- O bem e o mal estão dentro de nós
- Para um cristão, toda negação é uma afirmação maior
- Examinar a fundo o nosso coração
“ESCUTAI todos e compreendei: o que torna impuro o homem não é o que entra nele vindo de fora, mas o que sai do seu interior” (Mc 7, 14-15). Mais tarde, já em privado, os seus discípulos pedem-lhe uma explicação mais detalhada sobre este mesmo assunto, que sem dúvida parecia uma grande novidade para eles também. O Senhor parece ter um interesse especial em que isto se gravasse a fogo na alma de quem O seguia: é para o coração que Deus olha. Por isso Jesus tinha um desvelo especial para que as pessoas que o seguiam aprendessem a viver prestando atenção nas coisas importantes. O Senhor veio para trazer a redenção, para transformar os nossos corações, não para resolver disputas com horizontes estreitos.
O Evangelho mantém sempre a sua atualidade viva. Por isso, é bom que nos perguntemos na presença do Senhor se também acontece conosco o que acontecia aos fariseus, que limpamos o copo por fora, sem perceber que a sujeira estava dentro (cf. Mt 23, 26). Jesus “ressalta o primado da interioridade, ou seja, a supremacia do «coração»: não são as realidades externas que nos fazem santos ou não santos, mas é o coração que exprime as nossas intenções, as nossas opções e o desejo de fazer tudo por amor a Deus. As atitudes exteriores constituem a consequência daquilo que já decidimos no nosso coração, e não o contrário: com a atitude exterior, se o coração não muda, não somos cristãos autênticos. A fronteira entre o bem e o mal não passa fora de nós, mas, ao contrário, dentro. Então podemos interrogar-nos: onde está o meu coração? (...). Sem um coração purificado, não podemos ter mãos verdadeiramente limpas, nem lábios que pronunciam palavras de amor sinceras — tudo é falso, uma vida ambígua — lábios que pronunciam palavras de misericórdia, de perdão. Isto só pode ser feito por um coração sincero e purificado”[1].
A SAGRADA ESCRITURA apresenta-nos muitas indicações do que Jesus queria transmitir aos fariseus: queria explicar-lhes que as negações a que Deus nos convida algumas vezes, levam consigo, sob outra perspectiva, afirmações com um sentido positivo. A questão importante não eram os alimentos que podiam ou não podiam ser comidos, mas sim o que acontecia na interioridade da pessoa. É por isso que em outro trecho ouvimos este convite do Senhor: “Esforçai-vos não pelo alimento que se perde, mas pelo alimento que permanece até a vida eterna” (Jo 6, 27). Nessa mesma linha, São Paulo recorda-nos que “Todo atleta se sujeita a uma disciplina rigorosa em relação a tudo, e eles procedem assim, para receberem uma coroa corruptível. Quanto a nós, a coroa que buscamos é incorruptível!” (1 Cor 9, 25). O Senhor quer que evitemos cair na ascética daqueles fariseus que viviam o preceito, mas esqueciam o que havia no fundo, o que afirmavam na realidade.
O cristianismo é muito mais do que aquilo que se vê à superfície. O Senhor convida-nos a procurar o duradouro, permanente. A nossa fé não é um grande “não”, como alguns poderiam interpretar erradamente. Viver cristãmente implica às vezes, é claro, dizer “não”, mas só na medida em que nos ajuda a dizer “sim” a coisas maiores. Jejuamos, mas para procurar esse alimento que vale a pena, a que permanece. Bento XVI, na sua primeira homilia como sucessor de Pedro, recordando São João Paulo II, dizia: “Acaso não temos de algum modo medo –se deixamos entrar Cristo totalmente dentro de nós, se nos abrimos totalmente a ele, medo de que ele possa tirar algo de nossa vida? Acaso não temos medo de renunciar a algo grande, único, que faz a vida mais bela? Não corremos o risco de encontrarmo-nos logo na angústia e vermo-nos privados da liberdade? E ainda o Papa queria dizer: não! Quem deixa Cristo entrar não perde nada, nada – absolutamente nada – do que faz a vida livre, bela e grande”[2].
AO REVER a lista feita por Jesus sobre as coisas más que podem sair do nosso coração, pode ser interessante fazer uma pausa e descobrir o que se refere a nós pessoalmente. É verdade que o Senhor começa com palavras fortes, como “roubo” ou “assassínios”, e quando as ouvimos podemos assumir que não têm nada a ver conosco. No entanto, basta continuar adiante para descobrir que, na mesma lista, aparecem, por exemplo, o orgulho ou a falta de juízo. A tendência fácil de ofuscar a paz familiar com disputas semelhantes às daqueles fariseus ou o não saber “não dar importância cada dia a um pormenor ou outro, aborrecido e impertinente”[3], é um sinal de que pode haver no nosso carácter mais farisaísmo do que pensamos. Pode acontecer que silenciosamente a soberba esteja contaminando as nossas relações pessoais, ou que talvez não sejamos suficientemente sensatos para perceber que o Senhor pede que nos preocupemos com as coisas do alto, não com as coisas da terra (cf. Col 3, 2).
Esta passagem do Evangelho convida-nos a examinar até que ponto o nosso coração está se identificando cada vez mais com o Senhor. É São Paulo que nos alerta novamente, para percebermos que às vezes a soberba pode levar-nos a cair num modo superficial de viver a fé, tentando comportar-nos cristãmente, não para alegrar a Cristo, mas para satisfazer o nosso ego. “Se, com Cristo, morrestes para os elementos do cosmo, por que vos submeteis ainda, como vivendo no mundo, a proibições do tipo: ‘Não pegues’, ‘Não proves’, ‘Não toques’? São apenas preceitos e ensinamentos humanos acerca de coisas que se consomem pelo uso! Esses preceitos parecem ter algo de sabedoria, porque aparentam religiosidade, humildade e severidade para com o corpo, mas não têm nenhum valor contra a autossuficiência da carne” (Col 2, 20-23)
Podemos pedir, com São Josemaria: “Cor Mariæ Dulcissimum, iter para tutum; Coração Dulcíssimo de Maria, dá força e segurança ao nosso caminho na terra”[4]. Que a nossa Mãe nos ajude a purificar o nosso coração, para que daí, elevemos o nosso olhar e as nossas obras para Deus.
[1] Francisco, Ângelus, 30/08/2015.
[2] Bento XVI, Homilia, 24/04/2005.
[3] São Josemaria, Caminho, n. 173.
[4] São Josemaria, ÉCristo que passa, n. 178.