O chamamento de Deus ao sacerdócio

“Eu nunca pensei em tornar-me sacerdote”, mas pouco a pouco Deus foi-se metendo na alma do jovem Josemaria. Breve relato biográfico dos meses prévios à entrada no Seminário.

Eu nunca pensei em ser sacerdote, nem em dedicar-me a Deus. Não se me tinha apresentado esse problema, porque julgava que não era para mim. Mais ainda: incomodava-me o pensamento de poder chegar ao sacerdócio algum dia, de tal maneira me sentia anticlerical. Amava muito os sacerdotes, porque a formação que recebi em casa era profundamente religiosa; tinham-me ensinado a respeitar, a venerar o sacerdócio. Mas não para mim: para os outros.

Assim o manifestou Mons. Escrivá de Balaguer. E, por outro lado, quem com ele conviveu desde criança, nunca pensou que seria sacerdote. Mas, pouco a pouco, a vocação divina foi abrindo caminho, sem que houvesse nada, aparentemente, de extraordinário. Isto, que sucedeu na história de tantas almas, torna-se especialmente providencial no caso daquele que seria depois Fundador do Opus Dei, e teria de ensinar a santificar o que é o habitual, o de cada dia, advertindo, aos que o escutavam, contra a tentação do extraordinário: para o cristão vulgar, a santidade não consiste em fazer coisas estranhas, ou difíceis, mas precisamente em transformar a prosa diária em decassílabos, em versos heroicos.

A tentação do extraordinário, aparece em vários momentos nas páginas do Evangelho. O diabo – no final do longo jejum no deserto − quer afastar Cristo da sua missão redentora, evitando-lhe os padecimentos humanos – a fome, a sede, a dor −, com os quais precisamente levaria a cabo a Redenção dos homens. Mas não foi só Satanás. Os familiares de Jesus, querem que vá com notoriedade à Judeia, na Festa dos Tabernáculos. E os seus próprios discípulos incitam-no a fazer algo que chame a atenção da gente. Quando João e Tiago Lhe pedem que faça descer fogo do céu e devore os habitantes de uma cidade da Samaria, mais uma vez o Senhor tem que reprimir a sua tentação de se apoiar no anormal: “Não sabeis a que espírito pertenceis”. E assim foi, até ao momento dramático do Calvário, quando os príncipes dos sacerdotes e os escribas troçavam d´Ele, dizendo-Lhe que se descesse da Cruz e acreditariam nas suas palavras. Cristo rejeita a tentação: redime o género humano com a dor e a morte, não com êxitos espetaculares. Que sentido teriam, noutro caso, os seus trinta anos de vida oculta e de trabalho em Nazaré?

Deus serve-se de acontecimentos vulgares para atrair as almas ao seu amor. Nalgumas ocasiões faz grandes milagres, que passam inadvertidos aos olhares humanos. Mas o maior milagre continua a ser o caminho habitual, simples, da sua providência ordinária. Por meio destas veredas, abriu caminho a vocação de Josemaria Escrivá de Balaguer. Muitas vezes, repetiu-o aos membros da Obra, também para os prevenir contra a tentação do espetacular, do fulgurante:

Vêm ao meu pensamento muitas manifestações do amor de Deus naqueles anos da minha adolescência, quando pressentia que o Senhor queria algo de mim, algo que não sabia o que era. Acontecimentos e pormenores vulgares, aparentemente inocentes, dos quais Ele se valia, para meter na minha alma uma inquietação divina. Por isso compreendi muito bem aquele amor tão humano e tão divino de Teresa do Menino Jesus, que se comove quando no meio das páginas de um livro encontra uma estampa com a mão ferida do Redentor. Também me sucederam coisas desse estilo, que me comoveram e me levaram à comunhão diária, à purificação, à confissão e à penitência.

Fazia considerar este modo divino de proceder às pessoas que, apresentando sinais claros de que Deus as chamava, tinham medo ou lhes faltava generosidade. Uma vez mais, em Buenos Aires, em 1974, falaram-lhe de um caso desses. Alguém lhe referiu que um dos seus amigos, só parecia faltar-lhe um empurrão pequeno, pequeno...

Não serei eu a dar-lho... Porque a vocação para o Opus Dei é divina. E porque, meu filho, eu... resisti o que pude. Mea culpa, mea culpa. Eu resisti. Eu distingo dois chamamentos de Deus: uma ao princípio sem saber para quê, e eu resistia. Depois..., depois já não resisti, quando soube para que era.

Deus foi-o preparando de uma maneira progressiva, contrariando, inclusive, a sua inclinação pessoal e os seus próprios planos:

Recordo que quando fazia o Liceu, estudávamos Latim no colégio. A mim não me agradava; de uma maneira néscia, eu não gostava – estou agora muito arrependido disso! − dizia: o Latim, para os padres e os frades... Vedes que estava bem longe de ser sacerdote?

No dia 1 de Julho de 1974, em Santiago do Chile, o Fundador do Opus Dei animava um grupo numeroso de pessoas a lutar por Jesus Cristo e levar para Deus muitas almas. E para que soubessem vencer possíveis cobardias, ou falsos respeitos pela liberdade alheia, concluía: A mim, Jesus Cristo não me pediu licença para se meter na minha vida. Se naquele tempos, me dissessem que ia ser padre... e aqui estou!

Muitas vezes repetiu esta ideia: Nunca pensei em dedicar-me a Deus. Não me tinha passado pela cabeça o problema, porque pensava que isso não era para mim. Mas o Senhor ia preparando as coisas, ia-me dando uma graça atrás de outra, passando por alto os meus defeitos, os meus erros de criança e os meus erros de adolescente...

Num dia de grande nevão, em pleno inverno de Logroño, Josemaria – ainda adolescente − viu as marcas dos pés descalço de um Carmelita sobre a neve. Estas marcas agitaram o seu coração, que se incendiou em desejos de um amor grande. Ante o sacrifício, por amor a Deus, daquele frade, Josemaria perguntava a si mesmo, sobre o que fazia ele, pelo seu Deus.

Josemaria sentiu esses pressentimentos do Amor quando tinha quinze ou dezasseis anos. Ao mesmo tempo, dava-se perfeitamente conta de que o Senhor queria algo dele, mas não sabia o que era. Naqueles dias de Inverno, nos primeiros meses de 1918, foi falar em várias ocasiões com o P. José Miguel, um dos frades que viviam ao lado do Convento das Carmelitas descalças, e atendiam a sua igreja.

Depois, Josemaria pensou ser sacerdote. Por que me fiz sacerdote?, perguntar-se-ia anos mais tarde: Porque entendi que assim seria mais fácil cumprir uma vontade de Deus, que não conhecia. Já desde uns oito anos antes da minha ordenação, que a pressentia, mas não sabia o que era, e só o soube em 1928. Por isso, me fiz sacerdote.

Foi constante, desde então, a sua oração por aquilo que ainda ignorava. Com o decorrer dos anos, emergiria da sua alma um clamor feito de jaculatórias: Domine, ut sit! Domina ut sit! (Senhor, que seja! Senhora, que seja!). E exclamaria, como cantando, aquelas palavras do Senhor: Ignem veni mittere in terram, et quid volo nisi ut accendatur? (“Vim trazer fogo à terra, e que quero eu senão que se acenda?”). A resposta impunha-se, inequívoca: Ecce ego, quia vocasti me! (“Aqui estou, porque me chamaste”).

Josemaria falou com o seu pai. D. José Escrivá ouviu, surpreendido, as suas confidências. Como sempre tinha aceitado docilmente a Vontade de Deus, respeitou e amou o caminho que o Senhor traçava para o seu filho. Deve ter-lhe custado muito, porque ele tinha outra ideia, mas apoiou a decisão. A ele lhe devo a vocação, sempre diria o Fundador do Opus Dei.

A baronesa de Valdeolivos relata um episódio que sucedeu no Verão de 1919. Dom José Escrivá foi a Fonz para passar uns dias com os seus irmãos e mostrou-lhes as fotografias dos seus filhos: de Santiago que acabava de nascer –“este é o benjamim” – e de Carmen e de Josemaria. Notava-se que estava muito orgulhoso deles. E mostrando uma foto de Josemaria, referiu pensativo: Este disse-me que quer ser sacerdote, mas ao mesmo tempo vai estudar para advogado. Vai-nos custar um pouco de sacrifício.

Por seu lado, o próprio Fundador do Opus Dei contaria:

Um bom dia disse ao meu pai que queria ser sacerdote: foi a única vez que o vi chorar. Ele tinha outros planos possíveis. Mas não se revoltou e disse-me: − Meu filho pensa-o bem; os sacerdotes têm que ser santos... É muito duro não ter casa, não ter lar, não ter um amor na terra. Pensa-o um pouco mais, mas eu não me oporei. E levou-me a falar com um sacerdote seu amigo, o abade da colegiada de Logroño.

A colegiada de Logroño – chamada vulgarmente “La Redonda”− é hoje a concatedral da diocese de Calahorra, Logroño e La Calzada. Naquela época, o abade era o P. Antolín Oñate – mais tarde, em 1943, foi nomeado chantre de Calahorra − uma verdadeira instituição em Logroño.

Também orientou Josemaria, a pedido de seu pai, o P. Albino Pajares, sacerdote castrense que esteve em Logroño desde Fevereiro de 1917 até Maio de 1920.

O P. Antolín e o P. Albino animaram-no a seguir a sua vocação e ajudaram-no, como professores, a completar os anos de Filosofia e aprofundar no Latim, e a fazer, como aluno externo no Seminário de Logroño, o primeiro ano de Teologia. O Fundador do Opus Dei esteve sempre muito agradecido a estes dois sacerdotes.

Contudo, sabemos que não lhe interessava fazer carreira eclesiástica; não o atraía ser “cura”, no sentido habitual, que nessa altura, o termo tinha para o grande público: aquilo não era o que Deus me pedia, e eu dava-me conta. Não queria ser sacerdote para ser sacerdote, o cura, como dizem em Espanha. Eu tinha veneração pelo sacerdote, mas não queria para mim um sacerdócio assim.