Josemaría Escrivá, reflexões sobre uma espiritualidade

Artigo publicado no "Caderno Cultura" do jornal "O Estado de S. Paulo" no dia 6 de outubro de 2002.

Hoje se celebra em Roma a canonização do fundador do Opus Dei, Josemaria Escrivá, em cuja espiritualidade muitas vezes penso ao ler alguns grandes escritores modernos. Nas obras de Chateaubriand, Baudelaire, Huysmans, Villiers de L'Isle-Adam, Sá-Carneiro e outros, irrompe a síndrome do tédio frente ao real, da insatisfação pela defasagem entre o infinito das aspirações e a realidade. Chateaubriand considerou-a a patologia do homem moderno e deu-lhe um nome: mal do século. Sob novas facetas e denominações, a temática da aversão à realidade e do escapismo, da busca do novo e do extraordinário, de paraísos artificiais e mesmo de perversões, foi-se intensificando e produções do simbolismo-decadentismo, da arte nova, das vanguardas do novecentos e de manifestações pós-modernas testemunham o fenômeno. Hoje ainda são atuais os versos de Baudelaire, assim traduzidos por Ivan Junqueira: "Ir ao fundo do abismo, Inferno ou Céu, que importa?/ Para encontrar no Ignoto o que ele tem de novo!" (Viagem).

Relaciono tal busca de uma realidade outra, perfeita ou imperfeita, ao idealismo, filosofia dominante na Europa em finais do 18 e parte do 19. Eça de Queirós usava o termo idealismo em oposição a positivismo, nele englobando romantismo, simbolismo ou decadentismo.

Lembro a peça Axel (1894), de L'Isle-Adam, em que os protagonistas, belos, aristocratas, cultos, se enamoram. O sonho de amor de Axel é, porém, tão elevado que ele se recusa a consumá-lo, pois a realidade ficaria sempre aquém. A solução que propõe e é aceita por Sara consiste no suicídio de ambos, único modo de o ideal se manter intocado. É dele a frase célebre: "Viver? Ora, nossos criados farão isso por nós."

Sá-Carneiro (1890-1916) é talvez o exemplo mais acabado de idealismo em nossa língua. Eis O Homem dos Sonhos: "(...) A vida, no fundo, contém tão poucas coisas, é tão pouco variada... Olhe em todos os campos. Diga-me: ainda se não enjoou das comidas que lhe servem desde que nasceu? (...) Chame os mais belos cozinheiros. Todos lhe darão legumes e carnes - meia dúzia de espécies vegetais, meia dúzia de espécies animais. Mesmo, na terra, o que não for animal ou vegetal é sem dúvida mineral... Eis o que demonstra bem a penúria inconcebível da Natureza! (...) tive um amigo que se suicidou por lhe ser impossível conhecer outras cores, outras paisagens, além das que existem."

São autores de elevado nível estético, que aprecio. Levaram-me, contudo, a pensar no que estaria ocorrendo na espiritualidade. Lembrei-me então de que, contemporaneamente ao decadentismo, num claustro carmelita, uma jovem muito jovem, foi descobrindo o que chamou de caminho das pequenas coisas. História de uma Alma, de Teresa de Lisieux, foi publicada em 1898. Era uma proposta diferente. Uma luz.

O 2 de outubro de 1928 constituiu outro marco decisivo. Josemaria Escrivá, desde adolescente, pressentia uma missão divina. Já padre, durante um retiro, entendeu-a claramente: abrir os caminhos divinos na terra santificando a vida ordinária e o trabalho profissional. À primeira vista, parece que isso não diz muito. Entretanto, a espiritualidade que irrompia naquele quadro decadente não era só uma a mais. Seu cunho realista trazia uma saída e antídoto vigoroso para a morbidez reinante. Não se dirigia ao aperfeiçoamento de alguns eleitos. Era um chamado universal à plenitude da vida cristã, para pessoas comuns, da rua, de qualquer raça, cor, nível cultural ou social que, para tanto, não teriam de deixar o mundo ou fazer votos. A essa luz se seguiu a fundação de uma Obra de Deus, Opus Dei.

Na homilia Amar o Mundo Apaixonadamente - o título é eloquente - pronunciada em 1967, na Universidade de Navarra, expõe com muita felicidade o espírito dessa obra que tem tudo a ver com o quadro inicialmente delineado. Sintetizo algumas idéias.

Alerta para um defeito na formação de gerações "sempre que se quis apresentar a existência cristã como algo unicamente espiritual - isto é, espiritualista -, próprio de pessoas puras, extraordinárias, que não se misturam com as coisas desprezíveis deste mundo (...) Responsabiliza-o pela deformação que converteu o templo no lugar por excelência da fé cristã e a separou do mundo comum". Recorda "que é a vida corrente o verdadeiro lugar da existência cristã (...). Faz ver que Deus nos chama a servi-Lo em e a partir das tarefas civis, materiais, seculares da vida humana (...) e nos espera cada dia: no laboratório, na sala de operações de um hospital, no quartel, na cátedra universitária, na fábrica, na oficina, no campo, no seio do lar e em todo o imenso panorama do trabalho".

Base do existir cristão tem que ser a unidade de vida. O cristão é cristão sempre, não só quando reza ou vai à igreja. Diz, instigantemente, haver: "Algo de santo, de divino, escondido nas situações mais comuns, algo que a cada um de nós compete descobrir." Não se trata de procurar o extraordinário, de buscar o novo nas profundezas do abismo, Inferno ou Céu, como no verso citado. Trata-se de desentranhar o divino oculto no material, e, para tanto, saber materializar a vida espiritual, pois em meio das pequenas realidades terrenas é que temos de aprender a relacionar-nos com Deus. "Não há outro caminho (...): ou sabemos encontrar o Senhor em nossa vida de todos os dias, ou não o encontraremos nunca."

O que se segue não é menos ousado: "Nossa época precisa devolver à matéria e às situações aparentemente mais vulgares seu nobre e original sentido: pondo-as ao serviço do Reino de Deus, espiritualizando-as, fazendo delas meio e ocasião para o nosso encontro contínuo com Jesus Cristo." Materializar a vida espiritual, espiritualizar a vida material. Como, na prática?

Trata-se de trabalhar o mundo para que dê frutos e chegue à plenitude prevista por Deus. Desentranhar potencialidades da matéria, eliminar suas resistências, direcionar tudo para servir a Deus e aos demais. Quer descobrindo como uma receita de cozinha fica mais saborosa e econômica, um modo menos estafante de limpar a casa, criando projetos, numa atividade de governo, para tornar mais justa a vida social, consertando um aparelho, exercendo a medicina para curar e promover a vida, diminuindo a dor num tratamento, aperfeiçoando uma prótese, uma cirurgia... Trabalhar é participar na criação e redenção do mundo.

Não terá sido essa visão - apaixonante - da finalidade da vida e do trabalho que foi sendo perdida de vista pelos cristãos no transcorrer dos séculos? Não sucedeu, de fato, uma compreensão errônea do lugar do existir cristão? e a falta de unidade de vida não trouxe consigo um cristianismo chocho, esvaziado, formal ? Daí à falta de sentido da vida, ao tédio e a uma exacerbação idealista foi só um passo.

A um mundo descristianizado, o sacerdote repete "que a vocação cristã consiste em transformar em poesia heróica a prosa de cada dia". Não atrai à primeira vista, parece desimportante, mas é alquimia que leva a adquirir paciência, humildade, tenacidade, bom humor, otimismo... Paradoxalmente, nesse árduo desempenhar "com amor a mais intranscendente das ações diárias, sabendo que, ao realizá-las, aquilo transborda da transcendência de Deus", encontra-se o tão buscado extraordinário, o antídoto para nossa insatisfação congênita e, paulatinamente, construímos uma felicidade que, plena mesmo, só na casa do Pai.

Difundir essa chamada universal de santificação no trabalho e na vida ordinária é a finalidade do Opus Dei. O que o Opus Dei faz? A que se dedica? Faz isso. Parece pouco mas abre para possibilidades infinitas. Elas não cabem nas poucas linhas desta exposição.

Maria Helena Nery Garcez é professora titular da Faculdade do Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.

    Maria Helena Nery Garcez // O Estado de S. Paulo