1932: Madri, Estação de Mediodía

Ao terminar os estudos secundários, com dezessete anos, fui para a capital de Espanha, pois naquela altura só se podia estudar Arquitetura em Madri ou em Barcelona, e num belo dia de 1932 cheguei, com cara de provinciano despistado e uma mão-cheia de sonhos e de malas à Estação de Mediodía em Madri.

Naqueles anos eu era um jovem que sonhava ser marinheiro e vivia despreocupado dos ideais políticos que se respiravam. O mar apaixonava-me e tinha herdado o gosto pelos barcos do meu avô paterno que tinha sido proprietário de uma escuna mercantil que atravessava o Atlântico à vela, e tinha mandado construir um veleiro a motor de três mastros que fazia a rota Cartagena - Marselha, partindo do porto vizinho de Águilas.

A minha mãe, porém, ao ter conhecimento dos meus propósitos, pôs-me literalmente os pés no chão e negou-se rotundamente a que embarcasse – nunca foi tão bem dito – nesse projeto. Assim, não tive outro remédio senão orientar-me para outra das minhas grandes inclinações, desta vez bem assente em terra firme, e decidi ser arquiteto.

De marinheiro a arquiteto

Dito e feito: terminado o liceu, com dezessete anos, fui para a capital de Espanha, pois naquela altura só se podia estudar Arquitetura em Madri ou em Barcelona, e num belo dia de 1932 cheguei, com cara de provinciano despistado e uma mão-cheia de sonhos e de malas à Estação de Mediodía em Madri. Instalei-me no Hotel Sari, no nº 2 da Rua do Arenal, muito perto da Porta do Sol.

E pus-me a estudar.

Guardo muito boas recordações de Madri dos inícios dos anos trinta. Era uma cidade surpreendente. Era uma delícia passear ao cair da tarde pelas suas amplas avenidas, perder-se nos salões do Museu do Prado ou ir descobrindo, a pouco e pouco, os grandes edifícios: o Banco de Espanha, o Casino, o Teatro da Princesa, o Ministério do Fomento, os Jerônimos..., ou deambular sem pressas pelos passeios de Recoletos, ou pelo da Castelhana, que era o mais aristocrático de todos e chegava até ao que então chamávamos "os altos do Hipódromo".

Era uma cidade agradável devido às suas gentes, ao seu clima, à sua arquitetura; mas não tanto do ponto de vista social. Naqueles anos deu-se um crescendo de desordens, de tensões, de distúrbios entre os estudantes; sucediam-se os confrontos e as greves; foi aumentando o clima anticlerical e a efervescência política que atravessávamos fazia pressagiar males piores. Só a alguns; pelo menos eu não pensava que, como consequência de tudo aquilo, se pudesse acabar num banho de sangue. Talvez devido à inexperiência dos meus 18 anos. Realmente, se alguém me tivesse dito naqueles tempos até que ponto iria sofrer essas consequências na minha própria carne, muito poucos anos depois, não teria acreditado de modo nenhum.

Primeiros amigos

Mas não adiantemos os acontecimentos: naquele longínquo ano de 1932 eu era apenas um jovem estudante vindo da província, preocupado em me integrar no meio universitário e, como todo o recém-chegado, desejoso de fazer novos amigos. E neste aspecto, tive realmente sorte. Um dos primeiros rapazes que conheci foi Ignacio de Landecho, que, apesar da sua juventude, já era um homem feito. Forte, decidido, íntegro e apaixonado, Ignacio também preparava a admissão à Escola de Arquitetura e foi, sem dúvida, um dos meus melhores amigos durante aqueles anos.

Admirava no Ignacio a sua fortaleza, a sua audácia e a desenvoltura com que se movimentava em todos os ambientes. Na Castelhana, na varanda da casa de um amigo comum, dois ou três andares abaixo, também numa varanda, estavam umas raparigas conhecidas que começaram a gritar: Desce, Ignacio! Desce! Então, Ignacio, sem hesitar um momento, saltou para o outro lado da grade, desceu um andar e outro andar, agarrando-se às saliências do edifício até chegar à varanda onde estavam as raparigas, enquanto todos sustínhamos a respiração. Era assim o Ignacio.

Combinávamos frequentemente estudar em conjunto algumas matérias no meu quarto do Hotel Sari.

Não se admire o leitor do nome do meu pomposo alojamento: realmente o Sari a única coisa que tinha de hotel era o nome. Apesar da sua sonante denominação, aquilo não passava de uma pensãozita de segunda, com a dinâmica própria da vida estudantil.

Nunca esquecerei aquelas aulas de Geometria descritiva às oito horas da manhã no casarão de S. Bernardo. Ainda era noite e aquela sala imensa iluminada com lâmpadas elétricas deprimia-me terrivelmente. Quantas horas ali passei eu, lado a lado com Ignacio, escutando o bater do giz no quadro: números, letras e figuras geométricas; números, números e mais números...!••À medida que os anos passam vejo mais nitidamente que foi para mim uma grande sorte aquela amizade com o Ignacio, com quem me entendi tão bem desde o primeiro momento.

Ignacio tinha muito mais formação espiritual do que eu; tinha estudado num bom colégio de religiosos e tinha parentes jesuítas. Eu vinha de colégios de leigos, e embora a minha mãe me tivesse transmitido os rudimentos da vida cristã, partilhava alguns pontos de vista do meu pai no que se refere à religião.

O encontro com o Padre

Isto não significa que nessa altura eu fosse uma espécie de pagão recalcitrante. Acreditava em Deus, considerava-me católico, tinha fé e frequentava os sacramentos de vezes em quando; mas carecia de conhecimentos religiosos minimamente adequados à minha idade. Tinha herdado de meu pai algumas suspeições anticlericais e sentia, por exemplo, um grande preconceito - quase alergia – quanto aos sacerdotes e religiosos.

Não saberia definir bem a causa destes preconceitos: mas a verdade é que os tinha, e não sabia – nem queria saber – nada de "padres", como os denominava com tom depreciativo. E o curioso é que, até então, nunca tinha falado com nenhum cara a cara, exceto nas ocasiões em que me aproximava de um confessionário. Naturalmente, nunca tinha tido um confessor certo.

Estes preconceitos tinham-me levado sempre a "manter as distâncias" com os poucos sacerdotes que se tinham cruzado no meu caminho: um ou outro professor da escola de ensino secundário ou algum pároco. Observava-os com espírito crítico e incomodava-me a educação que eu julgava – sem dúvida injustamente – um tanto peculiar dos clérigos daqueles tempos.

Por isso, quando em 1935, três anos depois de chegar a Madri, um amigo de infância, Agustín Thomás Moreno, me falou com admiração de um sacerdote que tinha conhecido recentemente, Josemaria Escrivá, e me convidou a conhecê-lo, respondi-lhe com uma reação irônica de autossuficiência e um comentário sarcástico.

Voltamos a ver-nos – algum tempo mais tarde, porque não nos encontrávamos muito – e o Agustín voltou a falar-me daquele sacerdote; eu continuei a não ligar, e como se nada tivesse ouvido.

Conversas com o Padre

Felizmente, Agustín foi teimoso. E, numa dessas raras ocasiões em que nos encontramos, disse-me algumas frases de profundo conteúdo espiritual - que eu calculei que não fossem de sua invenção, mas do sacerdote em causa – que, muito contra minha vontade, me afetaram. E acedi a que mo apresentasse.

Cada um é como Deus o fez. Por que acedi? Tenho de reconhecer: pura e simplesmente por curiosidade. A curiosidade fazia parte do meu modo de ser: gostava de me dar com pessoas mais velhas que eu, de conhecer novos ambientes e de prestar atenção a tudo, até aos mínimos detalhes. Mas, naturalmente, fui com o firme propósito de não falar de questões pessoais com aquele padre: ia ver, observar, analisar; nada mais.

Encontrei-me uma tarde com Agustín, em fins de Janeiro de 1935. Levou-me ao nº 50 da Rua de Ferraz, no bairro de Argüelles. Subimos ao primeiro andar. Como sempre, eu ia reparando em tudo. Ali, junto da porta, numa placa reluzente, lia-se: "Academia D Y A". Entramos. O vestíbulo produziu em mim uma grata impressão inicial. Não era como eu pensava: tinha imaginado um lugar desarrumado e frio, e encontrei-me num vestíbulo de uma casa de família de classe média, mesmo modesta, decorada com bom gosto e sobretudo muito limpa. O ambiente era cordial e descontraído. Bom começo. Agradou-me.

Mandaram-nos entrar para uma pequena sala, onde esperamos uns momentos. E de repente entrou um sacerdote jovem e sorridente, de uns trinta anos, que se deteve um instante olhando-me afavelmente por debaixo da armação superior dos seus óculos redondos, com o corpo ligeiramente inclinado para a frente.

-Padre – disse o Agustín -, este é o meu amigo Pedro Casciaro...

Então aquele jovem sacerdote, desculpando-se perante Agustín - como se eu fosse uma personagem importante – pediu-lhe que nos deixasse sozinhos uns minutos. Sentamo-nos a conversar e aquela conversa foi o suficiente para deitar por terra, de um golpe, todos os meus preconceitos.

Realmente o Padre, como lhe chamavam todos, de acordo com a prática habitual de denominar os sacerdotes naquela época, não tinha nada a ver com a ideia que tinha feito dele: esperava um padre espiritualista e algo estranho, de acordo com a caricatura dos meus preconceitos, e encontrei-me com um sacerdote jovem, de trinta e três anos, cheio de vida, cordial, simpático, muito espontâneo e natural, que me infundiu desde o primeiro momento uma grande confiança e, ao mesmo tempo, um respeito muito superior ao devido à sua idade. Chamou-me profundamente a atenção a sua bondade, a sua alegria contagiosa, o seu bom-humor … e abri-lhe a minha alma como nunca o tinha feito com nenhuma outra pessoa ao longo de toda a minha vida.

Não saberia precisar quanto tempo estivemos a conversar, o mais provável é que não fosse mais do que três quartos de hora. Só recordo que, ao despedir-me, lhe disse:

- Padre: gostaria que fosse meu diretor espiritual.

A direção espiritual

Não imagine o leitor que por eu dizer isto tinha naquela altura uma ideia muito clara do que significavam estas duas palavras juntas: “direção espiritual". Sabia que algumas pessoas a tinham, como o meu amigo Ignacio; e tinha lido na necrologia do ABC que entre os familiares do defunto se citava frequentemente: "O seu diretor espiritual, o Rvº Pe. tal e tal". Aqui terminava o meu profundo conhecimento sobre o tema.

Combinamos voltar a ver-nos regularmente e na entrevista seguinte dei-me conta que aquele impacto inicial não tinha sido uma impressão passageira, de um momento. À medida que falava com o Padre, e lhe abria a minha alma de par em par, ia descobrindo, progressivamente, a finura da sua espiritualidade, a sua inteligência privilegiada e a sua vasta cultura. E, muito especialmente, a sua enorme capacidade de amar e a sua grande compreensão.

Não era só coisa minha: muitos outros amigos meus e companheiros de estudo que o conheceram, me comentaram o mesmo: como eu, tinham-se sentido compreendidos pelo Padre desde o primeiro momento. Via-se claramente que nos queria de verdade e que nos levava muito a sério. E que se preocupava com todas as nossas coisas; porque fui vendo, semana após semana, que o Padre não se ocupava só de aspectos puramente espirituais: ao mesmo tempo em que nos exigia em determinados pontos da ascética cristã, ia-nos inculcando um profundo sentido de responsabilidade e ia-nos educando humanamente, quase sem nos darmos conta, com a delicadeza do seu comportamento e com a elegância do seu trato.

Recordo um detalhe pequeno, mas muito expressivo. Poucos meses depois de me conhecer, o Padre convidou-me para almoçar na Residência. Podia tê-lo feito por palavras ou pelo telefone, mas preferiu enviar-me um cartão, onde escreveu umas linhas convidando-me de um modo carinhoso e amável, como se eu fosse uma personagem importante! E não era um caso especial: tratava assim toda a gente, embora fossem, como no meu caso, estudantes dos primeiros anos.

O Oratório da Rua de Ferraz

Um dia fui falar com o Padre e encontrei-o particularmente satisfeito. Habitualmente, quando falávamos, eu começava primeiro e o Padre escutava-me até ao fim, muito atento, sem interromper: perguntava-me pela minha vida interior, pelos estudos, pelos meus pais... E depois me dava conselhos. Mas naquele dia não foi assim: tomou ele a palavra desde o primeiro momento e explicou-me, contentíssimo, que D. Leopoldo Eijo y Garay, Bispo de Madri, tinha concedido a autorização necessária para reservar o Santíssimo no oratório da Residência.

O Padre tinha-me mostrado esse oratório logo na primeira visita que fiz com o Agustín Thomás. Recordo-o perfeitamente: era um oratório pequeno, recolhido, situado numa sala contígua ao vestíbulo, que dava para um pátio grande e tranquilo. Era piedoso, simples, agradável, e via-se que estava arranjado com carinho. Na parede do fundo, sobre o altar, havia um quadro que representava os discípulos de Emaús conversando com o Senhor. Pouco depois, esse quadro foi substituído por uma imagem de Nossa Senhora do Pilar esculpida em madeira, sobre uma mísula, com um fundo de damasco verde seco. Gostei do oratório, como disse; porém, como prova evidente da minha escassa formação religiosa, não reparei que não tinha sacrário.

Nesse dia, o Padre falou-me com grande alegria da autorização que lhe tinham dado e eu, na verdade, não entendia bem a que se referia. Faltava-me a formação cristã necessária para compreender quando e como se pode deixar o Santíssimo num lugar sagrado. Enquanto o escutava, ia cogitando interiormente como podia ser aquilo; se havia em Madri alguma instituição onde se vivia maravilhosamente a fé – pensava eu – era naquela Residência; e se havia um sacerdote excepcionalmente santo e inteligente, era o que naquele momento tinha na minha frente. Logo, concluía na minha ignorância – o Senhor Bispo já podia ter-lhe dado há mais tempo aquela autorização!

-Padre, e durante a noite – perguntei – é costume deixar o Santíssimo nas igrejas?

Esta pergunta mostrava claramente a minha quase absoluta ignorância em matéria de religião. Depois lhe perguntei quanto tempo se podia deixar o Senhor sozinho naquele oratório, porque tinha visto que em algumas igrejas às vezes não havia ninguém; e continuei a fazer-lhe outras perguntas deste gênero, e até mais simples. O Padre foi esclarecendo, com grande paciência, uma por uma, todas as minhas dúvidas primárias e falou-me demoradamente sobre a Eucaristia, com umas palavras que manifestavam a sua profunda e sincera devoção a Jesus Sacramentado.

- O Senhor – comentou-me, emocionado – jamais deverá sentir-se aqui sozinho e esquecido; se por vezes o está em algumas igrejas, nesta casa, onde vivem tantos estudantes e que é frequentada por tanta gente jovem, há-de sentir-se contente, rodeado da piedade de todos. Tu, ajuda-me a fazer-lhe companhia...

Comoveu-me aquele amor ardente à Eucaristia; e como a Residência ficava mais ou menos no meu caminho para a Escola de Arquitetura, decidi, com muito gosto, passar todas as vezes que pudesse por aquele Oratório para fazer um bocadinho de oração diante do Sacrário, como o Padre nos aconselhava a fazer. Foi nessa ocasião, sem dúvida, que me ditou o texto da comunhão espiritual:

- Eu quisera, Senhor, receber-vos com aquela pureza, humildade e devoção com que vos recebeu a vossa Santíssima Mãe, com o espírito e o fervor dos santos...

Pouco depois, a 31 de Março de 1935, o Padre pôde celebrar a primeira Missa naquele oratório, e o Santíssimo ficou reservado no primeiro sacrário da Obra. Aquele sacrário era um simples tabernáculo de madeira que umas religiosas tinham emprestado ao Padre. Simultaneamente à alegria, o Padre experimentava uma grande pena: a de não poder destinar ao Senhor um sacrário e vasos sagrados mais dignos, porque queria sempre oferecer a Deus o sacrifício de Abel, reservando o melhor para o culto divino.

- O altar e o tabernáculo - comentava anos depois – devem ser bons, sempre que se puder. Nós, no princípio, não pudemos fazê-lo assim. A primeira custódia era de ferro pintado com purpurina; só o óculo para a Sagrada Forma era de prata dourada. E o primeiro Sacrário era de madeira: Emprestou-mo uma religiosa Reparadora, que eu estimava muito. Que pena me dava oferecer ao Senhor tão pouca coisa!

Deus no cotidiano

Semana após semana, através daquela direção espiritual, o Padre foi-me aproximando do Senhor, ajudando-me a melhorar a minha relação com Deus. Não de repente: pouco a pouco, com paciência, embora cada vez com maior intensidade: sem pressa e sem pausa. Foi-me ensinando a fazer todos os dias um tempo de oração mental, a falar com o Senhor ao longo do meu dia de estudante normal e corrente, e a viver na presença de Deus. Acerca deste último ponto, um dia expus-lhe as minhas dificuldades:

- Sabe, Padre: quando me meto a fundo em qualquer coisa, ponho aí os cinco sentidos e esqueço-me completamente de tudo o mais.

Era verdade: quando estudava, enfronhava-me nos livros de tal modo, que as horas passavam a voar, sem a menor referência sobrenatural; e quando me punha a desenhar, “metia-me" tanto nos problemas de geometria descritiva, que parecia que não me sobrava espaço mental para mais nada...

Como resposta, o Padre ofereceu-me um crucifixo - que ainda conservo - para levá-lo no bolso e colocar em cima da mesa de estudo ou sobre a prancheta de desenho:

- Um olhar ao crucifixo de vez em quando – disse-me -, ou algumas jaculatórias, bastarão para converter esse trabalho em oração.

E para ter presença de Deus no meio da rua? Aquilo não me parecia assim tão fácil. Gostava de passear pelas ruas de Madri, contemplando as fachadas, examinando as estruturas e analisando as soluções acertadas ou os erros arquitetônicos que ia encontrando. E o Padre pedia-me que fizesse tudo isso e estivesse, ao mesmo tempo, "metido em Deus"! Como?

- Vamos ver, disse-me. Explica-me que caminho costumas fazer para ir desde a Rua de Castelló, onde vives, até à Escola de Arquitetura ou até à Universidade.

Comecei a recordar: primeiro ia pela Rua de Goya; depois descia até à Castelhana e depois...

Então me foi enumerando as imagens da Virgem Maria que podia encontrar no meu caminho:

-...na Rua de Goya há uma pastelaria, logo ao voltar da esquina de Castelló, que tem um nicho com a Imaculada Conceição; ao chegar à estátua de Colombo, no cruzamento com o Paseo de la Castelhana, encontras num dos relevos do pedestal da estátua uma cena dos Reis Católicos onde há uma imagem de Nossa Senhora do Pilar; subindo pelos Bulevares...

Fiquei surpreendido. Eu, que prestava atenção a tudo, não me tinha dado conta da existência dessas imagens que me podiam servir para manter a presença de Deus durante o meu percurso habitual. Compreendi então que aquilo não era só fruto da grande capacidade de observação do Padre, mas que era a consequência do grande amor que sentia pela Mãe de Deus. A partir daquele dia tentei pôr em prática o que me dizia; e assim, pouco a pouco, o meu trabalho foi adquirindo um novo sentido sobrenatural e as minhas andanças pelas ruas de Madri ganharam perspectivas até então absolutamente insuspeitadas.

A Academia DYA

Progressivamente, à medida que fui frequentando a Residência, fui-me apercebendo da pequena história daquela casa. Quase um ano e meio antes, no início de Dezembro de 1933, tinha-se inaugurado a Academia DYA, num edifício que dava para a Rua de Luchana e de Juan de Austria. Mais tarde, em Outubro de 1934, a Academia tinha mudado para onde estava agora, na Rua Ferraz, nº 50, esquina da Rua de Quintana, perto da Cidade Universitária, e tinha-se ampliado com uma Residência para estudantes.

Haviam-se alugado três apartamentos no mesmo edifício: dois no primeiro andar, onde se tinha instalado a Residência, e outro no segundo andar, onde estava a Academia. O proprietário era um tal Bordiú, um engenheiro de minas com muitos filhos -alguns já crescidos - que vivia no mesmo prédio, no andar principal, e que se dizia descendente da família Luna, a do Anti-papa, a quem chamava cordialmente "o tio Pedro".

A instalação daquela Residência tinha sido – soube disso mais tarde - uma verdadeira odisseia do ponto de vista econômico. No mês de Setembro de 1934 - poucos meses antes de ter entrado pela primeira vez naquela casa - só tinham conseguido mobiliar o mais imprescindível: a sala de jantar, a sala de visitas, o vestíbulo e um quarto de dormir. Os restantes aposentos, que tinham somente uns modestos candeeiros de “globos” brancos de cana metálica, tinham ficado vazios, à espera de melhores dias. E faltava-lhes comprar os utensílios de cozinha, a louça... Mas o exemplo do Padre, que transpirava fé, segurança, otimismo e confiança em Deus, confortava a todos.

- Uma das maiores loucuras da minha vida – comentar-nos-ia o Padre mais tarde - foi abrir uma Residência de estudantes sem ter sequer um cêntimo para comprar tudo o que era necessário para instalá-la: roupa, móveis, apetrechos para a mesa e para as camas.

Esta grave situação econômica resolveu-se... Como se pôde. A roupa de cama conseguiu-se através de um crédito nos "Almacenes Simeón", onde trabalhava um antigo conhecido do Padre, Casimiro Ardanuy, filho do padeiro que levava o pão a casa dos pais, quando viviam em Barbastro. Mas, onde meter aquela roupa? Não tínhamos armários para guardá-la, recordava mais tarde o Padre. Tínhamos posto no chão, com muito cuidado folhas de jornal e a roupa em cima: quantidades enormes. Na altura pareciam-me enormes, agora parecer-me-iam ridículas. E por cima mais papéis, para resguardá-las do pó.

Naturalmente, esperavam como água de Maio a chegada de residentes, com o que -pensavam - tudo começaria a funcionar de maneira normal. Porém no início daquele ano acadêmico em que nos encontrávamos, em Outubro de 1933, estalou a chamada "revolução das Astúrias" que foi, como afirmava G. Marañón, "uma verdadeira tentativa de execução do plano comunista para conquistar a Espanha". Só triunfou nas Astúrias; mas estava programada desde o primeiro momento para todo o país. Houve um ataque feroz contra a Igreja: destruíram 58 igrejas e assassinaram 34 sacerdotes. E, como consequência, desencadeou-se uma greve geral revolucionária que obrigou a adiar a abertura da Universidade.

Daí resultou que, ao iniciar o ano letivo, a residência DYA contava somente com um ou dois residentes. Mais tarde, quando os ânimos se foram acalmando, vieram mais alguns: eram uns cinco no final do primeiro trimestre e os outros, até treze ou catorze, foram chegando a conta-gotas. Por este motivo, falharam todos os cálculos econômicos; e houve alturas em o diretor - um jovem arquiteto, Ricardo Fernández Vallespín - preferia levar Alberto, um dos primeiros residentes, a comer num restaurante próximo porque era mais barato do que dar-lhe de comer em casa. Os meses iam-se sucedendo, implacáveis e a situação foi-se tornando cada vez mais difícil; porque os residentes não apareciam, mas as facturas sim; houve uma altura em que começaram o mês com cinquenta pesetas na caixa. E tinha de se pagar, pelo aluguer de cada andar, 400 pesetas por mês!

Apesar destas dificuldades, o Padre não se intimidou e continuou a estender o trabalho apostólico, dia após dia, cheio de fé e de confiança no Senhor. Quando se procura somente Deus – escreveu mais tarde em Caminho - bem se pode pôr em prática, para levar por diante as obras de zelo, aquele princípio que proclamava um bom amigo nosso: "Gasta-se o que se deve, ainda que se deva o que se gasta".

Naturalmente, quando comecei a ir pela Residência, no início de 1935, não podia imaginar nem de longe nada disto. Só sabia que o nome "Academia-Residência DYA", correspondia às siglas de Direito e Arquitetura, mas que tinha um significado mais profundo. Para as pessoas é Direito e Arquitetura - explicava o Padre -, porque realmente há aulas dessas matérias, mas para nós é Deus e Audácia. Era claro que o Padre tinha empreendido esse trabalho apostólico confiando unicamente em Deus e com uma grande audácia sobrenatural.

Os Círculos

Num desses quartos vazios a que antes aludi tinham instalado uma sala de estar; e nela comecei a assistir, juntamente com outros universitários, a umas reuniões com o Padre – Círculos ou como se lhes queira chamar: o nome é o que menos importa, dizia-nos – em que nos falava de visão sobrenatural, de santidade no meio da vida quotidiana, de santificar o trabalho, de vida de oração…

Como eram essas aulas? Recordo que, ao começar, o Padre ajudava-nos a recordar o tema dado no Círculo anterior. As palestras centravam-se nalgum tema da vida cristã: vida interior, mortificação, Eucaristia, estudo… Guardo uma recordação vivíssima, indelével, daqueles Círculos; das palavras do Padre; dos seus exemplos tão plásticos e vivos… Semana após semana, sábado após sábado, círculo após círculo ia-nos levando a realizar um intenso apostolado com os nossos colegas, ensinava-nos a amar a Deus e animava-nos a termos uma vida profundamente cristã.

Era patente que o que nos dizia não procedia só do estudo ou do seu profundo conhecimento de almas mas sim sobretudo da sua intensa vida interior e da sua oração. Quantas vezes, ao ler as páginas de Caminho, recordei o que nos dizia naqueles círculos! O primeiro ponto é uma magnífica amostra: Que a tua vida não seja uma vida estéril. Sê útil, deixa rasto. Ilumina, com a luz da tua fé e do teu amor. Apaga com a tua vida de apóstolo, o rasto viscoso e sujo que deixaram os semeadores impuros do ódio. – E acende todos os caminhos da terra com o fogo de Cristo que levas no coração.

O Padre aludia com frequência, naquelas palestras, ao “fogo do amor de Deus”: dizia-nos que tínhamos de pegar fogo a todas as almas, com o nosso exemplo e a nossa palavra, sem respeitos humanos; e perguntava-nos se não teríamos, entre os nossos amigos, alguns que pudessem entender o trabalho de formação que se levava a cabo na Residência. No final convidava um dos presentes a ler as páginas de algum livro espiritual, como por exemplo a Imitação de Cristo.

As minhas dúvidas

Entretanto, continuava a ter a minha direção espiritual com o Padre. Procurava levar-lhe sempre, como “material extra” a matéria da minha confissão, alguma dúvida ou consulta para que me ajudasse a resolver. Se não o fazia, parecia-me que o ia defraudar. E como um dos primeiros frutos da sua direção espiritual foi simplificar surpreendentemente a minha complicada maneira de ser, a questão foi-se-me tornando cada vez mais difícil: iam-se resolvendo, uma após outra, as minhas dúvidas.

Numa dessas ocasiões – à falta de outra dúvida maior – ocorreu-me pedir-lhe um conselho sobre uma questão familiar. O meu pai, que estava muito apegado à sua relação hierárquica, como qualquer funcionário, seguia com verdadeira ansiedade o curso que eu tinha escolhido. “Arquiteto! – dizia-me a cada passo -. E se no dia de amanhã há crise na construção ou não consegues arranjar uma boa clientela, que segurança econômica vais ter, meu filho? O que tens de fazer – repetia-me - é acabar serenamente a licenciatura em Ciências, já que fizeste os primeiros anos; desse modo, se no futuro tiveres problemas com a Arquitetura, sempre terás outras saídas… Pensa no que te digo, Pedro, pensa”.

Para mim, na verdade, aquela proposta não fazia muito sentido. Estava disposto a fazer os dois primeiros anos de Ciências porque constituíam um requisito imprescindível para entrar em Arquitetura. Mas as Ciências Exatas, como lhes chamávamos, eram para mim só isto: um requisito e nada mais.

Comentei isto com o Padre, e contrariamente ao que estava à espera, pareceram-lhe excelentes os conselhos familiares. Embora compreendesse que teria de fazer um grande esforço, explicou-me como seria bom ter um horário exigente, do ponto de vista espiritual. Disse-me que assim me livraria de cair no aburguesamento, tão comum então nos estudantes que tinham conseguido entrar numa Escola Superior. E falou-me do apostolado que podia fazer na Faculdade com os meus colegas. Se podes, dá esse gosto ao teu pai, disse-me; mas tu é que sabes.

Aquelas palavras foram uma espécie de repto e deram-me ânimo para me matricular, no ano seguinte, no terceiro ano de Ciências.

Mais tarde comentei isto também com Paco Botella, um colega da Escola. Pensava que, se nos matriculássemos os dois no terceiro ano, esse curso tornar-se-ia menos aborrecido. O Paco animou-se logo, ainda que as Matemáticas, para as quais tinha mais aptidões que eu, também não o atraíssem muito. Combinamos fazer os dois cursos – Arquitetura e Ciências – no ano seguinte.

Os meus amigos

Seguindo os conselhos do Padre, que me impelia a fazer um apostolado vibrante com os meus amigos e colegas, tentei falar de Deus àqueles com quem tinha uma maior amizade. No entanto, apesar dos meus bons desejos, não consegui despertar nalguns maiores inquietações espirituais, nem tirá-los do ambiente de frivolidade em que se moviam. Outros, pelo contrário, vieram à Residência de Ferraz. Entre eles estavam José Rebollo Dicenta, Miguel Fisac, Mariano Alvarez Núñez e muitos outros.

Naturalmente, Ignacio de Landecho foi um dos primeiros amigos que convidei para vir a Ferraz. Começou a assistir aos Círculos que nos dava o Padre, e teve por ele grande estima desde o primeiro momento. Isso não me estranhou: não me lembro de ninguém que se relacionasse com o Padre com certa profundidade e que não ficasse admirado pela sua alegria, o seu bom-humor constante, o seu dom de gentes verdadeiramente excepcional e o seu profundo amor à liberdade.

Quanto a este último ponto, devo confessar que eu era muito independente. Essa independência era um fruto natural do meu caráter e do clima de grande liberdade em que tinha sido educado. Talvez por isso, o amor à liberdade das consciências que o Padre ensinava me cativou especialmente. Recordava-nos sempre que o amor à liberdade consiste, antes de mais nada, em defender a liberdade dos outros.

O Padre foi-me mostrando as exigências da vida cristã sem a espartilhar, sem a asfixiar em normas rígidas, ou em quadrículas mentais predeterminadas. Ajudou-me a ter uma vida de piedade cada vez mais intensa sem cercear nunca, nem afogar – pelo contrário potenciou-as - nenhuma das minhas legítimas aspirações humanas.

Fazia-me ver também quanto tinha recebido do Senhor naqueles primeiros vinte anos da minha vida. Realçava ante os meus olhos a figura dos meus pais e ensinava-me a apreciar e a agradecer as preocupações paternas para eu fazer um curso que, naqueles tempos, era um pouco custoso. Tudo isso – dizia-me – era providência de Deus, de um Deus Pai que nos ama mais do que todas as mães da terra.

Falava-me também da necessidade de ser santo no meio do mundo, sem fazer coisas estranhas, santificando as aulas, as horas dedicadas ao desenho e ao estudo; e, no futuro, o meu trabalho profissional. Insistia em que a santidade não era algo exclusivo de uns poucos, nem tinha de reduzir-se a determinados estados de vida. E dizia-me todas estas coisas num clima cordial, afável, aberto e distendido.

O leitor perguntar-se-á que respondia eu a tudo isto. Há um ponto de Caminho, o 360, que reflete plasticamente, quais eram com frequência as minhas reações: Como te rias, nobremente, quando te aconselhei a que pusesses os teus anos jovens sob a proteção de São Rafael: para que te leve a um casamento santo, como ao jovem Tobias, com uma mulher boa, bonita e rica – disse-te a brincar. E, imediatamente, que pensativo ficaste, quando te continuei a aconselhar que te pusesses sob a proteção daquele apóstolo adolescente, João: se por acaso o Senhor te pedisse mais.

No que toca este último ponto – a vocação – o Padre nunca me disse nada; ainda menos de vocação para o Opus Dei. Eu considerava que, neste terreno, já estava a dar o “máximo”: desde que ia a Ferraz vivia um plano de vida cristão e lutava por ter uma vida limpa; tinha direção espiritual regular; esforçava-me por fazer apostolado com os meus colegas e amigos; e sentia-me unido fraternalmente a todos os que assistíamos àqueles Círculos. Tinha chegado – pensava eu – ao cume, ao “teto” espiritual mais alto a que podia aspirar...

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FONTE:

Título: Soñad y os quedareis cortos

Autor: Pedro Casciaro

Capítulo 2: Madri, años 30

"1932: Estación del Mediodía"