A unidade poética da mensagem de São Josemaria

Marcela Duque, vencedora do Prêmio Adonáis de poesia e editora da Rialp, foi uma das palestrantes na apresentação da edição número 100, em castelhano, de Caminho. Em sua fala, ela abordou a mensagem poética do Opus Dei, o dom literário de São Josemaria e o valor literário e espiritual de sua mensagem.

Fidel Sebastián, autor da edição 100, Marcela Duque, Prêmio Adonáis de poesia e editora da Rialp e Fernanda Lopes, presidente do Comitê do Centenário do Opus Dei.
Fidel Sebastián, autor da edição 100, Marcela Duque, Prêmio Adonáis de poesia e editora da Rialp e Fernanda Lopes, presidente do Comitê do Centenário do Opus Dei.

Boa tarde a todos, e muito obrigada pelo convite para participar deste ato e a Fidel por seu trabalho na edição 100 de Caminho. Pediram-me algumas reflexões sobre São Josemaria como escritor. O melhor que posso fazer é, talvez, remeter-vos à edição de Fidel e a outros livros e estudos escritos a este respeito. Penso, especialmente, no sacerdote, poeta e crítico literário chileno,José Miguel Ibañez Langlois e em seu livro sobre São Josemaria como escritor. Tenho, além disso, uma grande dívida poética com Ibañez Langlois, da qual gostaria de falar hoje, pois seus escritos me acompanharam durante muitos anos em meu empenho por aprender mais sobre a arte poética. Se tivesse que resumir em uma linha tudo o que eu aprendi de seus estudos é que na poesia deve dar-se uma unidade de som e de sentido, uma identidade entre a forma e o conteúdo.

Ele atribui essa capacidade a poetas como São João da Cruz, Jorge Manrique, Francisco de Quevedo e Pablo Neruda, e também o destaca na obra escrita de São Josemaria, especialmente em Caminho, no qual a brevidade de cada ponto requer grande precisão da linguagem, tornando evidente que “a expressão se cinge tanto ao que é expressado que quase se identifica com ele”, ou como o expressa poeticamente Octavio Paz, “a forma que se ajusta ao movimento / não é prisão mas pele do pensamento”.

Trata-se de versos que me agradam especialmente, pois “a pele do pensamento” expressa bem a natureza encarnada da arte, com a qual tantos artistas cristãos souberam se conectar por meio da Encarnação do Verbo, fazendo-nos pensar no “materialismo cristão” que São Josemaria pregava.

Creio que nessa ideia de unidade entre a forma e o conteúdo na arte há três fios entrelaçados que eu gostaria de explorar um pouco nesta reflexão. São eles:

  1. Que a mensagem do Opus Dei é uma mensagem essencialmente poética
  2. Que São Josemaria possuía um dom literário – poético – para expressar essa mensagem
  3. E que essa unidade entre o conteúdo e a forma, entre o que se diz e sua expressão, é precisamente a natureza da poesia.

1. A mensagem do Opus Dei tem um caráter essencialmente poético

Começo pelo primeiro: sempre pensei que a mensagem do Opus Dei é particularmente poética. E não uso a palavra “poética” aqui no sentido de algo muito belo ou emocionante (embora também sejam adjetivos que eu usaria para descrever a mensagem do Opus Dei), mas em um sentido mais próprio.

Penso que São Josemaria também pensava no espírito do Opus Dei nesses termos. Isso é sugerido pela frase que ele repetia “com um repetido martelar” sugere que “a vocação cristã consiste em transformar em poesia heroica a prosa de cada dia”, como se nisso se encerrasse o “segredo” do Opus Dei: “O milagre que o Senhor nos pede é ... [o] converter a prosa diária em decassílabos, em verso heroico, pelo amor com que desempenhamos as ocupações habituais”.

Esse converter a prosa diária em decassílabos é um exercício poético – de verdadeira poiesis,no sentido grego – um verdadeiro fazer que transforma tanto o próprio olhar quanto a realidade. Assim como o Rei Midas transformava em ouro tudo o que tocava, um cristão transforma a prosa diária em poesia quando “lê“ essa prosa em chave de amor.

Pois bem, há outro sentido em que São Josemaria pensa na santificação dos leigos em termos poéticos. São Josemaria não se referia a qualquer tipo de poesia, mas à transformação da prosa em decassílabos, “verso heroico”, pois sua mensagem de santificação da vida cotidiana constitui igualmente toda uma “épica da vida diária”. Não se trata da épica de um herói isolado, capaz de salvar o universo com suas próprias forças, mas da épica de um herói sustentado pela força emprestada da comunhão dos santos. Com diz São Josemaria “nenhuma pessoa é um verso solto”, mas “fazemos todos parte de um mesmo poema divino”. São Paulo expressa o mesmo conceito na carta aos Efésios: somos um poema de Deus – obra sua – criados em Cristo – Caminho, Verdade e Vida – para que caminhássemos nas boas obras. Aí está também a chave do título do livro que hoje celebramos.

2. São Josemaria tinha um dom literário – autenticamente poético – para expressar esta mensagem.

Passo agora ao segundo ponto: São Josemaria tinha um dom literário – genuinamente poético – para expressar essa mensagem. Isso talvez seja muito conhecido, mas devo à edição de Fidel a descoberta de uma carta na qual São Josemaria confessa ter escrito poemas em sua juventude, versos que assinava com o pseudônimo “O clérigo Coração”. Nela, ele parece envergonhar-se desses poemas, mas não da sensibilidade de onde eles brotaram: de seu coração, que ele descreve como “um pássaro louco que está enjaulado no peito e no qual cabem, bem amplamente, carinhos do céu e da terra”.

Ubi amor, ibi oculus: onde há amor, lá está o olho, lá há visão. É um dom divino o fato de que seu grande coração, graças ao qual tinha essa capacidade de ver, ter sido acompanhado de dotes para acompanhar essa visão com grande beleza e simplicidade. Ibáñez Langlois resume perfeitamente o dom de línguas de São Josemaria: “uma riqueza, variedade e versatilidade grandes de léxico; uma verdadeira paixão pela palavra exata e pela propriedade semântica; a rijeza do dizer castelhano castiço; a permanente cortesia da clareza; a fluidez de sua prosa, qualificada pelo talento memorável de falar como escreve e de escrever como fala, com simplicidade coloquial e precisão conceitual ao mesmo tempo; o dom da síntese e a economia do estilo lapidar e sentencioso; a liberdade criadora da fantasia; o uso e a invenção da imagem sensível, da metáfora e da parábola para exprimir altos significados espirituais; a emoção contida e temerosa do impulso lírico; a habilidade do contraste e do contraponto, do jogo de palavras e do paradoxo; a propensão a seguir os declives espontâneos da linguagem sem jamais trair o fio central da ideia ou do sentimento; a graça e o senso do humor”.

Se Caminho já se tornou um clássico da literatura, é porque o insight de São Josemaria sobre as coisas do mundo e do espírito era acompanhado por um grande dom de línguas, com uma vivacidade excepcional de expressão.

Fidel Sebastián descreve os pontos de Caminho como “aforismos dialogados”, dirigidos a Deus e ao leitor, com um tom direto, inclusive ousado. Creio que essa é a primeira impressão de qualquer leitor: a sensação de entrar em uma conversa íntima e coloquial, pessoa para pessoa. Esse é o motivo pelo qual Caminho é um livro ameno, com um tom direto que fere quando deve ferir e inspira quando deve inspirar: “São coisas que te digo ao ouvido, em confidência de amigo, de irmão, de pai”.

Cada um terá sua própria história do primeiro encontro com Caminho. A minha remonta aos dias da minha Primeira Comunhão. Era o presente que a diretora do colégio dava a todas as meninas do segundo ano do ensino fundamental. Havia uma dedicatória, escrita à mão, convidando-nos a ler um ponto todas as noites, antes de dormir.

Posso dizer que o conselho me acompanhou por muitos anos. Na verdade, não porque eu lesse todos os dias, mas porque arraigou em mim a ideia de que era um livro para ler aos goles, que sempre estava lá disposto a dispensar um pouco de sabedoria, um ponto para reflexão; um livro para abrir de vez em quando, às vezes inclusive como um jogo para ver aonde o ar nos levaria naquele dia.

Muitos anos depois descobri dois decassílabos em um ponto conhecido que se tornaram imediatamente memoráveis e que suscitaram um poema de adolescente – como aqueles dos quais São Josemaria se envergonhava, e dos quais eu também me envergonho – que nunca verá a luz do sol, mas ao qual tenho um carinho especial. Os decassílabos de São Josemaria são:

“Não voes como ave de capoeira, quando podes subir como as águias” (Caminho, 7).

Como Fidel também recorda na introdução, São Josemaria costumava chamar de “gaiticas” os pontos de Caminho e aqueles que escrevia em cartões soltos. Ele explicava que o nome era uma referência ao fato de que, “se não se sopra, não soam. Cada um pode fazê-las soar segundo sua arte”. É a arte de São Josemaria que faz com suas gaiticas ressoem em crianças que mal fizeram a Primeira Comunhão, em pessoas que pouco sabem de Cristo ou que estão há muitos anos longe dele, em quem tem desejos de conhecê-lo melhor, e até em santos anônimos, “da porta ao lado”, como dizia o Papa Francisco

3. O valor literário e espiritual de sua mensagem: unidade entre o material e o espiritual

Chegamos agora ao terceiro ponto, que é uma síntese dos dois anteriores. A primeira ideia era que a mensagem do Opus Dei é essencialmente poética; a segunda que São Josemaria soube expressá-la com grande talento poético. Daí nasce a terceira: São Josemaria consegue uma verdadeira unidade entre a forma de expressão e o que é expressado. Isso, que é a natureza da poesia, converte-se em todo um símbolo da mensagem poética do Opus Dei, o de transformar a prosa diária em decassílabos.

Em outras palavras, uma das mensagens centrais do Opus Dei, descobrir o espiritual no sensível, é também a própria essência de toda a arte e a poesia, na medida em que revelam o universal no singular e o espiritual no sensível. Dizíamos anteriormente que a mensagem do Opus Dei compartilha com a poesia a tarefa de ver que as coisas materiais não se esgotam em sua materialidade mas podem ser expressão de uma realidade espiritual ou ser imagens que transcendem a si mesmas. São Josemaria explicava que seu objetivo com Caminho era “preparar um plano inclinado muito longo, para que as almas fossem subindo pouco a pouco, até conseguirem compreender a chamada divina, chegando a ser almas contemplativas no meio da rua”. “Ser contemplativos no meio do mundo” é outra expressão que resume a mensagem poética do Opus Dei: a vocação de unir o céu e a terra, que exige cultivar um olhar simbólico capaz de reconhecer o caráter sacramental do mundo, “o quid divinum” presente em tudo o que é material, pois as coisas mais comuns – afirma São Josemaria – “transborda[m] da transcendência de Deus”.

É também por isso que, como observa Pedro Antonio Urbina em um estudo sobre a imagem em Caminho, as imagens que São Josemaria costuma utilizar são as de “um mundo fundamentalmente urbano e doméstico, cotidiano”, próprias dessas realidades mundanas que é preciso santificar. Esse olhar contemplativo, tão evidente em seus escritos, tem um tom lírico inconfundível, mas também é fruto de sua vida espiritual, de seu olhar enamorado. Sua escrita está cheia de imagens cotidianas porque seu olhar consegue enxergar nelas todo um universo espiritual. Por isso que toda realidade espiritual lhe serve para abrir considerações sobrenaturais.

Em um ponto de Caminho que sempre me agradou especialmente, São Josemaria, assim como antes Francisco de Quevedo, converte algo tão comum como o pó em uma imagem tanto de nossa natureza caída, quanto de nossa natureza endeusada, conseguindo uma tensão perfeita entre a gravidade e a graça (como diria Simone Weil, que agora Rosalía pôs na moda). É um ponto genial que nos leva do solo ao céu e de volta ao solo, mas já com uma visão (e que talvez sirva também para iluminar a citação de Simone Weil usada por Rosalía em seu disco: "o amor não é consolo, é luz"):

“És pó sujo e caído. – Ainda que o sopro do Espírito Santo te levante sobre todas as coisas da terra e te faça brilhar como o ouro, ao refletires nas alturas, com a tua miséria, os raios soberanos do Sol da Justiça, não esqueças a pobreza da tua condição. Um instante de soberba te faria voltar ao chão, e deixarias de ser luz para ser lodo” (Caminho, 599).

Antes de passar o microfone a Fidel, termino com outro dos meus pontos favoritos, que me lembra o fragmento de Safo que afirma que o mais belo sobre esta negra terra é o que mais se ama. Trata-se de um ponto que consegue capturar a imaginação e o coração. Ele nos submerge nas considerações mais emocionantes sobre a grandeza de toda a criação e, quando pensamos já ter alcançado a plenitude, consegue alargar ainda mais o horizonte para apresentar uma visão do seguimento de Cristo como a aventura mais apaixonante.

Esse ponto que me faz pensar em uma orquestra da qual São Josemaria é o maestro que aos poucos convida outros instrumentos a se unirem à orquestra, cada vez com mais expressividade e volume, marcando silêncios – eloquentes reticências – no lugar perfeito. Tudo culmina em um final apoteótico, pois, como dizia o poeta e pintor David Jones, a Eucaristia é o sinal mais eficaz em nosso mundo, pois aponta para a própria realidade:

“Considera o que há de mais formoso e grande na terra..., o que apraz ao entendimento e às outras potências..., o que é recreio da carne e dos sentidos... E o mundo, e os outros mundos que brilham na noite: o Universo inteiro.

E isso, mais todas as loucuras do coração satisfeitas..., nada vale, é nada e menos que nada, ao lado deste Deus meu! – teu! – tesouro infinito, pérola preciosíssima, humilhado, feito escravo, aniquilado sob a forma de servo no curral onde quis nascer, na oficina de José, na Paixão e na morte ignominiosa..., e na loucura de Amor da Sagrada Eucaristia“ (Caminho, 432).

Com estas palavras de Caminho, dou lugar a Fidel Sebastián que vai resumir para nós a aventura que viveu para preparar esta edição especial, número 100.

Marcela Duque

Fotos de: Pablo Pérez Tomé