Trabalhar bem, trabalhar por amor (14): Trabalho e família

Novo texto sobre o trabalho, atividade que pode conduzir à santidade. Neste, a reflexão centra-se na articulação entre vida profissional e familiar.

«O trabalho constitui o fundamento sobre o qual se edifica a vida familiar, que é um direito fundamental e uma vocação do ser humano. Estas duas esferas de valores – uma relacionada com a profissão e a outra derivada do carácter familiar da vida humana – devem unir-se entre si e articular-se de um modo correto»[1].

Nem sempre é fácil conciliar as exigências da vocação familiar com as da vocação profissional, mas harmonizá-las constitui uma parte importante do empenho por viver em unidade de vida. É o amor de Deus que dá unidade, põe ordem no coração, mostra quais são as prioridades. Entre essas prioridades está o saber situar sempre o bem das pessoas acima de outros interesses, trabalhando para servir, como manifestação da caridade; e viver a caridade de forma ordenada, começando pelos que Deus colocou mais diretamente ao nosso cuidado.

A vida familiar e a vida profissional apoiam-se mutuamente. O trabalho, dentro e fora de casa, «é, em certo sentido, uma condição para tornar possível a constituição de uma família».

A vida familiar e a vida profissional apoiam-se mutuamente. O trabalho, dentro e fora de casa, «é, em certo sentido, uma condição para tornar possível a constituição de uma família». Em primeiro lugar porque a família «exige os meios de subsistência que normalmente se obtêm através do trabalho»[2].

Por outro lado, o trabalho é um elemento fundamental para se atingirem os fins da família. «Trabalho e laboriosidade condicionam todo o processo de educação na família, precisamente pelo facto de que cada um “se torna homem” mediante o trabalho, entre outras coisas, e que o facto de se tornar homem exprime exatamente a finalidade principal de todo o processo educativo»[3].

A Sagrada Escritura mostra-nos como articular estes dois âmbitos. S. Josemaria aprendeu e ensinou as lições de Santa Maria e de S. José. Com o seu trabalho, proporcionam a Jesus um lar para crescer e Se desenvolver.

O exemplo de Nazaré ressoava na alma do Fundador do Opus Dei, como escola de serviço, onde ninguém reserva nada para si próprio. Ali não se ouve falar da minha honra nem do meu tempo, nem do meu trabalho, nem das minhas ideias, nem dos meus gostos, nem do meu dinheiro. Ali tudo se coloca ao serviço do grandioso jogo de Deus com a humanidade, que é a Redenção[4].

Imitar S. José

Olhai:que faz S. José, com Maria e com Jesus, para seguir o mandato do Pai, a moção do Espírito Santo? Entrega-Lhe todo o seu ser, põe ao seu serviço a sua vida de trabalhador. José, que é uma criatura, alimenta o Criador; ele, que é um pobre artesão, santifica o seu trabalho profissional, uma coisa que os cristãos esqueceram durante séculos e que o Opus Dei veio recordar. S. José dá-Lhe a sua vida, entrega-Lhe o amor do seu coração e a ternura dos seus cuidados, empresta-Lhe a fortaleza dos seus braços, dá-Lhe… tudo o que é e pode: o trabalho profissional corrente, próprio da sua condição[5].

S. José trabalhou para servir o Filho de Deus e a sua Mãe. Nada sabemos do produto material do seu trabalho, nem foi encontrado nenhum objeto que tenha a sua assinatura

S. José trabalhou para servir o Filho de Deus e a sua Mãe. Nada sabemos do produto material do seu trabalho, nem foi encontrado nenhum objeto que tenha a sua assinatura; mas sabemos quem foram os primeiros a beneficiar das suas horas de fadiga: a Santíssima Virgem e Nosso Senhor Jesus Cristo. O corpo do Senhor, entregue anos mais tarde na Cruz para nos salvar, participou da indigência humana, cresceu e desenvolveu-se sob o amparo dos seus pais, necessitou do trabalho de José.

O trabalho de S. José é um exemplo maravilhoso do jogo divino e humano da Redenção. Está ao serviço das necessidades mais materiais da santíssima Humanidade do Redentor. Ensinou o seu ofício ao Divino Artífice, sustentou economicamente, com o seu esforço, o Senhor de toda a Criação. Ao voltar a casa não se deixou levar pelo cansaço da jornada, pois não quis privar o Filho de Deus dos cuidados e atenções próprios da paternidade humana.

Ao dedicar a sua vida à Família, S. José alcançou um lugar de honra na História da Salvação

Ao dedicar a sua vida à Família, S. José alcançou um lugar de honra na História da Salvação. O seu trabalho, longe de se ver empequenecido pelas exigências impostas pelas suas responsabilidades como cabeça de família – viagens, mudanças de domicílio, dificuldades e perigos – viu-se infinitamente enriquecido. O trabalho de S. José, tal como o de Santa Maria, transborda de transcendência, eternidade.

Que grande lição para nós, que tão facilmente nos deixamos fascinar pelo desejo de afirmação pessoal e glória humana no trabalho!

Que grande lição para nós, que tão facilmente nos deixamos fascinar pelo desejo de afirmação pessoal e glória humana no trabalho! A glória de S. José foi ver crescer Jesus em idade e sabedoria[6], e servir Nossa Senhora. As horas de esforço continuado do santo Patriarca tinham rosto. Não terminavam numa obra material, por muito bem feita que estivesse. Eram ocasião para amar a Deus no seu Filho e na sua Mãe.

Deus deu-nos a possibilidade de O descobrirmos e amarmos, servindo os mais próximos, através das diferentes tarefas profissionais. Muitas pessoas colocam na secretária ou no local de trabalho fotografias ou algo que lhes faça lembrar os seres queridos, e isto serve-lhes para darem sentido às suas tarefas, recorda-lhes que o esforço vale a pena, que não trabalham sozinhos. Se não há amor, se a família, todas as pessoas e, em última análise, Deus, deixam de dar sentido ao trabalho, o coração procura sucedâneos, na forma de vaidade, afã de êxito ou consideração social.

Dá muita pena ver pessoas interiormente divididas. Sofrem muito, inutilmente. Tratam de ajustar uma infinidade de compromissos que não são compatíveis. Por mais que se esforcem não conseguem porque o que lhes falta não é tempo, mas um coração ordenado e enamorado. As obrigações familiares parecem-lhes um obstáculo para crescer profissionalmente; quereriam ser bons amigos, mas não usam a cabeça e o coração para pensar nos outros. O exemplo de S. José pode ajudar-nos a todos. Nele, o cuidado da Sagrada Família e o trabalho de artesão não eram coisas distintas, mas uma única realidade. Cuidava de Santa Maria trabalhando, e mostrava o amor a Jesus com a sua tarefa, numa vida plenamente coerente.

Apostolado urgente

valorizar afetiva e efetivamente as profissões mais estreitamente ligadas aos fins próprios da família, como sejam os trabalhos domésticos, o trabalho educativo

«Deve-se recordar e afirmar que, numa visão global, a família constitui um dos mais importantes pontos de referência, segundo os quais tem de ser formada a ordem socio-ética do trabalho humano (…). Com efeito, a família é, ao mesmo tempo, uma comunidade tornada possível pelo trabalho e a primeira escola interna de trabalho para todos e cada um dos homens»[7]. Enfrentamo-nos hoje com o repto apaixonante de outorgar à família o lugar central que lhe corresponde na vida das pessoas e no mundo do trabalho. Este repto assume muitas facetas. Em primeiro lugar, valorizar afetiva e efetivamente as profissões mais estreitamente ligadas aos fins próprios da família, como sejam os trabalhos domésticos, o trabalho educativo, muito especialmente nos primeiros anos de vida, ou as diferentes formas de colaboração – nunca substituição dos deveres familiares – na assistência a doentes e a idosos.

É também um desafio muitíssimo atual evitar, tanto quanto possível a cada um, que a organização do trabalho gere situações que fomentem graves tensões familiares ou incompatibilidades com as obrigações do lar. Estas situações ocorrem com frequência: salários insuficientes, que dificultam o crescimento e desenvolvimento normal das famílias; horários que reduzem muito a presença do pai ou da mãe no lar; travões à atitude generosa, aberta à vida, de muitas mulheres que desejam compatibilizar a dedicação à família com o trabalho fora de casa.

Não podemos esquecer que a competitividade laboral que reina na sociedade atual afeta de modo particular os profissionais jovens, que tantas vezes têm de compatibilizar a dedicação à família com uma pesadíssima carga de trabalho. Com frequência vive-se com um horário de trabalho muito apertado e com uma remuneração não tão generosa como se quereria para enfrentar com paz a aventura familiar.

Há que pedir ao Senhor a fortaleza para saber dizer que não a supostas exigências do trabalho, sem se deixar absorver pelo que não é mais que um meio

Por outro lado, para se progredir profissionalmente, as regras laborais exigem muitas vezes mais dedicação, mais disponibilidade, mais viagens… É certo que a vida é complexa, competitiva; e que frequentemente a agressividade no âmbito laboral dificulta a harmonia entre a vida familiar e profissional. Negá-lo seria fechar os olhos à realidade, mas aceitá-lo como algo irremediável – como quando vemos que está a chover – não seria próprio de um filho de Deus. Há que pedir ao Senhor a fortaleza para saber dizer que não a supostas exigências do trabalho, sem se deixar absorver pelo que não é mais que um meio. Temos toda a ajuda divina para mudar o mundo, a cultura, a sociedade; para mudar o nosso coração. Mas devemos primeiramente encher-nos de esperança – dom divino – porque o Senhor pode tudo. Se captarmos com força o exemplo de serviço, de abnegação, de entrega autêntica e concreta que nos mostra a Família de Nazaré, saberemos depois encontrar tempo para a família, para a relação com Deus: o nosso verdadeiro tesouro. Porque o segredo da unidade de vida é ter um coração enamorado, um amor que ilumina toda a nossa vida, também quando se apresenta cinzenta e com nuvens grandes e densas.

O repto é grande, e a tarefa apostólica urgente. Há dois pontos capitais na vida dos povos: as leis acerca do casamento e as leis acerca do ensino. E aí têm de estar firmes os filhos de Deus, lutando bem e com nobreza, por amor a todas as criaturas[8].

Uma sociedade que não proteja a família, talvez com a falsa desculpa de um progresso técnico e económico mais rápido, na realidade está a acelerar a sua destruição.

Uma sociedade que não proteja a família, talvez com a falsa desculpa de um progresso técnico e económico mais rápido, na realidade está a acelerar a sua destruição. Sem a família, a civilização degenera, e a médio prazo desagrega-se e fica estagnada, também economicamente. A Igreja não se cansa de o recordar. As famílias cristãs estão chamadas a preservar com firmeza esta instituição.

Apoiar e fomentar o conjunto de valores que a família cultiva é hoje uma prioridade na missão da Igreja. Disto dependem muitas outras coisas. A qualidade moral duma sociedade depende da saúde moral das suas famílias. Na origem de muitas situações de corrupção generalizada, que acabam por minar a capacidade de trabalho, está seguramente um défice de educação na justiça e no serviço aos outros dentro das famílias. Pensemos também, por exemplo, na dificuldade de responder com generosidade a uma chamada divina, quando a personalidade não amadureceu num ambiente adequado.

As gerações que virão a protagonizar o futuro contarão com os recursos espirituais e morais que receberem agora, principalmente no seio das suas famílias.

As gerações que virão a protagonizar o futuro contarão com os recursos espirituais e morais que receberem agora, principalmente no seio das suas famílias. É incalculável a transcendência social do que acontece na pequena comunidade familiar. Está em jogo a felicidade de muitas pessoas. Vale a pena levar muito a sério, sem regatear esforços e começando pela própria família, esta colossal tarefa apostólica.

Meus filhos, temos de estar sempre no meio da rua, no meio do mundo, procurando criar à nossa volta um remanso de águas límpidas, para que venham outros peixes, e entre todos vamos limpando o remanso, purificando o rio, devolvendo a sua qualidade às águas do mar[9]. O empenho que puserdes, minhas filhas e meus filhos, para imprimir um tom profundamente cristão nos vossos lares e na educação dos vossos filhos, fará das vossas famílias focos de vida cristã, remansos de águas límpidas que influirão em muitas outras famílias, facilitando também o surgir de vocações[10].


[1] S. João Paulo II, Carta enc. Laborem Exercens, 14-IX-1981, n. 10

[2] Ibid.

[3] Ibid.

[4] S. Josemaria, Carta 14-II-1974, n. 2.

[5] S. Josemaria, Meditação "S. José, Nosso Pai e Senhor", 19-III-1968, citado por J.M. Casciaro, La encarnación del Verbo y la corporalidad humana, en "Scripta Theologica" 18 (1986/3) 751-770.

[6]Cf. Lc 2, 52.

[7] S. João Paulo II, Carta enc. Laborem Exercens, 14-IX-1981, n. 10

[8] S. Josemaria, Forja, n. 104.

[9] S. Josemaria, Notas da pregação, 20-V-1973; em E. Burkhart, J. López, Vida cotidiana y santidad en la enseñanza de San Josemaría, III, Rialp, Madrid 2013, p. 118.

[10] Mons. Javier Echevarría, Carta, 28-XI-2002, nn. 11-12, em www.opusdei.pt

J. López Díaz e C. Ruíz