure também do pecado um florescimento de bem»(pág. 199). Animado por esta visão, o Papa sofreu e amou em comunhão com Cristo e foi por isso que a mensagem do seu sofrimento e do seu silêncio foi tão eloquente e fecundo.

Divina Misericórdia: o Santo Padre encontrou um reflexo mais puro da misericórdia de Deus na Mãe de Deus. Ele, que ainda em tenra idade perdeu a mãe, amou muito mais a Mãe divina. Ouviu as palavras do Senhor crucificado como se fossem ditas precisamente a ele: «Eis a tua mãe!». E fez como o discípulo predileto: acolheu-a no íntimo do seu ser, Totus tuus. E da mãe aprendeu a conformar-se com Cristo.

Para todos nós permanece inesquecível como neste último domingo de Páscoa da sua vida, o Santo Padre, marcado pelo sofrimento, se mostrou mais uma vez da janela do Palácio Apostólico e pela última vez deu a bênção «Urbi et Orbi». Podemos ter a certeza de que o nosso amado Papa agora está na janela da casa do Pai, vê-nos e abençoa-nos. Sim, abençoe-nos, Santo Padre. Nós confiamos a tua amada alma à Mãe de Deus, tua Mãe, que te guiou todos os dias e te guiará agora à glória eterna do Seu Filho, Jesus Cristo nosso Senhor. Amém.

Missa de beatificação (1 maio de 2011)

Homilia do Papa Emérito Bento XVI

Amados irmãos e irmãs,

Passaram já seis anos desde o dia em que nos encontrávamos nesta Praça para celebrar o funeral do Papa João Paulo II. Então, se a tristeza pela sua perda era profunda, maior ainda se revelava a sensação de que uma graça imensa envolvia Roma e o mundo inteiro: graça esta, que era como que o fruto da vida inteira do meu amado Predecessor, especialmente do seu testemunho no sofrimento. Já naquele dia sentíamos pairar o perfume da sua santidade, tendo o Povo de Deus manifestado de muitas maneiras a sua veneração por ele. Por isso, quis que a sua Causa de Beatificação pudesse, no devido respeito pelas normas da Igreja, prosseguir com discreta celeridade. E o dia esperado chegou! Chegou depressa, porque assim aprouve ao Senhor: João Paulo II é Beato!

Desejo dirigir a minha cordial saudação a todos vós que, nesta circunstância feliz, vos reunistes, tão numerosos, aqui em Roma vindos de todos os cantos do mundo: cardeais, patriarcas das Igrejas Católicas Orientais, irmãos no episcopado e no sacerdócio, delegações oficiais, embaixadores e autoridades, pessoas consagradas e fiéis leigos; esta minha saudação estende-se também a quantos estão unidos connosco através do rádio e da televisão.

Estamos no segundo domingo de Páscoa, que o Beato João Paulo II quis intitular Domingo da Divina Misericórdia. Por isso, se escolheu esta data para a presente celebração, porque o meu Predecessor, por um desígnio providencial, entregou o seu espírito a Deus justamente ao anoitecer da vigília de tal ocorrência. Além disso, hoje tem início o mês de Maio, o mês de Maria; e neste dia celebra-se também a memória de São José operário. Todos estes elementos concorrem para enriquecer a nossa oração; servem-nos de ajuda, a nós que ainda peregrinamos no tempo e no espaço; no Céu, a festa entre os Anjos e os Santos é muito diferente! E todavia Deus é um só, e um só é Cristo Senhor que, como uma ponte, une a terra e o Céu, e neste momento sentimo-lo muito perto, sentimo-nos quase participantes da liturgia celeste.

«Felizes os que acreditam sem terem visto» (Jo 20, 29). No Evangelho de hoje, Jesus pronuncia esta bem-aventurança: a bem-aventurança da fé. Ela chama de modo particular a nossa atenção, porque estamos reunidos justamente para celebrar uma Beatificação e, mais ainda, porque o Beato hoje proclamado é um Papa, um Sucessor de Pedro, chamado a confirmar os irmãos na fé. João Paulo II é Beato pela sua forte e generosa fé apostólica. E isto traz imediatamente à memória outra bem-aventurança: «Feliz de ti, Simão, filho de Jonas, porque não foram a carne e o sangue que to revelaram, mas sim meu Pai que está nos Céus» (Mt 16, 17). O que é que o Pai celeste revelou a Simão? Que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus vivo. Por esta fé, Simão se torna «Pedro», rocha sobre a qual Jesus pode edificar a sua Igreja. A bem-aventurança eterna de João Paulo II, que a Igreja tem a alegria de proclamar hoje, está inteiramente contida nestas palavras de Cristo: «Feliz de ti, Simão» e «felizes os que acreditam sem terem visto». É a bem-aventurança da fé, cujo dom também João Paulo II recebeu de Deus Pai para a edificação da Igreja de Cristo.

Entretanto perpassa pelo nosso pensamento mais uma bem-aventurança que, no Evangelho, precede todas as outras. É a bem-aventurança da Virgem Maria, a Mãe do Redentor. A Ela, que acabava de conceber Jesus no seu ventre, diz Santa Isabel: «Bem-aventurada aquela que acreditou no cumprimento de tudo quanto lhe foi dito da parte do Senhor» (Lc 1, 45). A bem-aventurança da fé tem o seu modelo em Maria, pelo que a todos nos enche de alegria o fato de a beatificação de João Paulo II ter lugar no primeiro dia deste mês mariano, sob o olhar materno d'Aquela que, com a sua fé, sustentou a fé dos Apóstolos e não cessa de sustentar a fé dos seus sucessores, especialmente de quantos são chamados a sentar-se na cátedra de Pedro. Nas narrações da ressurreição de Cristo, Maria não aparece, mas a sua presença pressente-se em toda a parte: é a Mãe, a quem Jesus confiou cada um dos discípulos e toda a comunidade. De forma particular, notamos que a presença real e materna de Maria aparece assinalada por São João e São Lucas nos contextos que precedem tanto o Evangelho como a primeira Leitura de hoje: na narração da morte de Jesus, onde Maria aparece aos pés da Cruz (Jo 19, 25); e, no começo dos Actos dos Apóstolos, que a apresentam no meio dos discípulos reunidos em oração no Cenáculo (Act 1, 14).

Também a segunda Leitura de hoje nos fala da fé, e é justamente São Pedro que escreve, cheio de entusiasmo espiritual, indicando aos recém-baptizados as razões da sua esperança e da sua alegria. Apraz-me observar que nesta passagem, situada na parte inicial da sua Primeira Carta, Pedro exprime-se não no modo exortativo, mas indicativo. De fato, escreve: «Isto vos enche de alegria»; e acrescenta: «Vós amais Jesus Cristo sem O terdes conhecido, e, como n'Ele acreditais sem O verdes ainda, estais cheios de alegria indescritível e plena de glória, por irdes alcançar o fim da vossa fé: a salvação das vossas almas» (1 Ped 1, 6.8-9). Está tudo no indicativo, porque existe uma nova realidade, gerada pela ressurreição de Cristo, uma realidade que nos é acessível pela fé. «Esta é uma obra admirável – diz o Salmo (118, 23) – que o Senhor realizou aos nossos olhos», os olhos da fé.

Queridos irmãos e irmãs, hoje diante dos nossos olhos brilha, na plena luz de Cristo ressuscitado, a amada e venerada figura de João Paulo II. Hoje, o seu nome junta-se à série dos Santos e Beatos que ele mesmo proclamou durante os seus quase 27 anos de pontificado, lembrando com vigor a vocação universal à medida alta da vida cristã, à santidade, como afirma a Constituição conciliar Lumem gentium sobre a Igreja. Os membros do Povo de Deus – bispos, sacerdotes, diáconos, fiéis leigos, religiosos e religiosas – todos nós estamos a caminho da Pátria celeste, tendo-nos precedido a Virgem Maria, associada de modo singular e perfeito ao mistério de Cristo e da Igreja. Karol Wojtyła, primeiro como Bispo Auxiliar e depois como Arcebispo de Cracóvia, participou no Concílio Vaticano II e bem sabia que dedicar a Maria o último capítulo da Constituição sobre a Igreja significava colocar a Mãe do Redentor como imagem e modelo de santidade para todo o cristão e para a Igreja inteira. Foi esta visão teológica que o Beato João Paulo II descobriu na sua juventude, tendo-a depois conservado e aprofundado durante toda a vida; uma visão, que se resume no ícone bíblico de Cristo crucificado com Maria ao pé da Cruz. Um ícone que se encontra no Evangelho de João (19, 25-27) e está sintetizado nas armas episcopais e, depois, papais de Karol Wojtyła: uma cruz de ouro, um «M» na parte inferior direita e o lema «Totus tuus», que corresponde à conhecida frase de São Luís Maria Grignion de Monfort, na qual Karol Wojtyła encontrou um princípio fundamental para a sua vida: «Totus tuus ego sum et omnia mea tua sunt. Accipio Te in mea omnia. Praebe mihi cor tuum, Maria – Sou todo vosso e tudo o que possuo é vosso. Tomo-vos como toda a minha riqueza. Dai-me o vosso coração, ó Maria» (Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem, n. 266).

No seu Testamento, o novo Beato deixou escrito: «Quando, no dia 16 de Outubro de 1978, o conclave dos cardeais escolheu João Paulo II, o Card. Stefan Wyszyński, Primaz da Polônia, disse-me: "A missão do novo Papa será a de introduzir a Igreja no Terceiro Milênio"». E acrescenta: «Desejo mais uma vez agradecer ao Espírito Santo pelo grande dom do Concílio Vaticano II, do qual me sinto devedor, juntamente com toda a Igreja e sobretudo o episcopado. Estou convencido de que será concedido ainda por muito tempo, às sucessivas gerações, haurir das riquezas que este Concílio do século XX nos prodigalizou. Como Bispo que participou no evento conciliar, desde o primeiro ao último dia, desejo confiar este grande patrimônio a todos aqueles que são, e serão, chamados a realizá-lo. Pela minha parte, agradeço ao Pastor eterno que me permitiu servir esta grandíssima causa ao longo de todos os anos do meu pontificado». E qual é esta causa? É a mesma que João Paulo II enunciou na sua primeira Missa solene, na Praça de São Pedro, com estas palavras memoráveis: «Não tenhais medo! Abri, melhor, escancarai as portas a Cristo!». Aquilo que o Papa recém-eleito pedia a todos, começou, ele mesmo, a fazê-lo: abriu a Cristo a sociedade, a cultura, os sistemas políticos e econômicos, invertendo, com a força de um gigante – força que lhe vinha de Deus –, uma tendência que parecia irreversível. Com o seu testemunho de fé, de amor e de coragem apostólica, acompanhado por uma grande sensibilidade humana, este filho exemplar da Nação Polaca ajudou os cristãos de todo o mundo a não ter medo de se dizerem cristãos, de pertencerem à Igreja, de falarem do Evangelho. Numa palavra, ajudou-nos a não ter medo da verdade, porque a verdade é garantia de liberdade. Sintetizando ainda mais: deu-nos novamente a força de crer em Cristo, porque Cristo é o Redentor do homem – Redemptor hominis: foi este o tema da sua primeira Encíclica e o fio condutor de todas as outras.

Karol Wojtyła subiu ao sólio de Pedro trazendo consigo a sua reflexão profunda sobre a confrontação entre o marxismo e o cristianismo, centrada no homem. A sua mensagem foi esta: o homem é o caminho da Igreja, e Cristo é o caminho do homem. Com esta mensagem, que é a grande herança do Concílio Vaticano II e do seu «timoneiro» – o Servo de Deus Papa Paulo VI –, João Paulo II foi o guia do Povo de Deus ao cruzar o limiar do Terceiro Milênio, que ele pôde, justamente graças a Cristo, chamar «limiar da esperança». Na verdade, através do longo caminho de preparação para o Grande Jubileu, ele conferiu ao cristianismo uma renovada orientação para o futuro, o futuro de Deus, que é transcendente relativamente à história, mas incide na história. Aquela carga de esperança que de certo modo fora cedida ao marxismo e à ideologia do progresso, João Paulo II legitimamente reivindicou-a para o cristianismo, restituindo-lhe a fisionomia autêntica da esperança, que se deve viver na história com um espírito de «advento», numa existência pessoal e comunitária orientada para Cristo, plenitude do homem e realização das suas expectativas de justiça e de paz.

Por fim, quero agradecer a Deus também a experiência de colaboração pessoal que me concedeu ter longamente com o Beato Papa João Paulo II. Se antes já tinha tido possibilidades de o conhecer e estimar, desde 1982, quando me chamou a Roma como Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, pude durante 23 anos permanecer junto dele crescendo sempre mais a minha veneração pela sua pessoa. O meu serviço foi sustentado pela sua profundidade espiritual, pela riqueza das suas intuições. Sempre me impressionou e edificou o exemplo da sua oração: entranhava-se no encontro com Deus, inclusive no meio das mais variadas incumbências do seu ministério. E, depois, impressionou-me o seu testemunho no sofrimento: pouco a pouco o Senhor foi-o despojando de tudo, mas permaneceu sempre uma «rocha», como Cristo o quis. A sua humildade profunda, enraizada na união íntima com Cristo, permitiu-lhe continuar a guiar a Igreja e a dar ao mundo uma mensagem ainda mais eloquente, justamente no período em que as forças físicas definhavam. Assim, realizou de maneira extraordinária a vocação de todo o sacerdote e bispo: tornar-se um só com aquele Jesus que diariamente recebe e oferece na Igreja.

Feliz és tu, amado Papa João Paulo II, porque acreditaste! Continua do Céu – nós te pedimos – a sustentar a fé do Povo de Deus. Muitas vezes, do Palácio, tu nos abençoaste nesta Praça! Hoje nós te pedimos: Santo Padre, abençoa-nos! Amém.

Missa de canonização (27 abril de 2014)

Homilia do Papa Franciso

No centro deste domingo, que encerra a Oitava de Páscoa e que São João Paulo II quis dedicar à Misericórdia Divina, encontramosas chagas gloriosas de Jesus ressuscitado.

Já as mostrara quando apareceu pela primeira vez aos Apóstolos, ao anoitecer do dia depois do sábado, o dia da Ressurreição. Mas, naquela noite – como ouvimos –, Tomé não estava; e quando os outros lhe disseram que tinham visto o Senhor, respondeu que, se não visse e tocasse aquelas feridas, não acreditaria. Oito dias depois, Jesus apareceu de novo no meio dos discípulos, no Cenáculo, encontrando-se presente também Tomé; dirigindo-Se a ele, convidou-o a tocar as suas chagas. E então aquele homem sincero, aquele homem habituado a verificar tudo pessoalmente, ajoelhou-se diante de Jesus e disse: «Meu Senhor e meu Deus!» (Jo 20, 28).

Se as chagas de Jesus podem ser de escândalo para a fé, são também a verificação da fé. Por isso, no corpo de Cristo ressuscitado, as chagas não desaparecem, continuam, porque aquelas chagas são o sinal permanente do amor de Deus por nós, sendo indispensáveis para crer em Deus: não para crer que Deus existe, mas sim que Deus é amor, misericórdia, fidelidade. Citando Isaías, São Pedro escreve aos cristãos: «pelas suas chagas, fostes curados» (1 Ped 2, 24; cf. Is 53, 5).

São João XXIII e São João Paulo II tiveram a coragem de contemplar as feridas de Jesus, tocar as suas mãos chagadas e o seu lado trespassado. Não tiveram vergonha da carne de Cristo, não se escandalizaram d'Ele, da sua cruz; não tiveram vergonha da carne do irmão (cf. Is 58, 7), porque em cada pessoa atribulada viam Jesus. Foram dois homens corajosos, cheios da parresia do Espírito Santo, e deram testemunho da bondade de Deus, da sua misericórdia, à Igreja e ao mundo.

Foram sacerdotes, bispos e papas do século XX. Conheceram as suas tragédias, mas não foram vencidos por elas. Mais forte, neles, era Deus; mais forte era a fé em Jesus Cristo, Redentor do homem e Senhor da história; mais forte, neles, era a misericórdia de Deus que se manifesta nestas cinco chagas; mais forte era a proximidade materna de Maria.

Nestes dois homens contemplativos das chagas de Cristo e testemunhas da sua misericórdia, habitava «uma esperança viva», juntamente com «uma alegria indescritível e irradiante» (1 Ped 1, 3.8). A esperança e a alegria que Cristo ressuscitado dá aos seus discípulos, e de que nada e ninguém os pode privar. A esperança e a alegria pascais, passadas pelo crisol do despojamento, do aniquilamento, da proximidade aos pecadores levada até ao extremo, até à náusea pela amargura daquele cálice. Estas são a esperança e a alegria que os dois santos Papas receberam como dom do Senhor ressuscitado, tendo-as, por sua vez, doado em abundância ao Povo de Deus, recebendo sua eterna gratidão.

Esta esperança e esta alegria respiravam-se na primeira comunidade dos crentes, em Jerusalém, de que falam os Actos dos Apóstolos (cf. 2, 42-47), que ouvimos na segunda Leitura. É uma comunidade onde se viveo essencial do Evangelho, isto é, o amor, a misericórdia, com simplicidade e fraternidade.

E esta é a imagem de Igreja que o Concílio Vaticano II teve diante de si. João XXIII e João Paulo II colaboraram com o Espírito Santo para restabelecer e actualizar a Igreja segundo a sua fisionomia originária, a fisionomia que lhe deram os santos ao longo dos séculos. Não esqueçamos que são precisamente os santos que levam avante e fazem crescer a Igreja. Na convocação do Concílio, São João XXIII demonstrou uma delicada docilidade ao Espírito Santo, deixou-se conduzir e foi para a Igreja um pastor, um guia-guiado, guiado pelo Espírito. Este foi o seu grande serviço à Igreja; por isso gosto de pensar nele como o Papa da docilidade ao Espírito Santo.

Neste serviço ao Povo de Deus, São João Paulo II foi o Papa da família. Ele mesmo disse uma vez que assim gostaria de ser lembrado: como o Papa da família. Apraz-me sublinhá-lo no momento em que estamos a viver um caminho sinodal sobre a família e com as famílias, um caminho que ele seguramente acompanha e sustenta do Céu.

Que estes dois novos santos Pastores do Povo de Deus intercedam pela Igreja para que, durante estes doisanos de caminho sinodal, seja dócilao Espírito Santo no serviço pastoral à família. Que ambos nos ensinem a não nos escandalizarmos das chagas de Cristo, a penetrarmos no mistério da misericórdia divina que sempre espera, sempre perdoa, porque sempre ama.