O tempo de uma presença (9): «Chamar-me-ão bem-aventurada», Santa Maria, no ano litúrgico

Santa Maria, Mãe de Deus: o ano começa com a festa que indica o lugar especial de Nossa Senhora no mistério cristão. Ao longo do ano, a Igreja recorda aos seus filhos a presença maternal e discreta de Maria. Junto a S. José, Ela peregrina connosco através da história.

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Na celebração anual dos mistérios de Cristo, «a Santa Igreja venera com especial amor a Santíssima Mãe de Deus, a Virgem Maria, unida por laço indissolúvel à obra salvífica de seu Filho; n’Ela, a Igreja admira e exalta o fruto mais excelente da Redenção e contempla-a gozosamente, como uma imagem puríssima do que ela mesma, totalmente, anseia e espera ser»[1].

Em breves traços, mas incisivos, o Concílio Vaticano II apresenta o significado do culto litúrgico a Santa Maria. Pode ajudar-nos a compreendê-lo uma via simples e profunda: a melhor arte cristã que surge da oração da Igreja. Se olharmos, por exemplo, um templo de tradição bizantina, reparamos, logo que entramos na nave, para os olhos de Cristo Pantocrator que normalmente domina a abóbada da ábside. O seu rosto amável lembra-nos como o Deus infinito assumiu os traços finitos dos filhos dos homens. Debaixo d´Ele, adornada com as cores imperiais, encontra-se Maria, a Toda Santa, ladeada por arcanjos com ricas vestes litúrgicas. Num terceiro nível, por fim, estão os apóstolos e os santos que connosco – communicantes –, oferecem o sacrificium laudis, o sacrifício de louvor agradável a Deus Pai[2].

«Para mim, a primeira devoção mariana – agrada-me ver assim – é a Santa Missa (...). Nesse mistério insondável, adverte-se, como que entre véus, o rosto puríssimo de Maria» (S. Josemaria)

A primeira devoção mariana

Esta imagem ajuda a compreender a posição singular de Maria na vida e na liturgia da Igreja. Como S. Josemaria gostava de considerar, Ela é, acima de tudo, a Mãe de Deus, a Theotokos: aqui se encontra «a raíz de todas as perfeições e privilégios que a adornam»[3]. Por isso, uma das orações marianas mais antigas a chama audazmente Dei Genetrix, aquela que gerou Deus[4]; e também por isso o culto litúrgico a Maria se desenvolverá sobretudo a partir do Concílio de Éfeso (século V), quando a Igreja define o dogma da Maternidade divina.

Noutras representações, Santa Maria aparece segurando o véu do cálice eucarístico, ou numa posição corporal de “Virgem orante e oferente”. Assim se expressa que a participação no mistério Pascal do Senhor é o centro e a raíz da sua vida. Esse modo único, em que Maria se une como Mãe à ação redentora de Jesus é o fundamento do culto mariano: a Igreja venera a Virgem reconhecendo o lugar que só a Ela corresponde. Por isso, já nas mais antigas profissões de fé batismais e nas primeiras orações eucarísticas se encontram alusões à Mãe de Deus. Esta presença especial de Maria explica, também, que o modo mais natural de honrá-la seja celebrar o mistério do seu Filho, especialmente na Eucaristia.

«Para mim, a primeira devoção mariana – agrada-me ver assim - é a Santa Missa (...). No Sacrifício do Altar, a participação da Nossa Senhora evoca o silencioso recato com que acompanhou a vida de seu Filho, quando andava pelas terras da Palestina. A Santa Missa é uma ação da Trindade: por vontade do Pai, cooperando o Espírito Santo, o Filho oferece-Se em oblação redentora. Nesse mistério insondável, adverte-se, como que entre véus, o rosto puríssimo de Maria»[5]. Celebrando o mistério de Cristo, a Igreja encontra Maria e, contemplando-a, descobre o modo de viver os divinos mistérios. Com Ela escutamos e meditamos a Palavra de Deus, e nos associamos à sua voz que abençoa, dá graças e louva o Senhor; com Ela nos sentimos associados à Paixão do seu Filho, e à alegria da sua Ressurreição; com Ela imploramos incessantemente o dom do Espírito Santo[6].

As origens do culto a Santa Maria

A última reforma da liturgia romana quis ressaltar a centralidade do mistério de Cristo, e por isso integrou a memória da Mãe de Deus no ciclo anual dos mistérios do seu Filho. Além de duas celebrações em que Maria está inseparavelmente unida a Cristo – a Anunciação (25 de Março) e a Apresentação do Senhor (2 de fevereiro) – as festas marianas do atual Calendário romano geral incluem três solenidades[7], duas festas[8], cinco memórias obrigatórias[9] e seis memórias livres[10]. Por outro lado, alguns tempos litúrgicos como o Advento e o Natal incorporaram mais referências marianas. Por último, a possibilidade de celebrar a memória livre de Santa Maria aos sábados, juntamente com alguns elementos da Liturgia das Horas, constituem a base semanal e diária do culto litúrgico mariano. Conhecer alguns pormenores sobre a origem e o desenvolvimento deste culto pode ajudar-nos a ser melhores filhos da nossa Mãe do Céu.

A Igreja, como Maria, não tem um coração desenraizado, mas faz memória da sua própria origem, recordando paisagens e rostos concretos

O rito romano celebra na oitava de Natal, no primeiro dia do ano, a solenidade da Maternidade divina de Maria. Esta foi a grande comemoração Mariana antes da chegada, nos finais do século VII, de quatro festas de origem oriental: a Apresentação do Senhor, a Anunciação, a Dormição (que agora se celebra como a Assunção) e o Nascimento de Maria.

O acolhimento dos cristãos provenientes da Palestina, Síria e a Ásia Menor, em consequência das invasões árabes do século VII enriqueceu a liturgia romana com a assimilação de várias tradições litúrgicas. Entre elas estão quatro festas, ligadas à memória de alguns eventos da vida de Nossa Senhora, nos lugares onde, segundo a tradição, se sucederam. A construção de templos naqueles lugares levou, ao longo dos séculos IV-VI, a um primeiro desenvolvimento do culto litúrgico mariano. Alguns exemplos são a basílica no Vale do Cédron, ligada ao dies natalis de Maria, que no século VI passará a chamar-se Festa da Dormição; a basílica de Nazaré, mandada construir pela imperatriz Helena em memória da Anunciação; a basílica construída sobre a piscina Bezatha, que ficará ligada à memória da conceção e do nascimento de Nossa Senhora; ou a basílica de Santa Maria a Nova, construída no início do século VI, perto do antigo Templo de Jerusalém, para recordar a apresentação de Maria.

Todas estas festas nos introduzem na memória histórica da grande família do Povo de Deus, que sabe que «a história não está sujeita a forças cegas nem é o resultado do acaso, mas é a manifestação da misericórdia de Deus Pai»[11]. A Igreja, como Maria, não tem um coração desenraizado, mas faz memória da sua própria origem, recordando paisagens e rostos concretos. A progressiva receção destas comemorações da Virgem noutras regiões do mundo, é um reconhecimento desta lógica de Deus.

Da periferia para Roma e de Roma para a periferia

Simultaneamente, uma vez que a Igreja é uma Mãe que acolhe no seu seio todas as culturas, a veneração de Maria será desenvolvida de acordo com a particular sensibilidade teológica e espiritual de cada povo. Assim, por exemplo, a tradição bizantino-constantinopolitana conheceu uma primeira fase bastante sóbria do culto mariano, mas com o tempo produziu ricas composições poéticas em honra da Theotokos. O hino Akathistos é uma das mais amadas e difundidas: «Salvé, por Ti resplandece o júbilo; Salvé, por Ti se eclipsa a pena. Salvé, que levantas Adão, o caído; Salvé, que resgatas o pranto de Eva». Também, a tradição etíope manifestará a sua profunda piedade mariana nas orações eucarísticas e na instituição do maior número de festas marianas incluídas numa tradição litúrgica, mais de trinta ao longo do ano.

Salvé, por Ti resplandece o júbilo; Salvé, por Ti se eclipsa a pena. Salvé, que levantas Adão, o caído; Salvé, que resgatas o pranto de Eva (Hino Akathistos)

O rito romano tem também a sua própria história. No final do século VII, o Papa Sérgio I enriquece aquelas quatro festas recém-chegadas do Oriente com um elemento que distinguirá a devoção popular romana: as procissões das ladainhas pela cidade. Mais tarde, compor-se-ão os textos da Missa e do Ofício de Sancta Maria in Sabbato; espalhar-se-á pela Europa o costume de dedicar o sábado a Nossa Senhora, e aparecerão novas antífonas para a Liturgia das Horas. Algumas delas são hoje a última oração que, antes de dormir, sai confiante dos lábios da igreja: Alma Redemptoris Mater, Salve Regina, Ave Regina Coelorum, Regina Coeli Laetare, compostas nos séculos XI-XIII. Mais tarde, também se instituirão festas marianas como a Visitação, promovidas inicialmente pelos franciscanos e estendida depois a toda a igreja latina no século XIV.

Depois do Concílio de Trento estendem-se a todo o rito romano outras festas celebradas até então somente em algumas regiões. Por exemplo, S. Pio V estendeu a toda a igreja latina a festa romana da Dedicação de Nossa Senhora das Neves (5 de agosto). Nos séculos XVII e XVIII, várias comemorações ligadas à piedade mariana de algumas ordens religiosas passarão, de várias maneiras, ao calendário geral: Nossa Senhora do Carmo (carmelitas), Nossa Senhora do Rosário (dominicanos), Nossa Senhora das Dores (servos de Maria), Nossa Senhora das Mercês (mercedários), etc.

Estes movimentos que vão da periferia a Roma, e de Roma à periferia[12] refletem a sabedoria maternal da Igreja, que promove tudo o que gera unidade, e ao mesmo tempo se adapta para tratar os seus filhos de «modo diferente - com uma justiça desigual - visto que cada um é diferente dos outros»[13]. Este respeito pelas tradições locais permanece no calendário atual, que reconhece a existência de festas marianas particulares, ligadas à história e devoção dos diversos membros do Povo de Deus. Isso explica a presença no calendário da Prelatura do Opus Dei, da festa de Nossa Senhora do Amor Formoso, que se celebra a 14 de fevereiro.

Um momento particularmente grandioso do culto litúrgico mariano foi o passado século XX, que conheceu quatro novas festas marianas: Nossa Senhora de Lurdes (Pio X, em 1907), a Maternidade de Nossa Senhora (Pio XI, em 1931), o Imaculado Coração de Maria (Pio XII, em 1944), e Santa Maria Rainha (Pio XII, em 1954). Além da memória do Santíssimo Nome de Maria (12 de setembro), a última edição do Missal Romano incorporou as memórias livres de Nossa Senhora de Fátima (13 de maio) e Nossa Senhora de Guadalupe (12 de dezembro). A extensão a todo o rito latino das celebrações ligadas a intervenções particulares da Virgem expressa a vigilância amorosa da Igreja, que recorda aos seus filhos a presença discreta mas firme de Maria. Junto com São José, Ela peregrina connosco através da história.

Muitos pórticos de igrejas medievais mostram a Mãe de Deus que acolhe e despede os peregrinos com o seu olhar e o seu sorriso

Com a bênção da Mãe

Muitos pórticos de igrejas medievais têm uma imagem característica do Ocidente: a Mãe de Deus tem nos seus braços o Menino, e com o seu olhar e o seu sorriso acolhe e despede os peregrinos. Esta imagem, situada no espaço público que se abre para a cidade, fala-nos do estilo acolhedor e missionário de Maria que dá forma à vida da Igreja através da liturgia.

A sua presença recorda-nos que Ela nos espera quando vamos a uma igreja ou oratório, para nos ajudar a falar com o seu Filho. Saber dessa espera de Maria leva-nos a recolher-nos, a preparar-nos bem para as diferentes ações litúrgicas: uma delicadeza de filhos que se concretiza em pormenores, como chegar com antecedência, sem pressa, e dispor o que for necessário (adorno do altar, velas, livros) com a atenção e carinho da nossa Mãe, «mulher eucarística»[14], ao preparar-se para a «fração do pão» da primitiva Igreja[15].

A alegria da toda Formosa está em «reproduzir nos filhos as características espirituais do Filho primogénito»[16]. Na escola de Santa Maria «a Igreja aprende a tornar-se cada dia “serva do Senhor”, a estar pronta para partir ao encontro das situações de maior necessidade, a prestar atenção aos mais pequeninos, aos excluídos»[17]. Por isso, depois de nos convidar a entrar para sermos transformados por Ele, a nossa Mãe volta a saudar-nos e, desde o pórtico, envia-nos para a «formosíssima guerra de paz»[18], lado a lado com os nossos irmãos, os homens.

Juan Rego


[1] Concílio Vaticano II, Sacrosanctum Concilium, n. 103.

[2] cf. Missal Romano, Cânone Romano.

[3] S. Josemaria, Amigos de Deus, n. 275.

[4] cf. Liturgia das horas, Ad completorium, Antífona Sub tuum praesidium.

[5] S. Josemaria, “La Virgen María”, em Por las sendas de la fe, Madrid, Cristiandad 2013, 170-171.

[6] cf. Collectio Missarum de Beata Vergine Maria, n. 13.17.

[7] São as seguintes: 1 de janeiro: Mãe de Deus; 15 de agosto: Assunção; 8 de dezembro: Imaculada Conceição.

[8] 31 de maio: Visitação; 8 de setembro: Natividade.

[9] Sábado, após a solenidade do Sagrado Coração de Jesus, Imaculado Coração de Maria; 22 de agosto: Santa Maria Rainha; 15 de setembro: Nossa Senhora das Dores; 7 de Outubro: Nossa Senhora do Rosário; 21 de Novembro: Apresentação de Maria no Templo.

[10] 11 de fevereiro: Nossa Senhora de Lurdes; 13 de maio: Nossa Senhora de Fátima; 16 de julho: Nossa Senhora do Monte Carmelo; 5 de agosto: Dedicação da Basílica de Santa Maria Maior; 12 de setembro: Santo Nome de Maria; 12 de dezembro: Nossa Senhora de Guadalupe.

[11] S. Josemaria, “As riquezas da fé” em Por las sendas de la fe, Madrid, 31.

[12] cf. S. Josemaria, Forja, n. 638.

[13] S. Josemaria, Amigos de Deus, n. 173.

[14] S. João Paulo II, Ecclesia de Eucharistia, n. 53-58.

[15] cf. At 2, 42.

[16] S. Paulo VI, Marialis cultus, n. 57.

[17] Francisco, Homilia, 05/07/2014.

[18] S. Josemaria, Cristo que passa, n. 76.

Juan Rego