Os anos no seminário

Desde 1918 até 1925, ano da sua ordenação sacerdotal, S. Josemaria preparou-se para receber as ordens sagradas. Daqueles anos conservam-se testemunhos de seminaristas seus companheiros.

Desde outubro de 1918 foi aluno externo do Seminário. Além disso estudava em casa com um professor particular, Manuel Sanmartin. No ano letivo de 1919-1920 terminou o primeiro ano de Teologia. Obteve a nota de meretissimus em todas as disciplinas menus numa, em que teve benemeritus.

Um colega seu, Manuel Calderón, declara que era bom estudante e tinha uma excelente cultura geral: “pulcro, elegante, de fino trato, parecia que pertencia a uma família importante”. Outro companheiro Amadeu Blanco, recorda com precisão, o seu casaco azul com colarinho alto e laço; contudo o que chamava mais a atenção era o seu sorriso, o caráter agradável, amável, sorridente. Algo semelhante considerou Máximo Rubio: era bem-educado, cuidadoso no vestir e delicado no trato com os outros; bom estudante, sério, ainda que – na sua opinião – tinha um caráter algo reservado: “falava o suficiente e era muito observador e piedoso”. Contudo, Pedro Baldomero Larios – filho de um encadernador muito amigo do pai de Josemaria – via-o “simpático, comunicativo, alegre e muito agradável. Impressionava-me muito, porque o considerava pessoa de muito talento”.

Pedro Baldomero Larios era aluno externo do Seminário, em anos escolares inferiores ao de Máximo e a José María Millán, já falecido, que, segundo parece, naqueles anos foi o maior amigo do futuro Fundador do Opus Dei. A sua vida discorria entre a família e as aulas, e pouco mais. Reuniam-se de vez em quando na casa dos Larios, ou dos Escrivá ou na dos Rubio. Nalgumas ocasiões iam passear em direção a Lardero – naquela época parecia-lhes que era um caminho afastado - ou iam ao rio apanhar caranguejos.

Larios – talvez por ser o mais jovem - não acrescenta nada digno de especial referência quanto à sua vida de piedade: “costumávamos ir diariamente à Missa no Seminário, embora fôssemos alunos externos. Depois íamos tomar o pequeno-almoço às nossas casas e a seguir íamos para as aulas”. É Máximo Rubio quem confirma que Josemaria, durante uma temporada, ia muito e passava bastante tempo no convento dos Carmelitas. Máximo Rubio também refere a inquietação apostólica de Josemaria: nas conversas que tinham ao sair das aulas, fazia-lhes pensar no trabalho que se podia fazer com os alunos da Escola, e manifestava-lhes a sua pena pela falta de espírito cristão que se notava naquela juventude.

No Seminário havia uma catequese, muito numerosa, que era dirigida pelos alunos internos. Não parece que os alunos externos ajudassem muito nas aulas de catequese, porque a Amadeo Blanco – aluno interno – ficou gravada na sua memória a presença de Josemaria: sem ter obrigação, ia lá todos os Domingos – a catequese era dada na própria igreja do Seminário – e punha-se à disposição “para o que lhe mandassem”.

Josemaria esteve pouco tempo como aluno externo do Seminário de Logroño. Rapidamente, em setembro de 1920, mudou-se para Saragoça, para continuar os estudos de Teologia na Universidade Pontifícia de São Valério e São Braulio.

Passou o tempo e aconteceram muitas coisas duras, tremendas, que não vos relato, porque a mim não me causam pena, mas a vós sim, entristecer-vos-iam. Eram golpes de Deus Nosso Senhor, com o fim de preparar - dessa árvore - a viga que ia servir, apesar da sua debilidade, para fazer a sua Obra. Eu, quase sem dar-me conta, repetia: Domine, ut videam! Domine, ut sit! Não sabia o que era, mas seguia em frente, em frente, sem corresponder plenamente à bondade de Deus, esperando o que mais tarde haveria de receber: uma série de graças, uma atrás de outra, que não sabia como qualificar e que chamava operativas, porque de tal maneira dominavam a minha vontade que quase não tinha que fazer esforço. Seguindo em frente, sem coisas estranhas, trabalhando apenas com uma intensidade normal... Foram os anos de Saragoça.

Josemaria começou nesta cidade uma vida muito diferente da que tinha levado até então, e que decorreria entre o Seminário de São Carlos e a Universidade Pontifícia de São Valério e São Braulio.

A Universidade Pontifícia estava na praça da Sé, junto ao Palácio Episcopal. Aí podia fazer-se a Licenciatura e o Doutoramento em Filosofia, em Teologia e em Direito Canónico. Os seminaristas iam às aulas a esta Universidade Pontifícia, enquanto o resto da formação sacerdotal – estudo, piedade e disciplina – recebiam-na nos Seminários em que residiam.

Nos últimos dias de setembro de 1920, Josemaria foi viver para o Seminário de S. Francisco de Paulo, que ocupava dois andares no edifício do Seminário Sacerdotal de S. Carlos, mas tinha capela e refeitório independentes. Os seminaristas vestiam uma túnica preta, sem mangas, e usavam uma faixa vermelha com um escudo metálico: um sol e a palavra charitas. De S. Carlos iam às aulas em duas filas, pelo Coso até à praça da Sé, acompanhados por um inspetor. Antes do pequeno-almoço, tinham em S. Carlos meia hora de meditação e assistiam à Missa. Depois de acabar as aulas – habitualmente três – voltavam ao Seminário para almoçar. E de tarde, voltavam de novo para a Universidade. Quando regressavam tinham recreio, estudo e Terço. Jantavam e, antes de se deitar, rezavam umas preces e recebiam uma breve exortação, com os pontos para a meditação do dia seguinte. Às quintas-feiras de tarde, iam dar um passeio, em filas, por lugares pouco frequentados ou ao campo. Os que tinham familiares em Saragoça podiam sair aos Domingos.

Uma das razões pelas quais Josemaria saiu de Logroño, foi a de poder fazer também o curso de Direito, na Universidade de Saragoça. Como já vimos anteriormente, assim o comentava o seu pai em Fonz, durante o Verão de 1919. Enquanto Josemaria esperava ver claramente o que Deus queria dele, pensava que, do ponto de vista humano, estaria melhor preparado para cumprir a vontade divina se também tivesse um curso civil. Por seu lado, D. José aconselhava-o a fazer o curso de Direito, apesar dos sacrifícios económicos que comportava a mudança do filho.

Em Saragoça viviam vários parentes próximos e amigos íntimos da família. Entre eles havia um tio, D. Carlos Albás, que era cónego arcediago na Sé. Contudo, uns amigos de Josemaria naquela época, ressaltam que as relações entre D. Carlos e a família do sobrinho, não eram muito boas e não era por causa dos Escrivá. Ao que parece, o cónego da Sé não apreciava muito o seu cunhado, a quem acusava de ser responsável pelo seu desaire económico: “Era uma tremenda injustiça - observa uma testemunha daquela época, referindo-se à atitude intransigente do Cónego para com o pai de Josemaria – ao não se dar conta da atuação reta e honrada que teve aquele homem, durante toda a sua vida, até ao ponto de liquidar o seu negócio, pensando mais na sua límpida consciência cristã do que nos interesses pessoais materiais”. O facto é que D. Carlos não foi a Logroño em 1924, quando D. José morreu, nem depois assistiu à Missa Nova de Josemaria, em 1925.

Não era fácil para Josemaria a vida no Seminário. Deve ter sido difícil ambientar-se àquela casa de S. Carlos, pois até essa altura tinha estado afastado dos caminhos normais da formação eclesiástica. O ambiente da Escola ou do Colégio de S. António em Logroño era muito diferente do que encontrava agora entre os seminaristas de Saragoça.

Um colega de estudos naquele Seminário, hoje notário numa cidade espanhola, descreveu em termos precisos, o clima que ali se respirava. Não o teria feito, se não lho tivesse perguntado expressamente. E ao recordar aqueles anos, dá-lhe pena pensar que se possam interpretar mal as suas palavras. Sendo notário, apenas quer referir-se aos factos, muito justificáveis e razoáveis, com a consciência clara de que saíam homens santos do Seminário.

Boa parte dos alunos chegava ao Seminário de S. Carlos com as virtudes tradicionais dos ambientes rurais aragoneses, mas também com alguns defeitos notórios naquela época: cultura demasiado elementar, certo desprezo pelas normas de educação devido a uma sinceridade mal compreendida, descuido na higiene pessoal, etc. As virtudes cristãs supriam muita coisa. De facto, o Fundador do Opus Dei, sempre que se referiu aos seus tempos de Seminário, dizia que, com desejos de servir a Igreja, nos seus companheiros não recordava mais do que virtudes.

Desde o primeiro momento, alguns não compreenderam o valor, o humor e as boas maneiras de Josemaria. Quando foi nomeado Superior do Seminário, teve como ajudante José María Román Cuartero, que o via sempre muito distinto e mais educado que os outros seminaristas: refere, por exemplo, que todos os dias se lavava dos pés à cabeça, coisa que os outros não faziam. Estes e outros pormenores, fizeram que este rapaz pensasse que Josemaria não chegaria a ser sacerdote, porque o considerava com possibilidades humanas para seguir melhores carreiras. Outro condiscípulo, Francisco Artal Luesma, sublinha o contraste de maneira mais positiva: a sua permanência no Seminário era uma manifestação clara da sua correspondência à vontade de Deus; a sua limpeza exterior e a sua correção no modo de vestir é prova de amor à dignidade sacerdotal, reflexo da delicadeza da sua alma e da sua vida interior.

Logicamente, nem todos julgavam assim as coisas. Alguns interpretavam-nas ao contrário. Mas as incompreensões não lhe deixaram marcas, como assegura outro companheiro, que alguma vez lhe ouviu dizer: não creio que a sujidade seja virtude. Argumentava “com graça, sem rispidez, com o seu caraterístico sentido de humor”. O P. Agustín Callejas Tello, hoje pároco de Magallón, detém-se em considerações semelhantes: Josemaria era profundamente humano e tinha um grande sentido de humor; tirava partido de tudo, via o lado divertido das coisas; sabia muitas piadas e contava-as com graça; “causava grande admiração aos seus amigos a subtileza dos seus comentários, que punha por escrito em epigramas, com uma grande carga festiva ou satírica. Estes epigramas surpreendiam-nos muito, porque pressupunham um bom manuseio da língua castelhana, como consequência da sua familiaridade com os autores clássicos”.

Por outro lado, os motivos que tinham levado Josemaria ao Seminário eram, de certa forma, diferentes dos habituais: não queria fazer carreira e, por isso, o enquadramento eclesiástico – tema frequente das conversas - não era a sua única preocupação. Além disso, especialmente desde que foi nomeado superior, tinha facilidade para sair do Seminário, embora – como sintetiza um condiscípulo - “saía pouco e quando o fazia, regressava cedo, porque tinha que fazer alguma coisa”. Mas isto deu pé a algum mal-entendido, apesar de que Josemaria era atencioso com todos e procurava ser amigo de todos. O P. Agustín Callejas classifica-o “como um pioneiro e um inovador, pela independência e pela liberdade de espírito que, nalgumas ocasiões, alguns por deformação não entendiam e interpretavam, injustamente, como altivez”.

Até um professor se deixou levar por essa impressão. Conservam-se uns apontamentos desse professor, em que, referindo-se ao ano 1920-1921, define o caráter de Josemaria como “inconstante e atrevido, mas educado e atencioso”. Este professor observa que a sua piedade é boa, mas regular a sua aplicação e disciplina. No ano seguinte, já regista um bom nestes dois conceitos. (De facto, no ano 1920-1921, Josemaria obtém a classificação de meretissimus em quatro disciplinas e benemeritus noutra. Nos anos seguintes, consegue obter a classificação de meretissimus em todas as disciplinas). Mas não muda a classificação que atribui ao seu caráter, embora não concorde com os resultados objetivos: não condiz a inconstância com a máxima pontuação em todas as disciplinas.

Nesse manuscrito também aparece uma anotação secundária, infelizmente sem data. Reflete um momento que deve ter sido de grande tensão. A nota diz literalmente: “teve uma briga com Julio Cortés e foi-lhe imposto o castigo correspondente, cuja aceitação e cumprimento foi uma honra para ele, porque no meu entender, foi o seu adversário quem primeiro e mais o agrediu, proferiu contra ele – contra Josemaria - palavras grosseiras e impróprias de um clérigo, e na minha presença insultou-o na Catedral”. Não consegui averiguar mais nada acerca deste incidente. Só muito tempo depois, a 8 de outubro de 1952, o P. Julio Cortés, de um modo que o honra, escreve-lhe de Jaén – onde morreu sendo Capelão do Sanatório antituberculoso “El Naveral” - pedindo-lhe perdão, “arrependido e da maneira mais submissa e incondicional, mea culpa...!”

Parece que foi o maior desgosto que teve, mas de nenhuma maneira o único. A alma de Josemaria ia-se forjando para enfrentar as contradições bastante mais graves, que sofreria ao longo da sua vida.

Do que nunca ninguém duvidou, foi da sua vida de piedade intensa, agradável, alegre e atraente, que era não só compatível, mas fundamentava o seu constante sentido de humor e a sua visão positiva das coisas. Contudo, não dava importância àquilo que fazia, nem se gabava de nada: com naturalidade, fazia o possível por passar inadvertido. Um dia um companheiro encontrou no seu quarto um cilício, e disse-o aos outros. Desta vez, Josemaria pôs-se sério e fez-lhes ver que não era de boa educação, nem prudente, converter em falatório a piedade dos outros.

O P. Agustín Callejas admirava a sua atitude durante a meditação diária no Seminário: recolhimento, concentração, oração intensa. E a devoção com que comungava, sem fazer nada de estranho, “com as mãos juntas sobre o peito, o corpo erguido e o passo firme”.

No ano 1922-1923, as relações com os companheiros adquiriram um aspeto diferente, porque foi nomeado Superior do Seminário. Alguns recordam que o Cardeal Soldevilla – então Arcebispo de Saragoça - valorizava-o muito. Quando se encontrava com eles no Seminário, na Catedral ou em qualquer outro lugar, costumava dirigir-se a ele, diante dos outros, e perguntava-lhe como se encontrava e como iam os seus estudos. Algumas vezes dizia-lhe: - Quando tiveres um tempo disponível vem visitar-me.

O P. José López Sierra, que foi Reitor do Seminário naquele período, afirmou que o Cardeal tinha nomeado Josemaria, Superior dos seminaristas, “devido à sua conduta exemplar, não inferior ao seu rendimento nos estudos”. Segundo o parecer do Reitor, distinguia-se dos outros seminaristas “pela sua esmerada educação, afabilidade e simplicidade no trato, e notória modéstia”. Era – insiste – “atencioso com os seus superiores, compreensivo e bondoso com os seus companheiros, muito estimado pelos primeiros e admirado pelos segundos”.

Para ser Superior ou Inspetor do Seminário – ambos os termos se usavam indistintamente nos documentos oficiais – era preciso ser clérigo, ter recebido a tonsura. Por esta razão, o Cardeal Soldevilla tonsurou Josemaria em setembro de 1922, só a ele, numa capela do Palácio Arquiepiscopal de Saragoça, que hoje já não existe.

Os Superiores ou Inspetores escolhiam-se entre os alunos mais aplicados e piedosos. A sua missão consistia em dirigir os alunos no que dizia respeito aos seus estudos, cuidar a disciplina e os regulamentos, acompanhá-los nas suas saídas para as aulas ou nos passeios, etc. Embora sendo seminaristas, no Regulamento eram considerados superiores e devia-se-lhes obediência e respeito. Também tinham algumas regalias externas: quarto individual um pouco maior do que os dos restantes e um fâmulo ao seu serviço. (Os fâmulos eram seminaristas que tinham isenção de propinas e se encarregavam da limpeza dos quartos dos superiores e de servir à mesa de todos: algo parecido ao que se continua a fazer em universidades atuais de grande prestígio, como as americanas de Harvard ou de Princeton). Em S. Carlos havia dois inspetores: um para os que estudavam Humanidades e Filosofia e outro para os que estudavam Teologia. A sua função – refere um antigo seminarista – “tornava-se difícil, porque os rapazes mais novos costumavam fazer algazarra, própria da idade. Josemaria nunca se perturbava nem perdia a calma; sempre se comportava com caridade, prudência e educação”.

José María Román Cuartero, o fâmulo que destinaram a Josemaria ao ser nomeado Inspetor, recorda aqueles tempos em que, entre outros serviços, lhe fazia a cama de manhã, e servia à mesa separada, colocada à parte no refeitório geral, onde se sentavam os superiores: sempre o impressionou “a sua bondade e paciência na convivência”. Quando Josemaria o via aborrecido, procurava animá-lo com alguma frase carinhosa ou brincando com ele. E compartilhava com ele a comida, pois a dos superiores era especial. “Reparo agora que fazia estas mortificações, sem que se notasse, de maneira natural”.

O Reitor do Seminário, D. José Lopez Sierra, louvou sempre, até morrer, o afã apostólico de Josemaria como diretor dos seminaristas: queria conquistar a todos para Cristo, para que todos fossem um em Cristo e conseguia-o com o seu comportamento reto. Não era partidário de castigos. Formava os jovens seminaristas com uma “simplicidade e suavidade encantadoras”; a sua mera presença, sempre atrativa e simpática, acalmava os mais indisciplinados; um simples sorriso, acolhedor, assomava aos seus lábios, quando reparava nos seus seminaristas algum ato edificante; e com um olhar discreto, penetrante, triste às vezes, e muito condoído, repreendia aos mais travessos.

Assim foram passando os anos de Seminário. Sabemos também que passava muitas horas fazendo oração na tribuna direita (do lado da epístola) em cima, na igreja de S. Carlos.

Costumava passar as férias em Logroño, e certamente, como quando era pequeno, iria a Fonz, onde vivia o seu tio, o P. Teodoro. Nalgum verão passou uma temporada em Villel (Teruel), com a família de D. Antonio Moreno, naquela época vice-reitor do Seminário sacerdotal de S. Carlos. É recordado por Carmen Noailles, viúva de outro Antonio Moreno, sobrinho do anterior, mais ou menos da mesma idade de Josemaria, que estudava Medicina na Universidade de Saragoça. A sua vida na aldeia era completamente normal; conversavam, passeavam, iam apanhar caranguejos e algumas vezes faziam excursões. Carmen Noailles conta diversos pormenores que exprimem a delicadeza com que Josemaria vivia a pureza e o pudor.

Nunca saiu com raparigas. Os seus modos elegantes, o aspeto esbelto da sua pessoa, a sua aparência agradável no convívio, atraíam as raparigas. Quando Antonio ou algum outro amigo lhe faziam chegar comentários sobre o assunto, cortava a conversa, dizendo algo assim como: Se me conhecessem bem por dentro, tal como sou... E se alguém contava anedotas de mau gosto ou pouco limpas, cortava a conversa, com afeto, mas com vigor, dando respostas muito oportunas. “Nunca o vi fazer a mais pequena concessão, e não admitia piadas ou comentários frívolos a esse respeito”.

Naquela casa todos o apreciavam muito, porque Josemaria deixava-se querer: “era muito delicado, discreto e prudente, mas afetuoso e aparecia constantemente o seu natural e maravilhoso sentido de humor”. Consideravam-no como mais um filho da família.

Estas recordações de Carmen Noailles correspondem aos verões de 1921 ou de 1922, ou talvez a ambos. Foi no verão de 1923 que Josemaria começou a estudar Direito, para, em setembro, fazer exame das primeiras disciplinas. Já era clérigo – porque tinha recebido a tonsura - ao matricular-se na Faculdade no ano de 1922-1923. Em outubro de 1922, começou o quarto ano de Teologia. No dia 17 de dezembro, recebeu as ordens menores de ostiário e leitor, e no dia 21 – também no Palácio Episcopal – o de exorcista e de acólito, das mãos do Cardeal Soldevilla, que morreria a 24 de junho de 1923, assassinado por um grupo anarquista.

Entretanto, Josemaria continuava sem entrever a outra coisa que pressentia do amor de Deus. Estudava, rezava e punha-se nas mãos da Virgem, nas suas visitas diárias a Nossa Senhora do Pilar. Continuo tratando-a com amor filial - escreveria a 11 de outubro de 1970 no El Noticiero de Zaragoza - com a mesma fé com que a invocava naqueles tempos, por volta dos anos vinte, quando o Senhor me fazia pressentir o que esperava de mim.

Punha nas suas mãos a solução do que desabrochava na sua alma, sentindo-se – como afirmava noutra ocasião - meio cego, sempre esperando o porquê: porque me faço sacerdote? O Senhor quer algo, mas o que é? E num latim de baixa latinidade, tomando as palavras do cego de Jericó, repetia: Domine ut videam! Ut sit! Ut sit! Que seja isso que Tu queres, e que eu ignoro.

A sua oração de anos materializou-se numa imagem da Virgem Maria, que alguém encontrou anos depois: Passaram os anos, muitos anos, e uma vez, estando já em Roma, veio a Secretária Central e disse-me: Padre chegou aqui uma imagem da Virgem do Pilar que o senhor tinha em Saragoça. Respondi-lhe: não, não me recordo. E ela: sim, olhe para ela; há uma coisa escrita por si. Era uma imagem tão horrível, que não me pareceu possível que tivesse sido minha. Mostrou-ma e, debaixo da imagem, estava escrito com um prego, sobre o gesso: Domina, ut sit! Com um ponto de exclamação, como costumo pôr sempre nas jaculatórias que escrevo em latim. Senhora que seja! E uma data: 24-9-924.

Em junho de 1924 tinha terminado o quinto ano de Teologia. No dia 14 daquele mês recebeu o subdiaconado na igreja do Seminário de S. Carlos, das mãos de D. Miguel dos Santos Diaz Gómara, que o apreciava muito. D. Miguel era Presidente do Seminário de S. Carlos, e costumava escolher Josemaria para que o acompanhasse nos atos em que tinha de presidir, ou nas celebrações litúrgicas, por ocasião da administração de Sacramentos.

Durante o verão de 1924 estudou muito e em setembro fez exames de sete disciplinas na Faculdade de Direito. No mês de junho anterior, só fez exame de História de Espanha, disciplina que conhecia muito bem pelos seus estudos no ensino secundário e pelas suas abundantes leituras. Foi sempre um apaixonado, um verdadeiro erudito da História. Ainda que durante o ano estivesse centrado na sua preparação sacerdotal – só nos meses de verão se ocupava da sua carreira civil - apresentou-se a exame em junho, porque tinha uma formação histórica excelente, apesar do professor catedrático lhe ter feito saber, por meio de amigos comuns, que não se apresentasse a exame, pois o reprovaria, porque nunca tinha assistido às aulas, o que o professor considerava uma desfeita pessoal. Josemaria ficou admirado, mas como tinha um elevado sentido da justiça e, sendo um aluno livre, não tinha obrigação de assistir às aulas e conhecia perfeitamente a matéria, apresentou-se a exame. Foi reprovado, sem que o deixassem fazer o exame.

Em setembro, o professor reconheceu nobremente a injustiça e, antes dos exames, através dos amigos comuns, garantiu-lhe que ficaria aprovado, desde que se apresentasse a exame. Também nessa chamada de setembro, Josemaria obteve Matrícula de Honor em Direito Romano e Direito Canónico; excelente em Economia Política; notável em Direito Natural e aprovado em História do Direito e em Direito Civil I.

O ano académico seguinte, 1924-1925, foi praticamente em branco no que diz respeito aos estudos civis. Embora se tenha matriculado em quatro disciplinas e aplicado a duas as matrículas de honor obtidas no ano precedente, só pôde fazer o exame de Direito Civil II. Nesta disciplina obteve a classificação de notável, mas não fez exame a mais nenhuma disciplina, nem em junho, nem em setembro.

Não é estranho que isto sucedesse, porque no ano de 1924-1925 aconteceram muitas coisas decisivas. No dia 27 de novembro de 1924, morreu em Logroño o seu pai, José Escrivá. No dia 20 de dezembro, Josemaria recebeu o diaconado conferido por D. Miguel de los Santos Díaz Gómara, na igreja do Seminário de S. Carlos. No dia 28 de março de 1925, o mesmo D. Miguel de los Santos, que tinha sido Bispo auxiliar do Cardeal Soldevilla, administrou-lhe a ordenação sacerdotal. No dia 30, celebrou a Missa Nova no Santuário do Pilar, na Capela de Nossa Senhora. Assistiram poucas pessoas – umas doze, entre as quais a sua mãe, a sua irmã Carmen e o irmão mais novo, Santiago, com seis anos – a esta Missa, que o novo sacerdote ofereceu em sufrágio pela alma de seu pai. Na Santa Capela, perante um punhado de pessoas, celebrei sem ruído a minha Primeira Missa. Era segunda-feira da Semana da Paixão e no dia seguinte o P. Josemaria estava numa pequena aldeia - Perdiguera - cujo pároco estava doente. Substitui-o até 18 de maio.