Recordações de São Josemaria

“Você se fez esperar muito, meu filho”. Com esta afetuosa frase, o pe. Iñaki Celaya conheceu o fundador do Opus Dei em 11 de março de 1954. Hoje publicamos algumas recordações dos vinte anos em que ele passou com São Josemaria em Roma

Recuerdos sobre san Josemaría Escrivá de Balaguer
Don Iñaki Celaya junto a São Josemaria

- Introdução

- Como mais um personagem

- Tomar sorvete com um santo

- A escola da dor

- Dedicação de filho, dedicação de Pai

- Confiança, otimismo

- Fortaleza de Fundador

- “Está anoitecendo”


Introdução

Como já contei em minhas memórias sobre o Bem-aventurado Álvaro del Portillo, conheci São Josemaria Escrivá em 11 de março de 1954, entre os andaimes da obra de Villa Tevere, onde fica a sede central do Opus Dei em Roma.

Lembro-me perfeitamente das palavras que ele me dirigiu assim que me viu: Você se fez esperar muito, meu filho”. De fato, esperava-se que chegasse no final de dezembro ou início de janeiro, mas por motivos militares levei quase três meses para acertar o passaporte.

A saudação e o carinho do Padre me deram a impressão de que ele me conhecia desde sempre. Muitas pessoas contaram que tiveram a mesma impressão, depois de tê-lo visto pela primeira vez e comprovado como São Josemaria já os conhecia, pela oração e mortificação por eles, muito antes de se encontrar com cada um pessoalmente.

Nos vinte e um longos anos que vivi perto de Monsenhor Escrivá, testemunhei sua entrega e virtudes. Em particular, durante os meus anos no Colégio Romano de Santa Cruz – desde 1954 até a data do falecimento de São Josemaria – testemunhei os seus desvelos por este centro de formação internacional. Via sua projeção no tempo, o que significaria para toda a Obra se, daí saísse, a cada ano, um grupo de todos os países, muitos deles sacerdotes, bem-preparados espiritual e cientificamente. São Josemaria queria que a sua estadia em Roma fosse uma etapa de formação ascética e intelectual e uma oportunidade de se romanizar mais: com um grande amor à Igreja e ao Papa, com um coração católico e universal. Para conseguir isso, não poupou nenhum meio: antes de tudo, sua oração e mortificação pessoal, e a que ele pedia a tantas pessoas. À medida que cada grupo de alunos saía de Roma, pedia-lhes que sempre rezassem muito, e fizessem rezar pelo Colégio Romano e que tivessem o coração constantemente em Roma. Ao mesmo tempo, dedicou-se incansavelmente à formação direta dos alunos.

Quando cheguei a Roma já era tarde – março – para me matricular na universidade. Somente pude cursar algumas disciplinas de teologia e, até setembro, me dediquei principalmente a formar o coro, ajudar nas obras da casa e revezar no atendimento da portaria. O reitor do Colégio Romano era um entusiasta da música e dedicando tempo a ela conseguimos criar um bom coro, que estreou na Páscoa e se apresentou várias vezes. Lembro que cantamos uma polifonia – Haec dies quam fecit Dominus – para oito vozes, que foi um grande sucesso.

Tenho muitas recordações de São Josemaria, notas da sua pregação e dos encontros com ele de que tive a sorte de participar. Não pretendo agora fazer uma lista exaustiva desse material que, graças a Deus, já foi compilado e parcialmente publicado. Desejos fazer algo semelhante ao que escrevi há alguns meses com as lembranças dos meus anos de trabalho junto ao Bem-aventurado Álvaro del Portillo: colocar um pouco de ordem em meus papéis e animar todos aqueles que não conheceram São Josemaria pessoalmente a aprofundar em seu exemplo e a recorrer à sua intercessão.

O pe. Iñaki acompanha São Josemaria, junto a alguns alunos do Colégio Romano da Santa Cruz

Como mais um personagem

Pouco depois de chegar a Roma, durante o retiro que tivemos na semana de 11 a 18 de abril, São Josemaria nos deu duas meditações diárias. Quem conhece em detalhes a biografia de Monsenhor Escrivá talvez se lembre de que, naqueles dias seu diabetes estava em uma fase particularmente grave, que culminou em um choque anafilático no dia 27 de abril de 1954. Aos que ouvíamos sua pregação não nos passava pela cabeça que estivesse doente. De fato, não sabíamos disso. Suas palavras chegavam até o fundo da alma e nos comoviam interiormente. Ele revivia o Evangelho: entrava nas cenas do texto sagrado como se fosse um personagem, e ajudava a nós, que o ouvíamos, a fazer isso.

A partir daí ouvi-o pregar muitas vezes: retiros, recolhimentos, meditações, palestras, homilias etc. Além de outras ocasiões em que nos abria a alma, em reuniões familiares – as tertúlias – e outros momentos de conversa. Se tivesse que ressaltar uma nota característica de todo o seu ensinamento, ficaria com a esperança confiante em Deus com que ele quis que lutássemos em nossa vida interior. Incutia-nos uma segurança total em Deus, ao mesmo tempo que nos pedia a correspondência pessoal com a graça, traduzida numa constante luta interior no pequeno, no trivial de cada dia.

Fazia-nos ver que as pequenas derrotas – e mesmo as grandes – não deviam nos desanimar, mas levar a uma maior humildade, à sinceridade e a recomeçar a luta com maior alegria. E ainda, para os momentos que poderiam parecer mais difíceis para nós – devido a dificuldades internas ou externas – dava-nos um otimismo que nunca pode desaparecer se nos apoiarmos em Deus. Em 1962 tomei nota destas suas palavras: Embora às vezes pareça que tudo está desmoronando, nada desmorona, porque Deus não perde batalhas”. Com isso fazia-nos ver que, com a graça de Deus, não há nada irremediavelmente perdido: tudo tem conserto, menos a morte, comentava às vezes com um ditado popular, e acrescentava: e para nós, a morte é Vida”.

Resumia nossa alegria e nossa segurança no sentido de filiação divina, ao qual correspondemos com a nossa luta interior: estaremos tristes – ouvi-o muitas vezes comentar com essas palavras ou com outras semelhantes – no dia em que deixarmos de lutar”. Não se esqueçam de que a nossa alegria tem as suas raízes na forma da Cruz”.

Ouvir a sua pregação ajudava a renovar-se interiormente. Conseguia despertar um desejo efetivo e prático de maior entrega a Deus, de serviço a todos as pessoas, de viver para amar e servir a Deus e a toda a humanidade. Devo dizer que já havia tido esta convicção nos anos 1949 a 1954, antes de conhecer São Josemaria pessoalmente, ao ouvir em Bilbao os exercícios espirituais pregados pelos seus filhos sacerdotes, que ele próprio tinha formado.

Depois de ser aluno do Colégio Romano, fui subdiretor, diretor de estudos, diretor espiritual e, de 1963 a 1975, reitor. Mais de mil pessoas de 45 países passaram por aquele centro de formação naqueles anos, em que Monsenhor Escrivá carregava o peso de todo o trabalho de formação, ao mesmo tempo que nos ensinava a formar, com instruções concretas.

Tomar um sorvete com um santo

Ao realçar a qualidade da sua pregação ou a proximidade com que nos ajudou a aprender a servir as almas, pode-se ter a impressão de que São Josemaria sempre se dirigia a nós de um púlpito ou que só falava de teologia. Nada disso. O carinho por seus filhos levava-o a conhecê-los e a amá-los um por um: procurava ter com todos as delicadezas de um pai e de uma mãe.

Muitas vezes, quando saia de carro em Roma, por motivos de trabalho etc., convidava um ou dois alunos para que o acompanhassem, junto com o Bem-aventurado Álvaro, ou com quem dirigia o carro ou o acompanhava no que tinha que fazer. Saí com ele uma vez e ele me mostrou a cidade enquanto passeávamos por ela. No final, me perguntou se eu gostaria de ir a Óstia. Claro que eu disse sim e lá fomos nós. Quando chegamos, fizemos um passeio muito breve, e lá, Mons. Escrivá quis que comprássemos sorvetes. Ao longo do caminho cantamos muitas músicas de que ele gostava (versos de amor humano de modo divino”, como ele nos dizia tantas vezes), entre elas uma música chamada “Solamente una vez”. Monsenhor Escrivá a cantava vivamente, conhecia toda a letra e devo dizer que tinha uma voz muito agradável, com um tom barítono cálido e timbre muito bom.

Lembro-me também de como ia convidando todos os alunos em pequenos grupos para assistir a algum programa de televisão no escritório de dom Álvaro, quando havia apenas um aparelho de TV em toda a casa: o Padre se esquecia de si mesmo, preocupava-se com que a imagem estivesse boa, com traduzir do italiano para alguém que não soubesse bem este idioma, fazia comentários etc.

Na distribuição das tarefas de acompanhamento das obras da casa, tive a sorte de acompanhar a entrada pela rua Bruno Buozzi, 73. O acompanhamento consistia em preocupar-me de que os pequenos detalhes fossem feitos em dia, impulsionar o trabalho dos trabalhadores, comprar alguns objetos que faltassem falta etc. Várias vezes tive de comentar com São Josemaria sobre atrasos e falhas. Com este motivo, explicava-nos que devíamos fazer com que os interessados ​​vissem os defeitos com clareza e delicadeza – irascimini et nolite peccare, (literalmente “fiquem zangados, mas não pequem”) lembrava-nos com o salmo e seu bom humor –, a fim de que houvesse autoridade acompanhada de retidão, caridade etc. Foi uma regra de ouro que me serviu muito durante toda a minha vida.

Concluídas as obras naquela área, em dezembro de 1954, entrei no plantão da portaria. Monsenhor Escrivá descia uma ou duas vezes de manhã e à tarde e nos dava pequenas instruções: como atender os visitantes, ventilar, limpar os corrimões etc. Passávamos a ele nossas experiências por escrito, e então nos devolvia essas notas com correções e comentários, o que permitiu, depois de alguns meses, escrever algumas experiências do atendimento da portaria que poderiam ser usadas por aqueles que tivessem essa tarefa no futuro. Uma vez feito isso, suas descidas à portaria se espaçaram muito mais.

Sobre o atendimento da portaria e a elaboração das experiências – algo que, logicamente, também fez com outras tarefas –, registrei uma cena ocorrida alguns anos depois, em 17 de outubro de 1959: o reitor do Colégio Romano estava dando alguns avisos aos alunos recém-chegados para ajudá-los a conhecer a casa: todos os anos, eram dados alguns avisos que pareciam prudentes para melhorar a ordem e a eficiência do trabalho de todos. Estavam nisso quando Monsenhor Escrivá entrou e comentou: façam o que quiserem; atuem com bom senso e visão sobrenatural, e vocês farão Deus feliz; darão alegria ao Padre e ao reitor: façam o que lhes parecer melhor”.

Um acontecimento mundial, um filme, o relato de uma história por parte de algum de nós, levavam-no com toda a naturalidade a Deus e a pensar nas almas. Por exemplo, um dia nos comentou que quando assistia ao telejornal algumas noites, e aparecia uma animação da bola do mundo na vinheta inicial, ele se lembrava de rezar pela paz mundial. Em outra ocasião, no intervalo da projeção de um filme ambientado na colônia de leprosos de Molokai, comentou o perigo de que tanta gente boa se deixasse contagiar pela lepra da falta de doutrina... ou em uma reunião familiar em que lhe falaram de um amigo que havia vencido um campeonato de arremesso de peso quase sem treino, acrescentou que para construir o edifício da nossa santidade apesar das nossas misérias, temos que treinar todos os dias.

Gostaria” – comentava um dia a um pequeno grupo – que, fechando os olhos da carne, vocês contemplassem a vida de Cristo como em um filme: que vocês fossem atores de sua vida, estando com os Apóstolos e com as Santas Mulheres, mais perto de Jesus que João”. Não é que todas as suas considerações tivessem esse tom: conversávamos com ele sobre os acontecimentos do dia, nossas preocupações grandes e das pequenas coisas do dia a dia; mas era perceptível que a sua oração era constante, e que em todo momento procurava transmitir-nos sua experiência de vida em pequenos detalhes.

Em outra ocasião, ele nos falou sobre o amor à Santíssima Trindade, fazendo-nos ver como chega um momento em que Deus concede à alma uma relação diferenciada com as três Pessoas Divinas, e que isso acaba sendo uma necessidade para a alma. Estas são as palavras que escrevi em 18 de dezembro de 1959: Temos que seguir Jesus em sua vida, em sua morte e em sua Ressurreição; e quando ele for para o Céu e nós ficarmos lá embaixo, felizes porque ele foi para o Pai, e tristes porque parece que nos deixa sozinhos. Mas não nos deixa sozinhos: fica na Eucaristia, e nos fala do Paráclito: Ego rogabo Patrem, et alium Paraclitum dabit vobis... (eu rogarei ao Pai e Ele lhes dará outro Paráclito...). Vocês têm que relacionar-se com a Santíssima Trindade. É uma necessidade quando passa algum tempo, e percebemos a distinção na unidade, o modo de agir próprio do Pai, do Filho, do Espírito Santo. E a presença deles, porque onde está o Filho, aí estão o Pai e o Espírito Santo”. Mesmo em detalhes muito pequenos, como, por exemplo, anotar um número para sortear algum objeto entre nós, se percebia que, com bom humor, sempre escolhia múltiplos de três, por devoção à Trindade.

O autor junto ao fundador do Opus Dei, em 1975

A escola da dor

Em junho de 1957, sua irmã, Carmen Escrivá, faleceu em Roma, pouco antes de completar 58 anos. Notava-se que São Josemaria tinha chorado e estava visivelmente afetado naqueles dias, como quando recebia a notícia do falecimento ou doença das pessoas da Obra. Estava acostumado com a dor. Em uma reunião naquele mesmo ano, nos disse: “Meus filhos, vocês não sabem o que é solidão. Vocês não podem saber. Eu sei por experiência: terrível! Talvez o Senhor tenha me permitido conhecê-la, para que meus filhos não se sentissem sós. Mas se, mesmo por um momento, vocês sentem esse vazio absoluto, aquele sentimento de desamparo esse reconhecer-se inútil!, inepto!, inábil!... Nesses momentos em que nem sequer sabemos qual é a Vontade de Deus, e protestamos: Senhor, como podes querer isto, que é mau, que é abominável ab intrinseco! – como se queixava a Humanidade de Cristo no Horto das Oliveiras – quando parece que a cabeça enlouquece e o coração se parte... Se alguma vez vocês sentem esse cair no vazio, aconselho-lhes aquela oração que repeti muitas vezes no túmulo de uma pessoa amada: Fiat, adimpleatur, laudetur atque in aeternum superexaltetur iustissima atque amabilissima voluntas Dei super omnia. Amen. Amen. (Faça-se, cumpra-se, seja louvada e eternamente glorificada a justíssima e amabilíssima vontade de Deus sobre todas as coisas. Amém. Amém.)

Nas festas do ano de 1959 tive a oportunidade de aprender muito de perto como ele vivia e compartilhava as dores de seus filhos, envolvendo-os com seu afeto humano e sobrenatural ao mesmo tempo, paterno e materno. Em um desses dias – talvez 28 de dezembro – recebeu-se uma ligação do México informando que havia ocorrido um acidente de carro no qual vários membros da família de um estudante do Colégio Romano tinham morrido. Monsenhor Escrivá, assim que soube da notícia, chamou-o e passou um bom tempo com ele, consolando-o e dando-lhe serenidade e união com a Vontade de Deus. Também lhe disse para ir ao México por alguns dias para cuidar de sua família. São Josemaria me indicou alguns detalhes específicos de delicadeza e carinho que devíamos ter com ele: desde a conveniência de levá-lo para passear por Roma para distraí-lo um pouco, até a possibilidade de ajudá-lo a dormir naquela noite com algum remédio. No dia seguinte, antes de partir, dirigiu-lhe as seguintes palavras na tertúlia: Rezaremos muito por você, e tenha muita paz”. E a nós: Não deixem de rezar pela família deste seu irmão. A única saída quando acontecem coisas assim – que em algum momento da vida acontecem com todos – é ver a mão de Deus, que não é um tirano, que nos ama: Ele não fica à espera, como um caçador... Nós não entendemos, mas o que Ele faz é bom, e é o momento de rezar aquela oração: 'Fiat, adimpleatur...', dizer-lhe que a Vontade de Deus é justíssima e amabilíssima, quando estamos como loucos... E é então a melhor hora para rezar, o bom momento para ser filhos de Deus, para confiar n’Ele. Digo isso para sua vida e para quando vocês tiverem que dirigir as almas”.

Vi essa preocupação muitas outras vezes em anos sucessivos, em situações semelhantes. Em outro caso específico, quando recebemos, de noite, a notícia do falecimento do pai de um aluno, ele me aconselhou que, para evitar um desgosto desnecessário e uma noite sem dormir, não lhe fosse comunicado até a manhã seguinte, antes da Santa Missa, para que assim pudesse oferecer o Santo Sacrifício pela alma de seu pai. Quando ocorreu um forte terremoto na Guatemala e demoravam as notícias sobre se havia desgraças pessoais entre as pessoas da Obra que já estavam naquele país: nós temos coração”, disse-nos na tertúlia, se não, não seríamos humanos. E eu sofro”. Notável também era a delicadeza e pontualidade com que recebia os pais de algum aluno do Colégio Romano que passava por Roma e pedia para o cumprimentar. Organizava-se para recebê-los pessoalmente, que fossem à missa em Villa Tevere, tomassem o café da manhã, passeassem pela casa... No oratório dedicado à Sagrada Família liam o texto da consagração das famílias dos fiéis da Obra à Sagrada Família de Nazaré, que está ali gravada numa lápide.

São Josemaria tinha uma grande fortaleza ante a dor física. É algo que demorei para perceber porque não era comum que falasse sobre os seus problemas de saúde. Com o passar do tempo e aumentando as minhas responsabilidades em casa, comecei a descobrir sobre dores de dente, insônia, enxaquecas... ou o grave desconforto que sofreu durante muito tempo devido a um herpes zoster na cintura.

Lembro-me de um domingo em que São Josemaria estava doente, de cama: tinha uma gripe, frequente em Roma, que, embora não tivesse grande importância, cansava e abatia bastante. Ele chamou dois de nós ao seu quarto para conversar e passar algum tempo com ele: assim que entramos no quarto, quase antes de perguntarmos como ele estava, começou a conversar e brincar conosco. Quando saímos, depois de vinte ou trinta minutos, percebemos que era ele quem nos entretinha numa divertida tertúlia, como se estivesse perfeitamente saudável.

Não se pense, por tudo isso, que São Josemaria não colocava os meios para curar a doença ou evitar a dor física. Ao contrário, dizia: quando se pode tirar a dor física, se tira, já há sofrimentos suficientes nesta vida! E quando não pode ser tirada, a oferecemos” (de 1º de janeiro de 1969). Assim, insistia com os doentes, em primeiro lugar, para que contassem o quanto antes, pois não era razoável sentir-se mal e não informar o médico; e depois, que obedecessem em tudo e se deixassem cuidar.

Cada vez que havia uma epidemia de gripe, perguntava-nos se tínhamos tomado todas as medidas oportunas e quando, a partir de 1970 começaram a comercializar uma vacina contra a gripe, cada ano, no começo de outubro, nos lembrava que todos os do Centro deviam se vacinar.

No final desses cursos, em junho de cada ano, todos notávamos o carinho paterno, humano e sobrenatural, que ele tinha por seus filhos, em alguns encontros carinhosos com aqueles que estavam partindo de Roma. Era uma cena familiar que se repetia todos os anos. Concretamente, em junho de 1956, perante o primeiro grande grupo dos seus filhos que iam para outros países, São Josemaria estava visivelmente emocionado – as lágrimas lhe vieram aos olhos -, ao mesmo tempo que nos ajudava a levar os nossos sentimentos ao plano sobrenatural, fazendo-nos ver que nunca nos separamos, nem nos despedimos, porque estamos sempre unidos pela Comunhão dos Santos.

Dizia-nos com frequência que não tinha um coração para amar a Deus e outro para amar seus filhos e todos os seres humanos; que amava o Senhor com o mesmo coração com que amava aos seus pais e a nós. Às vezes dizia que nos amava com o corpo e a alma, como uma mãe que ama não só as pequenas almas de seus filhos, mas também o corpo. Pude verificar, por exemplo, como se preocupava de que nos alimentássemos bem: em algumas festas nos perguntava se a comida estava gostosa. Vi-o se preocupar com alguém que estava perdendo peso – reparava tal como uma mãe – ou porque outro estava muito gordo.

Da mesma forma reparava na nossa maneira de vestir. Muitas vezes, quando tinha alguém próximo a ele, arrumava o nó da sua gravata, se estivesse descuidado. Em 1º de outubro de 1970, por exemplo, enquanto o ouvíamos em um dos pátios internos de Villa Tevere, no meio de uma conversa sobre sinceridade, amor a Deus etc., percebeu que dois ou três usavam sapatos muito velhos e sugeriu que comprassem outros. Em várias ocasiões, observou, por pequenos detalhes, que alguns precisavam de óculos, ou trocar os que tinham; ou aconselhava outro a ir ao dentista.

Quando um aluno estava doente, sua preocupação e sua atenção eram ainda maiores. Lembro-me de como se interessava pelos que estavam acamados na enfermaria: várias vezes o acompanhei a visitá-los e recolhi as sugestões que ele nos fazia depois para melhor atendê-los: que tivessem dois travesseiros, cobertores suficientes, acesso fácil ao banheiro, etc.; sobre a comida, ventilação e temperatura do quarto, sobre como ajudá-los a cumprir as normas de piedade que pudessem fazer... Ao mesmo tempo, divertia-os com a sua conversa e ensinava a viver sua situação com sentido sobrenatural e a oferecer os inconvenientes. Em fevereiro de 1971, um deles quebrou a clavícula durante um jogo de futebol. São Josemaria esteve especialmente atento a ele enquanto reduziam a fratura e nos dias seguintes, sempre que o via, perguntava-lhe sobre o seu estado de saúde. Mesmo anos depois, ao encontrá-lo, costumava fazer alusão ao acidente.

Durante esses anos, vários alunos passaram por diferentes cirurgias: Monsenhor Escrivá acompanhava minuto a minuto o curso das operações e a consequente convalescença. Perguntava por telefone, visitava-os etc. Por exemplo, durante a época de Natal de 1966, ele esteve com um venezuelano recém-operado do estômago em uma clínica. Depois de saber todos os detalhes do atendimento médico e de lhe dizer que oferecesse suas dores pelo trabalho apostólico da Venezuela, pela Obra e por toda a Igreja, manteve-o distraído por muito tempo com bom humor, mas percebeu que a ferida do paciente doía quando ria e evitava comentários e piadas que o fizessem rir.

Esta preocupação de São Josemaria pelos seus filhos estava longe de ser algo meloso: era o seu carinho, verdadeiramente maternal, que o fazia prestar atenção a esses pormenores, pondo à sua disposição os meios humanos para evitar a doença, ensinando a viver a dor com a alegria de quem a considera uma carícia de Deus. Certa ocasião assistimos com ele a um filme em que se narrava o desespero de dois paralíticos que se recusavam a aceitar a doença: durante o intervalo, São Josemaria não se sentou um pouco, como costumava fazer, mas enquanto caminhava falava para nós com a energia sobre a falta de sentido cristão que isso significava. Falou-nos da alegria na dor e dos muitos doentes que conheceu e que suportavam os seus sofrimentos com uma dignidade maravilhosa. Ficou claro que, além de se referir a outros, ele tinha experiência pessoal desse fato.

O mesmo espírito se via quando falecia um de seus filhos. Queixava-se filialmente a Deus, especialmente quando o falecido era um jovem. Sofria nessas ocasiões, porque tinha um grande coração, chorava e, ao mesmo tempo, se identificava plenamente com a vontade de seu Deus Pai, que sabe mais. Foi assim que eu vi quando Deus levou Tia Carmen (1957), como já relatei; quando soube de um acidente de carro em que alguns de seus filhos morreram; antes da morte do pe. José María Albareda etc. E no ano letivo 1972-1973, particularmente quando o pe. José María Hernández Garnica faleceu em 6 de dezembro. A reunião familiar do dia 8 desse mês foi inteiramente dedicada a falar-nos desse seu filho e da sua morte: da sua fidelidade, da alegria com que suportou todos os sofrimentos; das atenções e delicadezas com que o cercaram até o último momento; do amor que nos une na Obra em vida e depois da morte; do sofrimento do seu coração de pai. É lógico que sofra, meus filhos: o Senhor me deu um coração de pai e de mãe para vocês”, disse-nos e finalizou: e quando o Senhor me chamar, a mesma coisa. Está claro? Não quero nenhuma gravata preta”.

São Josemaria e o pe. Iñaki Celaya durante um momento de tertúlia (1975).

Dedicação de filho, dedicação de Pai

Nos anos que duraram as sessões do Concílio Vaticano II, Monsenhor Escrivá esteve conosco com muita frequência. Era evidente a intensidade com que viveu o desenvolvimento do Concílio neste momento, a sua oração pelos frutos daquela grande assembleia eclesial, a sua preocupação em dar critério a seus filhos sobre os pontos que se debatiam e o seu amor à Igreja.

Talvez tenha sido em 1963 que comecei a perceber em profundidade como São Josemaria sofria por causa da situação da Igreja. Sabe-se que, enquanto duravam as sessões do Concílio Ecumênico – como aconteceu em outros casos da história da Igreja –, difundiam-se doutrinas e práticas contrárias à fé e à moral: não era raro conhecer pessoas que se dedicavam a atacar à Santa Igreja e ao Papa em conferências, folhetos, na imprensa etc. As verdades dogmáticas definidas pelo Magistério foram questionadas, os padres conciliares foram pressionados, e foram apresentadas como conclusões aprovadas até as mais duvidosas elucubrações dogmáticas e disciplinares.

Monsenhor Escrivá sofria porque nada que toca a Igreja, a Esposa de Cristo, a quem queremos servir, é alheio a nós”. Sofreu porque a Igreja estava sendo maltratada, pelos sofrimentos do Romano Pontífice e pela desorientação que isso significava para as almas. Por essas razões, ele nos pedia que rezássemos mais; lembro especialmente as suas palavras de 11 de maio de 1965, nas que nos pedia que rezássemos para que Dios iluminasse os padres conciliares e concedesse ao Papa a fortaleza necessária para que se apresentassem de forma clara e atraente todos os pontos referentes à fé e à moral. Nesse encontro, o fundador do Opus Dei usou várias vezes a expressão de Santa Catarina de Sena il dolce Cristo in terra para designar ao Papa e referiu-se a ele com muitos elogios, dizendo-nos que merecia e precisava de todo o nosso amor e das nossas orações.

Ao mesmo tempo que sofria, rezava e fazia rezar, tinha a certeza da assistência do Espírito Santo à Igreja: cada vez que nos falava do assunto, terminava por nos dizer que confiava na divindade dos frutos do Concílio. Otimismo, serenidade e maior amor pela Igreja e pelo Papa eram uma constante em sua conversação: quando esclarecia pontos de doutrina sobre os quais se semeava o erro, sempre acrescentava: tirem desta conversa mais amor, mais fidelidade, mais unidade, mais obediência, mais submissão ao Magistério eclesiástico e ao Romano Pontífice”.

Posso assegurar, com base na experiência de centenas de pessoas que passaram pelo Colégio Romano durante esses anos, que as palavras de São Josemaria produziram frutos sobrenaturais de maior força na fé; não me lembro de um único caso de alguém que tenha ficado com uma impressão de amargura ou pessimista, muito menos com preconceitos em relação a alguma pessoa ou situação.

Acho justo dedicar um pouco mais de tempo descrevendo o amor ao Papa que o fundador tinha e nos transmitia: amor sobrenatural e humano cheio de veneração e obediência. Por exemplo, em 24 de junho de 1957, em um simples ato que tivemos na Aula Magna na presença de Monsenhor Samoré, para nos informar que a Santa Sé havia confiado a Prelazia de Yauyos à Obra, São Josemaria disse que se ele sempre tinha servido à Igreja e ao Papa com alegria, agora que o Santo Padre olhou para nós, o faremos com muito mais alegria”.

Vi esse espírito se manifestar em pequenos detalhes: cada vez que era recebido em audiência pelo Papa, quando voltava, nos telefonava para contar que esteve com o Papa e pedia que se preparasse um detalhe extra na refeição para celebrar essa alegria; e quase sempre, no mesmo dia, descia para nos ver e transmitir a bênção e o afeto do Romano Pontífice, enquanto nos contava alguns detalhes externos da audiência. Em 26 de outubro de 1958, enquanto se realizava o Conclave para a eleição de um novo Papa após a morte de Pio XII, pediu-nos que rezássemos pelo futuro Papa com as seguintes palavras: “Depois de Jesus e Maria, o Papa; seja quem seja nós já amamos o novo Romano Pontífice e estamos prontos para servi-lo ex toto corde, ex tota anima... (com todo o nosso coração e toda a nossa alma) Rezem... e ofereçam até a respiração”. No dia 28, assim que soubemos que havia fumaça branca, ouvimo-lo rezar o Oremus pro beatissimo Papa nostro... sem nem saber ainda quem era o Papa eleito. No dia seguinte celebramos com grande festa a eleição de João XXIII. O mesmo aconteceria em 23 de junho de 1963, quando Paulo VI foi eleito. Estas palavras de 26 de outubro de 1958 resumem a sua vida neste ponto: Quando vocês forem velhos e eu já tiver ido prestar contas a Deus, vocês dirão a seus irmãos como o Padre amava o Papa, com toda a sua alma, com todas as suas forças”.

Muitas vezes fiquei sabendo, por exemplo, que ele não tinha dormido nada ou quase nada durante toda a noite por causa da sua preocupação com a Igreja: às vezes percebíamos isso porque parecia cansado. Um dia, em concreto, em 6 de novembro de 1971, ele me ligou às 7:15 da manhã para me dizer que pedisse a todos que oferecessem a Santa Missa por uma intenção sua: disse-me que havia passado a noite acordado, rezando para que não se confirmassem os rumores sobre o que ia ser decidido por ocasião do Sínodo dos Bispos que se realizava e que terminou precisamente nesse dia.

Especificamente nessa época ele sofria com os ataques que se produziam contra o celibato sacerdotal. De fato, o amor do Fundador por este dom divino, que ele considerava a coroa do sacerdócio e da Igreja, era grande: ele não podia permitir que este assunto fosse tratado com leviandade sem sofrimento e oração. Ao mesmo tempo, advertiu-nos que era um tesouro que devíamos cuidar com amor, usando todos os meios que a Igreja sempre recomendou: piedade, delicadeza, prudência etc. Com visão sobrenatural e bom senso, ele nos fez ver como o comportamento externo em alguns casos pode levar ao esfriamento do amor do sacerdote por Deus. E de forma positiva, insistiu com veemência na necessidade de se apaixonar pelo Senhor, sobretudo relacionando-nos com Ele na Eucaristia.

Sua fé era muito forte. Com a convicção de que esta virtude é sobrenatural, ele nos convidava a pedir continuamente ao Senhor, com a jaculatória adauge nobis fidem (aumente a nossa fé). Não gostava de usar o verbo crer para expressar uma opinião: nesses casos preferiam dizer eu acho que... ou me parece que... “Crer é uma palavra maravilhosa, divina. Eu a escreveria sempre com maiúscula, não gosto de usar essa palavra quando não é necessário”, costumava dizer em algumas ocasiões, acrescentando que “acreditar é algo muito importante; creio no que manda a Santa Mãe Igreja, e com todas as minhas forças”.

Seu amor e fé em nossa Mãe Igreja como Esposa de Cristo, sem mancha nem ruga, Guardiã infalível do depósito da fé, foi inabalável. Ele não consentia a menor fresta. Por isso, quando, especialmente durante seus últimos anos de vida, se difundiram algumas doutrinas que obscureceram o caráter sobrenatural da Igreja ou colocaram em risco sua unidade – por exemplo, no final da década de 1960 com a polêmica sobre a igreja carismática e a igreja hierárquica –, São Josemaria reafirmava-nos continuamente, com a sua atitude e as suas palavras, na verdadeira fé: fazendo-nos ver com energia a unidade inseparável destas duas características da Igreja, o seu fim sobrenatural etc.

Sobretudo nos anos depois de 1965, ele viveu com grande intensidade o seu amor à Igreja: diante dos muitos ataques que sofreu, teve a fortaleza de nos afirmar na fé. Diria que em todas as reuniões familiares daqueles anos, ele levantava este assunto de uma forma ou de outra para nos encher de otimismo e confiança em Deus, quando muitas vezes tentavam rebaixar a Igreja a um nível humano, semeando confusão e desconfiança em relação a Esposa de Cristo e a eficácia salvífica do meio sobrenatural com que Nosso Senhor a dotou: Não temos o direito de duvidar de Deus. E duvidar da Igreja, da eficácia salvífica da sua pregação, dos seus Sacramentos, é duvidar do próprio Deus”, disse-nos na festa de Pentecostes de 1969.

Da mesma forma, nas conversas que o ouvia sobre esses assuntos, nunca havia o menor indício de crítica pessoal – Não conheço nenhum sacerdote mau”, ouvi-o dizer centenas de vezes. Sempre que tinha que nos contar algum fato público menos edificante objetivamente, o fazia na presença de Deus, impelido pela obrigação de nos formar e nos prevenir contra possíveis perigos para a nossa fé; e nesses casos limitava-se a falar o necessário.

O Bem-aventurado Álvaro del Portillo e São Josemaria Escrivá, durante um momento de tertúlia

Confiança, otimismo

De Roma, acompanhávamos de perto as iniciativas apostólicas promovidas pelo Opus Dei em todo o mundo. Por exemplo, São Josemaria nos pediu orações e sacrifícios pelo apostolado no Quênia, Japão ou Nigéria, ou pelos frutos das novas faculdades da Universidade de Navarra antes mesmo de serem iniciadas. Ele não pedia esforços extraordinários, mas sim que oferecêssemos o trabalho, a misericórdia, o sorriso... Muitas vezes nos recordou que nos anos romanos de estudo e formação talvez tivéssemos poucas oportunidades de fazer apostolado diretamente com amigos e colegas, por isso tínhamos que ser como um poderoso motor sobrenatural que enviasse força a todos os lugares.

Da mesma forma, fazia-nos valorizar os frutos apostólicos com uma medida sobrenatural: não lhe importavam as realizações humanas se não eram um instrumento e uma oportunidade para aproximar-se de Deus e aproximar outras almas de Deus. Em 11 de março de 1956, anotei: eu meço e vejo a eficácia das obras pela santidade de quem nelas trabalha. Não quero nenhum labor se os homens que nele trabalham não se fazem melhores. Não me interessa! Tudo isso é transitório, e nós vamos atrás do permanente”.

Lembro-me de que, quando Paulo VI publicou a Encíclica Mysterium fidei, São Josemaria me chamou para me dizer que em todos os próximos círculos de formação deveríamos falar sobre isso e afirmar nossa fé e devoção à Santíssima Eucaristia: em 28 de junho de 1965, cumprimos aquela indicação. Durante todo esse tempo ele se dedicava a que seus filhos tivessem uma fé viva e vivessem a Santa Missa com a maior piedade possível: a melhor maneira era, claro, ter a felicidade de assistir à missa celebrada por ele: tive essa sorte várias vezes, tanto no oratório da Santíssima Trindade, onde costumava celebrar com poucas pessoas, como no oratório da Sagrada Família no Natal de 1956 e no de Santa Maria da Paz, muitas vezes, com os alunos do Colégio Romano. Sempre me impressionava vê-lo tão envolvido em Deus, tão identificado com Cristo; o tempo da sua Missa passava num piscar de olhos e, ao terminar, era melhor continuar provando esse silêncio por aquele tempo e agradecer a Deus. Naqueles momentos era fácil entender o que ele nos disse em várias ocasiões: como via claramente que celebrar a Santa Missa era Opus Dei, trabalho divino, e como terminava cansado, identificando-se com Cristo. Pedia especialmente a nós, sacerdotes, que renovássemos, cada dia, a intenção expressa de renovar in persona Christi o sacrifício divino do Calvário, ao consagrar o Corpo e o Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo. Recordou-nos em muitas ocasiões, oralmente e por escrito, pormenores de piedade e devoção que devíamos viver, repetindo que tínhamos que obedecer minuciosamente a todas as indicações litúrgicas da autoridade competente.

A confiança em Deus que ele viveu e nos transmitiu davam-lhe um otimismo contagiante que não esmorecia em nenhuma situação. Longe de toda ingenuidade ou de desconhecer a realidade das dificuldades, confiava firmemente na filiação divina e na Onipotência de Deus. Quando às vezes nos falava de dificuldades ou situações humanamente preocupantes em que algum de seu filho se encontrava, sempre deixava claro que Deus tiraria o bem de tudo isso se fôssemos fiéis. Durante meus anos romanos houve, naturalmente, momentos de preocupação de vários tipos. São Josemaria sabia de tudo – além disso, insistiu em que não parássemos de informá-lo das dificuldades – e nos tranquilizava com visão sobrenatural e sempre com bom humor.

São Josemaria em Cavabianca (Roma, 1975)

Fortaleza de fundador

Ao mesmo tempo em que acompanhava todos os trabalhos e nos formava em reuniões de família e conversas, cheias de tom humano e sobrenatural, o víamos pendente de fixar e consolidar o espírito da Obra e os detalhes da nossa vida em família. Assim, no Natal de 1955, fruto de alguns encontros familiares cheios de intimidade e naturalidade, surgiu o costume de ler o trecho do Evangelho de São Lucas 2, 1-21 diante do Presépio, na Noite de Natal. Na reunião familiar daquela noite, o fundador do Opus Dei pediu a alunos de diferentes países que falassem sobre os costumes e tradições natalinas de suas respectivas nações. Eles contaram como a tradição de ler aquela passagem do Evangelho na noite de Natal era popular na Alemanha. Monsenhor Escrivá gostou e nos perguntou: acham bem que vivamos esse costume cristão no Colégio Romano?” Respondemos afirmativamente e a partir desse ano passou a fazer parte da vida familiar deste centro durante o Natal. Da mesma forma, estabeleceu – antes, comunicou-nos – algo que estava no fundo de seu coração e sempre vivia: sua preocupação com a santidade dos sacerdotes. Um dia de dezembro de 1954, depois de nos falar sobre este assunto, ele nos disse: E se introduzíssemos o costume, pelo menos nesta casa, por enquanto, de todos oferecermos uma mortificação pelos sacerdotes de todo o mundo no tempo das ordenações sacerdotais? Pelos sacerdotes de todo o mundo e especialmente pelos do Opus Dei, neste lindo tempo de ordenações sacerdotais? Parece-lhes que está bem fazer assim?” O costume foi fixado para toda a Obra: anos depois, por mudanças litúrgicas, foi transferido para outros dias do ano, sempre com o mesmo conteúdo de rezar e mortificar-se pelos sacerdotes.

Interessa-me sublinhar a naturalidade com que surgiam todas estas questões, que umas vezes se incorporavam à vida da obra e outras não. Tenho bem guardada a lembrança de uma reunião familiar em 19 de março de 1955. Alguém lhe perguntou sobre a conveniência de utilizar indústrias humanas para manter a presença de Deus durante o dia. Quem fez a pergunta sabia que São Josemaria fala em Caminho e em outros escritos sobre as indústrias humanas para referir-se aos meios humanos que podem ser utilizados ​​como lembrete para manter a presença de Deus durante o dia: São Josemaria respondeu comparando essas indústrias humanas a muletas que devemos usar ​​de vez em quando, embora nem sempre tenham que ser usados. E nos explicou como ele as usou por muitos anos para ter presença de Deus ao longo da semana:

- aos domingos, procurava pensar na Santíssima Trindade repetindo muitas vezes “Glória ao Pai, ao Filho...”: assim a louvava – dizia – como fazem os Anjos do Céu;

- nas segundas-feiras, pensava nas Almas do Purgatório, repetindo milhares de vezes” (especificou), Requiem aeternam...”, “Lux aeterna luceat eis, Domine...”, etc.;

- nas terças-feiras, lembrava-se dos Anjos da Guarda, repetindo a oração que sua mãe lhe ensinou, e a de Sancti Angeli Custodes nostri defendite nos in proelio ut non pereamus in tremendo iudicio” (Ó nossos Santos Anjos da Guarda, defendei-nos no combate, para que não pereçamos no tremendo juízo);

- às quartas-feiras buscava a presença de Deus através de São José, a quem muitas vezes dizia um poema que compôs, que (disse São Josemaria) era horrível”, mas feito com muito carinho;

- às quintas-feiras, disse ele, eram uma Comunhão contínua: comunhões espirituais, atos de reparação e perdão pelas vezes em que podendo, não comungou; visitas... Acrescentou que talvez daqui tenha nascido o costume de assaltar sacrários (cf. Caminho, 876);

- sextas-feiras, contemplava a Paixão do Senhor; alguma passagem específica e muitas orações;

- sábados, pensava em Nossa Senhora, dizendo: Senhora, mais que você, somente Deus”, “Filha de Deus Pai, Mãe de Deus Filho, Esposa de Deus Espírito Santo”.

Em muitas ocasiões durante estes anos, vi como ele vivia e infundia em nós a devoção aos Anjos e aos santos. Pois bem: esses detalhes da sua piedade pessoal ligados aos dias da semana não permaneceram como costume da Obra. Respondeu à pergunta contando tudo isso porque um de seus filhos havia perguntado e para o caso da sua experiência ser útil para alguém, mas não para todos.

Nos meus primeiros anos romanos, já disse que uma de minhas atribuições estava relacionada à música. Éramos eu e Erramun Eguía, outro basco que estava em Roma que tinha um ouvido musical extraordinário, mas pouco conhecimento de solfejo. Não que eu tivesse uma grande preparação específica: foram-me muito úteis os cursos de harmonia que fiz, e minha experiência nos corais de Bilbao. O resto, fui construindo aos poucos, comprando alguns livros e partituras, escrevendo algumas harmonizações de músicas etc. Formamos vários coros, adquirimos alguns pianos e preparamos acompanhamento musical para cerimônias litúrgicas e outros eventos festivos.

Nesses mesmos anos letivos (de setembro de 1954 a junho de 1956) fiz minha licenciatura em Direito Canônico no Angelicum: todas as manhãs íamos à universidade, quase sempre a pé (cerca de 35 minutos), porque não havia dinheiro para transporte, nem para o cigarro... nem para quase nada.

Neste clima em que o normal eram as privações, teve lugar um acontecimento de cuja data me lembro bem, porque dedicamos muito tempo a preparar a Missa em que Marco Castelli, filho do construtor de Villa Tevere, recebeu a sua primeira comunhão, e São Josemaria quis agradecê-lo pela sua colaboração nas obras da casa. Passamos ao nosso Padre um roteiro de como e o que cantaríamos nos diferentes momentos da cerimônia. Ele aprovou com um comentário: que no tempo restante sempre se ouvisse o órgão.

Deve-se dizer que o órgão era um dos primeiros da marca Hamond, que estava no coro de um dos oratórios da casa e que tinha alto-falantes em algum outro oratório, no salão principal etc. Confesso que foi horrível, mas deu certo, fizemos uma infinidade de gambiarras com o aparelho: acompanhar do coro, o coral que cantava na sala de aula de lá; usar dois telefones para acompanhar o coral em outros lugares etc.

No dia da primeira comunhão de Marco as músicas correram bem, mas quando chegou a hora de tocar o órgão, ele quebrou e não conseguimos fazer o que nos foi pedido. No final, São Josemaria chamou Erramun e eu e nos fez ver nossa culpa por não termos testado antes da cerimônia. Depois de receber silenciosamente a repreensão, ele mudou sua expressão para nos perguntar se estávamos com fome. Antes de ouvir nossa resposta, ele já estava ligando para a Administração, as mulheres encarregadas de cuidar da casa, para dizer por favor, tragam algo de comer para dar a alguns leões que eu tenho aqui” (eu tinha 24 anos, Erramun era um ou dois anos mais velho do que eu e, embora já o tenha dito, não resisto a repetir que ambos éramos de Bilbao). Logo chegou uma bandeja variada de frios baratos, mas substanciosos, acompanhada de bebidas. São Josemaria não experimentou nada enquanto, encorajados por ele, atacávamos tudo, até que, quando a última fatia estava prestes a desaparecer, comentou: vocês não acham que poderíamos fazer uma pequena mortificação?”

Aliás, lembro-me que São Josemaria não deu a primeira comunhão a Marco, porque um bispo, tio do menino, veio celebrar. Antes de dar a comunhão, este bom bispo dirigiu algumas palavras nas quais expressou sua emoção. Mais ou menos disse: “Estou muito feliz em dar-lhe a sua primeira comunhão e espero também ter a alegria de poder dar-lhe a última”. Uma declaração que surpreendeu os parentes e amigos presentes na cerimônia... inclusive a mim.

Nessa mesma época, na primavera de 1956, o Padre nos fez ver a desordem que poderia supor se quem já tivesse uma alimentação saudável e abundante, fizesse uma refeição no meio da manhã sem indicação médica para isso. Da mesma forma, em algumas ocasiões, para comemorar determinadas datas, pedia que a Administração nos passasse algum licor depois do almoço.

“Está anoitecendo”

Viveu exclusivamente para o Senhor: era evidente que não tinha outro propósito senão conhecê-Lo, amá-Lo e servi-Lo, e que essa atração divina crescia impetuosamente nos últimos anos da sua vida. Tinha os olhos postos na vida eterna, uma perspectiva a partir da qual valorizava todos os aspectos da existência: muitas vezes o ouvi dizer que temos que ter a cabeça no céu e os pés bem firmes no chão, dizendo que temos que buscar a santidade, a união com Deus, através das realidades desta vida.

Com relativa frequência, ouvi-o falar do Céu, que o Senhor nos dará se formos fiéis. Deixava bem claro para nós que essa fidelidade, e em particular a perseverança final, é um dom de Deus que não podemos merecer, por isso é necessário recorrer à misericórdia de Deus e aos meios sobrenaturais. Lembro-me de ouvi-lo dizer que nenhum de nós tem certeza da perseverança e que viu nisso um grande amor de Deus por cada um e sua liberdade, que isso não deveria nos inquietar, mas nos levar a considerar a misericórdia divina.

A partir da década de 1960, ouvi-o repetir a oração jaculatória do salmo Vultum tuum, Domine, requiram, (Buscarei teu rosto, Senhor) e muitas vezes ele nos falava sobre o rosto mais amável do Senhor, que iremos ver no céu. Numa reunião familiar em 3 de maio de 1967, ouvi-o, talvez pela primeira vez, dizer estas palavras: “está anoitecendo”, falando-nos com naturalidade do amor de Deus que nos espera. No ano anterior, em outra reunião familiar, cantamos uma canção que se tornara popular na Itália, chamada Aprite le finestre al nuovo sole. Ele gostou muito dela e em várias ocasiões nos disse que gostaria que a cantássemos para ele no momento de sua morte. Nessa mesma reunião, ele cantarolou uma música que diz “Eu sou o entardecer para você, e você é o meu amanhecer”, e finalizou comentando: a esperança é um dia com uma luz que não se apagará jamais”.

Ao mesmo tempo, lembrava-nos que não faz parte do espírito do Opus Dei querer morrer, mas – sempre aceitando a vontade de Deus – desejar viver, trabalhar duro e morrer espremido como um limão: devemos desejar viver muito, porque o Senhor tem poucos amigos na terra”.

A sua segurança na fé não era presunçosa. Não se considerava superior a ninguém, mas confiava exclusivamente em Deus. Sempre que falava de polêmicas doutrinais, da necessidade de ser fiel à doutrina da Igreja, terminava nos dizendo para pedirmos a Deus que não soltasse a nossa mão, pois poderíamos cair mais baixo do que qualquer outra pessoa. Este era o seu ensinamento e o seu exemplo: uma humildade sincera e prática, sustentada por um profundo autoconhecimento: dizia-nos muitas vezes que se via capaz de todos os erros e de todos os horrores do homem mais vil”, e que por isso compreendia as fragilidades humanas. Muitas vezes o ouvi repetir uma frase de um autor francês: não sei como será o coração de um criminoso, mas assomei-me ao coração de um homem de bem e me assustei”. Este conhecimento da alma humana levou-o a uma atitude de contrição contínua, que o enchia de paz e serenidade.

Não quero terminar estas páginas sem mencionar outra característica de São Josemaria: ele era extraordinariamente agradecido. Qualquer coisa que você fizesse por ele, ele considerava imerecido e o levava a agradecer. Comprovei isso em muitos detalhes: toda vez que ele me ligava para pedir alguma coisa, sempre o fazia com um por favor, e depois dizia obrigado, e se fosse algo mais pessoal, como pedir que o carro ficasse pronto porque ele iria dar uma saída, pedia desculpas por incomodar, perguntava se havia alguma dificuldade etc. Quando se comemorava o dia do seu onomástico ou seu aniversário, costumávamos preparar um programa de canções: nunca deixou de nos agradecer carinhosamente pelo que fazíamos. Certa ocasião, quando me deu uma tarefa especial, me agradeceu várias vezes quando me via. Em todas as tertúlias agradecia publicamente ao Pe. José Luis Pastor, que era seu médico, tudo o que fazia por ele etc.

Tínhamos uma grande esperança de que ele visse as obras concluídas e pudesse morar em Cavabianca (a sede definitiva do Colégio Romano, para onde me mudei em 1974). Cada vez que mencionávamos o assunto, tornava-se evidente o seu desprendimento em relação a algo que ele próprio tinha seguido com tanto interesse, e a sua disponibilidade perante a Vontade de Deus: sempre pensou que o importante era servir “aos que virão depois”, sem dar importância ao que ele pudesse chegar a ver na vida. No final de um dos últimos encontros que tivemos com ele em Cavabianca, no dia 24 de abril de 1975 às sete da tarde, quando já estava no carro para partir, dissemos-lhe que tudo estava ficando muito bonito, e quase sem dar importância a esse assunto, respondeu que não estava interessado nos prédios, mas sim naqueles que os ocupavam. Algumas semanas depois, em 7 de junho, enquanto íamos todos com ele para a ermida de Santa Cruz (um dos prédios dentro de Cavabianca), sugeri que fôssemos ver uma praça que tinha ficado muito bonita. Respondeu-me com humor, apoiando-se no meu braço: nem na sua terra se come um bezerro de uma vez... Eu vou vê-la se Deus quiser”.

Em 22 de junho de 1975, quatro dias antes de entregar sua alma a Deus, eu o vi e o cumprimentei pela última vez. Como sempre quando vinha a Cavabianca, fazia indicações para completar a decoração, melhorar detalhes etc., e ao mesmo tempo elogiava e encorajava os arquitetos. Assim que me viu me perguntou: “como vai isso aí?”. Demorei um pouco para reagir porque não imaginava que ele pudesse se lembrar de que eu tive um pequeno herpes labial, que estava praticamente curado.

Nesse dia acompanhei-o no percurso que fez por várias zonas de Cavabianca, que terminou com um encontro na sala de leitura. Pareceu-me que estava cansado, pelo menos no final da visita, que durou quase duas horas. Acho que foi para todos nós a última lição que nos deu em sua vida terrena: entusiasmo e empenho no trabalho – suas indicações aos que pintavam, aos arquitetos... – , a retidão de intenção e o desejo pelas almas que o moviam, sua união com Deus enquanto via as coisas, sua preocupação e carinho pelos filhos, sua graça e seu bom humor.

Iñaki Celaya