Ser “Padre”: a missão do fundador do Opus Dei e dos seus sucessores

Tal como S. Josemaria foi, o Prelado do Opus Dei deve sempre ser um bom pai, para tornar presente a amável paternidade de Deus e ajudar os fiéis a encarnar o espírito do Opus Dei no mundo de hoje.

Já nos tempos apostólicos, S. Paulo chamava Timóteo de «verdadeiro filho na fé» (1 Tm 1, 2), e afirmava que Timóteo o acompanhava «tal como um filho ao pai» (Fl 2, 22). Então, como entender as palavras que Jesus Cristo pronunciou anos antes: «E na terra, a ninguém chameis ‘Pai’» (Mt 23, 9)?

Lembremo-nos de outra afirmação do Senhor: «Ninguém é bom senão só Deus» (Lc 18, 19). Só Deus é bom por essência; só Ele é a Bondade. Mas ao mesmo tempo, o seu Amor leva-O a fazer com que as criaturas participem da sua bondade; por isso todas as coisas são boas (cf. Gn 1, 31). De modo análogo, o Senhor disse que «um só é vosso Pai, aquele que está nos céus» (Mt 23, 9). Só Deus realiza a paternidade em sentido pleno, perfeito. Mas também quis que alguns dos seus filhos participem da paternidade divina, em diversos graus e sentidos. S. Paulo chama Abraão de «pai de todos nós» (Rm 4, 17; Gn 17, 5), porque procedemos da sua fé que é modelo da fé cristã[1]. A Igreja católica menciona-o como “nosso pai” no Cânon Romano[2]. É nesse sentido que chamamos ao fundador do Opus Dei e aos seus sucessores “Padre”, assim como os bispos e os sacerdotes também são pais no Senhor[3].

1. Só Deus é Pai: alguns homens participam dessa paternidade

«Essa paternidade está presente no Filho Unigénito feito homem, pela unidade das Pessoas divinas na sua distinção relacional: «Aquele que me viu, viu também o Pai» (Jo 14, 9), diz o Senhor. Além disso, Deus também quis refletir a sua paternidade nos seus filhos, de diversos modos (cf. Ef 3, 14-15). Há uma geração humana natural, com a correspondente paternidade, e há também uma geração sobrenatural, que dá lugar a uma paternidade espiritual (cf. Jo 1, 13). Desta última, os Apóstolos sentiam-se depositários quando o Senhor os enviou, como Ele tinha sido enviado pelo Pai (cf. Jo 20, 21) para comunicar a vida sobrenatural, ensinando o Evangelho e batizando (cf. Mt 28, 19). S. Paulo devia ter sentido profundamente essa paternidade quando escreveu: «Ainda que tivésseis dez mil mestres em Cristo, não tendes muitos pais: ora, fui eu que vos gerei em Cristo Jesus pelo Evangelho» (1Cor 4, 15). «Filhinhos meus, por quem de novo sinto dores de parto, até que Cristo seja formado em vós” (Gl 4, 19)»[4].

«Depois dos Apóstolos, essa paternidade sobrenatural corresponde na Igreja aos Bispos e em primeiro lugar a quem os preside, o Sucessor de Pedro, Pastor Universal. Ele é chamado ‘Santo Padre’, por ser o primeiro depositário de uma verdadeira paternidade santa, sobrenatural. E é o Pai comum de todos, como ensina o Concílio Vaticano I: “o Romano Pontífice é sucessor do bem-aventurado Pedro, príncipe dos Apóstolos, e verdadeiro vigário de Jesus Cristo, e líder de toda a Igreja, e pai e mestre de todos os cristãos”[5]. S. Josemaria chama-o algumas vezes: Pai comum[6] dos cristãos»[7].

S. João Paulo II, na sua exortação apostólica sobre o Bispo servidor do Evangelho de Jesus Cristo para a esperança do mundo, escreve: «É muito antiga a tradição que apresenta o Bispo como imagem do Pai, o qual, escreveu Sto. Inácio de Antioquia, é como o Bispo invisível, o Bispo de todos. Portanto, cada Bispo ocupa o lugar do Pai de Jesus Cristo, de tal modo que, precisamente por esta representação, deve ser respeitado por todos[8]. Por causa desta estrutura simbólica, a cátedra episcopal, que especialmente na tradição da Igreja do Oriente recorda a autoridade paterna de Deus, só pode ser ocupada pelo Bispo. Da mesma estrutura deriva, para cada Bispo, o dever de cuidar, com amor paternal, do povo santo de Deus e guiá-lo, junto com os presbíteros, colaboradores do Bispo no seu ministério, e com os diáconos, pelo caminho da salvação[9]. E vice-versa os fiéis, como adverte um texto antigo, devem amar os Bispos que são, depois de Deus, pais e mães[10]. Por isso, segundo um costume existente nalgumas culturas, beija-se a mão do Bispo como a do pai amoroso, dispensador de vida»[11].

«Há uma paternidade espiritual própria dos outros pastores da Igreja, não só do Papa e dos Bispos[12], e de todo o cristão que, mediante o exercício do sacerdócio comum, pode-se dizer que gera Cristo nos outros quando coopera com o Espírito Santo na transmissão da vida sobrenatural»[13]. Neste enquadramento teológico-espiritual geral se delineia a paternidade de S. Josemaria, que legou um espírito aos que se incorporam ao Opus Dei, seguindo uma bela dinâmica da vida da Igreja. Enquanto sucessor de S. Josemaria, o Prelado do Opus Dei é o pai comum que reflete a paternidade de Deus. O amor à Obra é parte do amor à Igreja, mãe dos cristãos, que prolonga a presença de Jesus Cristo no mundo até à sua última vinda. E esse amor inclui uma caridade autêntica para com a pessoa do Fundador do Opus Dei e dos seus sucessores. Enquanto é Prelado do Opus Dei, cada um deles é o Padre, seja quem for. Assim, depois do primeiro sucessor de S. Josemaria, o Bto. Álvaro del Portillo, o Padre dessa pequena família dentro da grande família da Igreja[14] foi D. Javier Echevarría, nomeado por João Paulo II (papa de 1978 a 2005) em 1994, no mesmo ano em que faleceu o Bem-aventurado Álvaro[15]*.

2. Uma devoção profunda e filial a S. Josemaria

S. Paulo fala do «nosso pai Abraão» (Rm 4, 12) e dos «que possuem a fé de Abraão» (Rm 4, 17; cf. St 2, 21), sabendo que só de Deus se afirma propriamente: «Deus, nosso Pai» (1Ts 1,3). S. Josemaria, com a sua Missa, a sua oração, a sua penitência e o seu exemplo, contribuiu para que a graça de Deus fizesse germinar e crescer na alma de muitos a chamada universal à santidade, a partir da «fé que opera pela caridade» (Gl 5, 6). «Graças a este sentido da fé, que tem a sua origem e o seu alimento no Espírito de verdade, o povo de Deus, sob a orientação do sagrado magistério... adere indefetivelmente à fé, transmitida aos santos de uma vez para sempre , penetra-a mais profunda e convenientemente, e transpõe-na para a vida com maior intensidade»[16].

Com autêntica humildade, S. Josemaria não duvidava em afirmar: «De poucas coisas posso dar-me como exemplo. E, não obstante, no meio dos meus erros pessoais, penso que posso pôr-me como exemplo de homem que sabe amar. As vossas preocupações, as vossas penas, os vossos desvelos, são para mim uma contínua chamada. Quereria, com este meu coração de pai e de mãe, levar tudo sobre os meus ombros»[17]. Era um homem que sabia amar e esses sentimentos eram retribuídos facilmente pelas pessoas com quem convivia.

O AFETO PELO PADRE CONTRIBUIu PARA A ALEGRIA DE SE SABER MEMBRO DE UMA FAMÍLIA EM QUE O AMOR SE MANIFESTA ATRAVÉS DO CARINHO

De um modo natural, esse afeto espontâneo pelo Padre contribuiu para a alegria de se saber membro de uma família em que o amor sobrenatural e humano se manifesta através do carinho, e foi também assim depois de 1975 com os seus sucessores. Depois do seu falecimento, começou-se a mencioná-lo como “nosso Padre”, para distingui-lo dos seus sucessores nas conversas habituais, pois também são chamados “Padre”. Esse modo de designar fundadores, por exemplo, é habitual na Igreja.

É normal que, como manifestação de agradecimento e necessidade da alma, os fiéis do Opus Dei recorram à intercessão de S. Josemaria diante de Deus. «Os bem-aventurados, estando mais intimamente unidos com Cristo, consolidam mais firmemente a Igreja na santidade (...) não cessam de interceder, por Ele, com Ele e n'Ele, a nosso favor diante do Pai, apresentando os méritos que na terra alcançaram, graças ao mediador único entre Deus e os homens, Jesus Cristo (cf. 1Tm 2, 5), (...). A nossa fraqueza é assim grandemente ajudada pela sua solicitude fraterna»[18].

E assim se reforça a comunhão dos santos. «Porém, não é só por causa do seu exemplo que veneramos a memória dos bem-aventurados, mas ainda mais para que a união de toda a Igreja aumente com o exercício da caridade fraterna (cf. Ef 4, 1-6). Pois, assim como a comunhão cristã entre os que peregrinamos nos aproxima mais de Cristo, assim a comunhão com os santos nos une a Cristo, de quem procedem, como de fonte e cabeça, toda a graça e a própria vida do Povo de Deus»[19]. Com efeito, sabemos que, tal como dizemos a Deus Pai num Prefácio da Missa, “eórum coronándo mérita tua dona corónas[20]: “ao coroar os seus méritos, coroas os teus próprios dons”».

3. O Padre no Opus Dei

Como bom pastor em Cristo[21], o Padre encarna na Obra a paternidade amorosa de Deus. Nessa particular Comunhão dos Santos que vivemos, paternidade e filiação são duas faces da mesma moeda: a união com Deus que, ao mesmo tempo, une os fiéis entre si[22]. O Padre é, na Prelatura do Opus Dei, princípio e fundamento visível de unidade, de maneira análoga a como o são os bispos para a porção do Povo de Deus que governam[23]. É para os fiéis «mestre, santificador e pastor, encarregado de atuar em nome e na pessoa de Cristo»[24], o que Sto. Agostinho não duvidava em chamar uma missão, um serviço, um dever de amor: “amoris officium”[25]. Na verdade, ninguém se pode considerar um pastor digno deste nome se a caridade não o torna um com Cristo[26].

COMO BOM PASTOR EM CRISTO, O PADRE ENCARNA NA OBRA
A PATERNIDADE AMOROSA DE DEUS

Ninguém é pai sem ter um filho, e é por isso que S. Jerónimo afirma que chamar a alguém pai, é sempre mencionar um filho, referir-se a um filho: «Omnis enim pater filii nomen est»[27]. Como filhos, os fiéis do Opus Dei são parte da vida do Padre. Mais, são parte do seu próprio ser e da sua missão como cabeça desse corpo que é a Obra. S. Tomás de Aquino, ao considerar o amor paterno, disse que os progenitores veem nos filhos uma parte de si mesmos: «ut aliquid sui existentes»[28]. Assim, o Padre sente a chamada para exercer essa paternidade que S. Josemaria tinha assumido «com a plena consciência de estar sobre a terra só para realizá-la»[29]. O fundador do Opus Dei interiorizava-a, e entendia-a como um convite exigente para a sua santidade. Em 1933, ao pedir autorização para aumentar as suas penitências, exortava o seu confessor com estas palavras: «Olhe que Deus mo pede e, além disso, é mister que eu seja santo e pai, mestre e guia de santos»[30]. E não hesitava em escrever aos seus filhos: «Estou pendente de vós»[31]. Como se estivesse fazendo eco a essas palavras, o segundo sucessor de S. Josemaria abria muitas vezes a sua alma com esses mesmos sentimentos: “preciso de vocês”, dizia por exemplo em algumas ocasiões.

O Padre manifesta a ternura de Deus

Na época atual, não falta literatura sobre o que implica ser um bom pai: arcar com o peso de uma família, educar em liberdade, fazer com que os filhos cresçam. Algo de semelhante se pode dizer da missão sobrenatural do Padre: tem de guiar a sua grei com mão firme e profunda compreensão, também corrigindo –quando necessário– para o bem das almas (cf. At 12, 7-11). Ao mesmo tempo, o Padre gosta de compartilhar com os seus filhos os bons momentos da vida, como por exemplo uma tertúlia, em que se contam com naturalidade as maravilhas de Deus no apostolado, as notícias da expansão do trabalho com as almas, ou inclusive algum acontecimento divertido que ajude a não se levar muito a sério. Nesses momentos sente o dever de encarnar essa “ternura paterna” na qual insiste tanto o Papa Francisco ao falar de Deus[32].

ESTAREM UNIDOS AO PADRE AJUDA OS FIÉIS DO OPUS DEI A UNIR-SE MAIS AO PAPA E A TODA A IGREJA

A chamada para o Opus Dei, como toda a vocação recebida do Senhor, é como uma pérola preciosa (cf. Mt 13, 46). A pérola nasce de um grãozinho de areia e quando cresce brilha com luz e cor. Assim como um diamante provém do carvão, a miséria do homem, ao unir-se ao dom de Deus, faz com que se sinta amado e compreendido. Meditar na riqueza do espírito cristão, do espírito do Evangelho tal como o recebeu e transmitiu S. Josemaria, faz com que o coração arda como o dos discípulos de Emaús, de modo que a vida se enche de um sentido de missão. Estarem unidos ao Padre ajuda os fiéis do Opus Dei a unir-se mais ao Papa e a toda a Igreja. O Padre recorda-lhes constantemente o Magistério dos Sucessores de Pedro, e convida-os a alargar o horizonte, a não desfalecer no serviço à Igreja universal.

Filhos maiores de idade

Com o passar do tempo as virtudes aperfeiçoam-se sob o impulso da graça, através do exercício repetido de atos virtuosos; ao mesmo tempo, convém não protelar para um futuro indefinido a maturidade da entrega cristã e aspirar a ser em todos os momentos maiores de idade. Nesse sentido, o Opus Dei é para pessoas “adultas”, nem piores nem melhores que as outras, que aprendem a comportar-se como crianças diante de Deus[33].

Conquistamos a maturidade através dos êxitos e fracassos assumidos e colocados no seu lugar, e não é só nem principalmente questão de anos, mas de entrega real, de luta para se ser santo: «super senes intellexi, quia mandata tua servavi» (Sl 119 [118], 100): sou mais sensato do que os anciãos, porque observo os vossos preceitos. Estas palavras também se aplicam a todos os que procuram viver a sua entrega com profunda humildade. É neste sentido que o fundador do Opus Dei entendia a vocação de Pedro: depois da pesca milagrosa, ele exclama: «Retira-te de mim, Senhor, porque sou um homem pecador» (Lc 5, 8); e S. Josemaria comenta: «essa escolha, raiz da chamada, deve ser a base da tua humildade»[34]. Encontramos esta convicção no coração do Bto. Álvaro del Portillo, que pôde ser saxum, autêntica “rocha” para S. Josemaria, porque a sua fidelidade se apoiava na humildade. Assim respondia este filho exemplar a uma carta do fundador: «Espero que, apesar de tudo, possa ter confiança naquele que, em vez de rocha é barro sem qualquer consistência. Mas o Senhor é tão bom!»[35].

O PADRE CONTA MUITO COM A ORAÇÃO DOS MEMBROS DO OPUS DEI. E NECESSITA DA COMPREENSÃO E DO CARINHO DOS SEUS FILHOS

«Dirijo-me a Ele com gemidos de contrição, pedindo-lhe misericórdia: “miserere mei, Deus secundum magnam misericordiam tuam” (Sl 51 [50], 2)»[36], contava S. Josemaria citando o Salmo Miserere. Na vida do Padre, a humildade de quem recorre a Deus para ser fortaleza para os outros concretiza-se, entre outros modos, em rezar esse Salmo, onde diz ao Senhor: «Amais a sinceridade de coração; infundi-me, pois, a sabedoria no mais íntimo de mim» (Sl 51 [50], 8): no fundo do ser, no mais profundo do coração, Deus ajuda o Padre. Ao mesmo tempo, o Padre conta muito com a oração dos membros do Opus Dei. E necessita da sua compreensão e do seu carinho de filhos, que se manifestam, por exemplo nas cartas que lhe escrevem. «Estou pendente de vós... sede-me fiéis»[37] escrevia de Burgos S. Josemaria aos seus filhos, convidando-os a rezarem pelo Padre nas Preces Operis Dei, recorrendo à misericórdia divina: «“Misericordia Domini ab aeterno et in aeternum super eum: custodit enim Dominus omnes diligentes se”, a misericórdia do Senhor sobre ele, sempre: porque o Senhor guarda os que o amam»[38]. Essa oração é acompanhada por uma pequena mortificação diária pelo Padre.

O espírito de filiação é o fundamento da unidade e da caridade fraterna, tanto na Obra como na Igreja. O melhor presente que se pode dar aos pais é o respeito, o carinho e o agradecimento das suas filhas e filhos, juntamente com um bom entendimento recíproco. «Nós, embora sejamos muitos, formamos um só corpo em Cristo, sendo todos membros uns dos outros» (Rm 12, 5). O Apóstolo exorta os romanos, «amai-vos mutuamente com afeição terna e fraternal. Adiantai-vos em amar uns aos outros» (Rm 12, 10). D. Javier Echevarría quando era prelado, não cessava de animar os fiéis do Opus Dei, como fazia S. João com os primeiros cristãos: «Caríssimos, se Deus assim nos amou, também nós nos devemos amar uns aos outros» (1Jo 4, 11).

Cartas de família

A paternidade e a filiação exercitam-se particularmente na troca de cartas. O dom da paternidade levou S. Josemaria a escrever com frequência aos seus filhos e filhas espirituais. O Bto. Álvaro del Portillo recorda que: «Dedicava muito tempo a escrever-nos cartas, tanto em intervalos da manhã como nas primeiras horas da tarde»[39]. O Padre segue esta tradição com cartas a pessoas concretas e também cartas pastorais que ajudam os membros do Opus Dei a corresponder ao seu chamamento à santidade e ao apostolado, a viver intensamente o ano litúrgico e também as festas que se celebram.

O costume de escrever cartas ao Padre surgiu espontaneamente desde o começo do Opus Dei[40]. O Bto. Álvaro del Portillo, recordando os seus quarenta anos de convivência com S. Josemaria, conta: «Como trabalhava constantemente ao lado do Padre, acompanhei-o na leitura de muitíssimas cartas de pessoas que lhe contavam os seus sofrimentos e se confiavam à sua oração; sou testemunha de como o Padre assumia esses problemas e da força com que os recomendava ao Senhor, quase sentindo-se responsável por "arrancar" essas graças das mãos de Deus. Lembro-me especialmente da impressão que me causava vê-lo em tantas ocasiões recolher-se por uns momentos, depois de ler uma carta, e assumir ato contínuo um ar de absoluta tranquilidade, que deixava transparecer a certeza de que o assunto estava resolvido»[41]. Por isso podia afirmar: «Estou certo de que o Padre não leu nenhuma carta sem rezar pela pessoa que a tinha escrito e pelo problema que lhe expunha»[42].

Nas cartas ao Padre contam-se coisas da vida, como costumam fazer os filhos com os seus pais, com espontaneidade, naturalidade e correção, sem palavras solenes.

ESCREVEMOS AS CARTAS AO PADRE COM ESPONTANEIDADE
E CARINHO

«Se soubessem o entusiasmo com que as espero! Leio-as todas com o mesmo carinho e todas me ajudam a fazer oração. Gostaria de responder a cada uma, mas não se pode, não é possível, não há tempo...»[43]. Certa vez, S. Josemaria confidenciou que na noite anterior tinha ficado até às duas da manhã, lendo essas cartas pessoais; e contava depois a alegria que sentiu «ao ler, junto com a de um catedrático da universidade, as linhas tortas com uma letra redonda e em desordem de um trabalhador do campo»[44]. E acrescentava: «este costume encanta-me. Quando em vez de chegarem sete quilos de cartas forem setecentos, já se porá uma ordem. Mas podem ter a certeza de que as cartas sempre serão lidas com afeto e entusiasmo de Padre»[45].

Essas cartas ao Prelado escrevem-se com carinho e são lidas com carinho. Estes textos alimentam a sua oração de petição, e também a sua ação de graças. «O costume de escrever cartas ao Padre é um costume santo, que me ajuda a ter muito em conta –e apresentar ao Senhor– todas as necessidades dos meus filhos. Agradeço de verdade estas cartas, que sempre me chegam»[46].

É natural escrever ao Padre por ocasião das festas e aniversários mais destacados da Igreja ou da Obra; ou pelo falecimento do pai ou da mãe, ou por uma preocupação de família, um passo significativo nos estudos, algum acontecimento profissional relevante, ou depois de uma viagem prolongada a outro país por motivos profissionais ou de ter passado por Roma. Também é habitual que, quando o Padre sai de Roma, escreva logo aos seus filhos e filhas desta cidade para lhes manifestar a sua proximidade, o seu carinho paterno e a sua oração.

Cada um, com as suas palavras, pode sustentar a Obra, ao manifestar o seu desejo de entrega. Além disso, contribui para deixar um testemunho apreciável da história das maravilhas de Deus, que se conserva com cuidado.

Com o otimismo dos filhos de Deus

Escrever ao Padre fortalece os desejos de docilidade ao Espírito Santo para servir à Igreja comunicando a chamada universal à santidade e à evangelização, particularmente no trabalho e na vida diária, e faz com que cresça a união filial. São cartas de família que falam do trabalho e do estudo, de preocupações diárias, do apostolado e da proposta vocacional, que abarca essa atração suscitada pelo testemunho da caridade cristã e pela beleza do espírito de santificação no meio do mundo; também se percebe que, quando se contam dificuldades de saúde, contradições profissionais ou familiares, problemas económicos, preocupações pela instabilidade social em algum país, se procura fazê-lo com o otimismo dos filhos de Deus. A única pena do Padre, como sucedia com S. Josemaria e dom Álvaro, é não poder responder a cada um. «Tenho pena –dizia S. Josemaria– de não poder responder pessoalmente a todos que me escrevem. Que os meus filhos tenham em conta, por um lado a impossibilidade material de lhes responder; e, por outro, que sempre que leio as suas cartas rezo por eles»[47]. Basta saber que essas cartas são um motivo de alegria para o Padre, e também ocasião para que tenha as pessoas mais presentes na sua oração, pois ama a todas no coração de Jesus Cristo (cf. Fl 1, 8)[48].

Mons. Álvaro del Portillo, descrevendo o dia a dia habitual do fundador do Opus Dei, conta: «Depois chegava a hora do correio. O Padre gostava de abrir os envelopes pessoalmente, embora depois os passasse a mim –e, nos últimos anos, também ao Pe. Javier–, para que o ajudasse a ler o conteúdo. Separava as cartas relacionadas com o governo, dirigidas ao Conselho Geral, das pessoais. Quanto a estas últimas, advertia-nos que, se víssemos que alguma era confidencial, devolvíamos-lha imediatamente sem a ler»[49]. S. Josemaria leu durante muitos anos todas as cartas das suas filhas e filhos. Ao aumentar o número e apesar de desejar continuar assim, era-lhe impossível fazê-lo. Mas para que nenhum dos que lhe escrevesse ficasse por atender, decidiu que alguns sacerdotes o ajudassem a ler as cartas, mas dedica boa parte do seu tempo diário à leitura dessas cartas. No Sacrifício do altar põe na patena, de modo especial, junto do pão eucarístico que virá a ser o Corpo do Senhor e do vinho, o seu Sangue, tudo o que lhe escrevem[50].

Dar-vos-ei pastores segundo o meu coração

O Prelado do Opus Dei conta com a oração e mortificação que os fiéis fazem por sua pessoa e intenções, confia neles para cumprir a sua missão de Pastor, que não é outra senão a de uni-los cada vez mais a Cristo e às muitas almas que se beneficiam do calor da Obra. «Dar-vos-ei pastores segundo o meu coração», tinha profetizado Jeremias: «Dabo vobis pastores iuxta cor meum» (Jr 3, 15). Deus anunciava esses bons pastores no contexto da Aliança, que encontrou o seu último e definitivo desenvolvimento na Aliança no Sangue de Cristo. Unidos à Missa do Prelado, bem dentro do Coração de Santa Maria, os fiéis formam «um só coração e uma só alma» (At 4, 32) para servir à Igreja, com uma caridade aberta a todo o mundo, um amor que impele essa Igreja em saída da qual fala tanto o Papa Francisco.

Certa vez, um jovem italiano, fiel do Opus Dei, perguntou ao Bto. Álvaro: «Que significa para o Padre e para nós, estarmos todos juntos no seu coração?». O Prelado da altura respondeu: «Para mim, é um apelo constante à obrigação que tenho de ser santo, para vos ajudar a ser santos. Na minha pequenez, tenho que procurar viver as palavras de Jesus: pro eis sanctifico meipsum [santifico-me por eles]. Eu entrego-me por vós, pela vossa santidade pessoal. E o carinho que vos tenho também deve impulsionar-vos. Amor com amor se paga, meus filhos! Não podeis corresponder ao carinho do Padre cravando espinhos no meu coração, mas sim portando-vos o melhor possível. Lutei para serdes fiéis, primeiro por amor a Deus e, depois, por um pouco de carinho ao Padre»[51].

© CRIS, 2016

Artigo publicado no site collationes.org


*Desde 2017, o Prelado do Opus Dei é Mons. Fernando Ocáriz

[1] cf. Catecismo da Igreja Católica, n. 144. O que Deus prometeu a Abraão cumpriu-se em nós porque acreditamos em Jesus Cristo, que morreu e ressuscitou por todos os homens (cf. Rm 4, 23-25).

[2] cf. Missal romano, Oração eucarística I (Canon Romano).

[3] Sobre o bispo como Pai, cf. Concílio Vaticano II, Decreto Christus Dominus, n.16. Cf. Congregação para os bispos, Diretório Apostolorum sucessores, 22/02/2004, n. 76. João Paulo II dedica a este tema o cap. 4, “A paternidade do bispo” do seu livro Levantai-vos! Vamos!, onde fala do exemplo de S. José.

[4] trad. de: Ernst Burkhart, Javier López, Vida cotidiana y santidad en la enseñanza de san Josemaria, Vol.2, “El sentido de la filiación divina. Fundamento de la vida cristiana”, pp. 136-137. Recordemos que o celibato apostólico está unido a uma fecunda paternidade espiritual, que pode abarcar milhares de filhos do espírito.

[5] Concílio Vaticano I, Const. Dogm. Pastor aeternus: DS 3059. O texto recolhe palavras do Concílio de Florença: DS 1307.

[6] S. Josemaria, Apontamentos da pregação, 21/11/1958 (AGP, PO1 II-1988, p. 44); 30/11/1964 (PO2 XII-1964, p. 33).

[7] Ernst Burkhart, Javier López, Vida cotidiana y santidad en la enseñanza de san Josemaria, Vol. 2, “El sentido de la filiación divina. Fundamento de la vida cristiana”, pp.136-237.

[8] cf. Aos Magnésios, 6, 1; Aos Tralianos, 3, 1: PG 5,780; Aos Esmirnistas, 8, 1: PG 5,852.

[9] cf. Pontifical Romano, Ordenação Episcopal: Exame.

[10] cf. Didascalia Apostolorum, II, 33, 1: ed. F. X. Funk, I, 115.

[11] cf. S. João Paulo II, Pastores gregis, 16/10/2003, n. 7.

[12] Como afirmou o Concílio Vaticano II, os ministros sagrados recebem uma «paternidade em Cristo» (Presbyterorum Ordinis, n. 16), como pastores da Igreja. Sobre o bispo como pai, cf. S. João Paulo II, Pastores gregis, 16/10/2003, nn. 7, 10, 33, 37, 42, etc.

[13] cf. Ernst Burkhart, Javier López, Vida cotidiana y santidad en la enseñanza de san Josemaria, Vol. 2, “El sentido de la filiación divina. Fundamento de la vida cristiana”, p. 137.

[14] Sobre a Igreja como família, cf. S. João Paulo II, Ecclesia in Africa, n. 63

[15] Sobre Mons. Javier Echevarría, Bispo, Prelado do Opus Dei (1994-2016), ordenado bispo por S. João Paulo II em 1994, cf. por exemplo a entrada correspondente do Diccionario de San Josemaria, pp.351-353, escrito por Salvador Bernal.

[16] Concílio Vaticano II, Const. Dogm. Lumen gentium, n. 12.

[17] trad. de S. Josemaria, Tertúlia 06/10/1968 (AGP, PO 1 VI-1969, p. 13).

[18] Concílio Vaticano II, Const. Dogm. Lumen gentium, n. 49.

[19] Concílio Vaticano II, Const. Dogm. Lumen gentium, n. 50.

[20] Missal Romano, Prefácio I De sanctis.

[21] cf. Jo 10, 11.

[22] cf. Concílio Vaticano II, Const. Dogm. Lumen gentium, n. 1.

[23] cf. Concílio Vaticano II, Const. Dogm. Lumen gentium, n. 23.

[24] cf. S. João Paulo II, Pastores gregis, 16/10/2003, n. 10.

[25] cf. Sto. Agostinho, In Ioannis Evangelium Tractatus, 123, 5 (CCL 36, 678-680).

[26] cf. S. Tomás, In Ioann. Ev, X, 3.

[27] cf. S. Jerónimo, In Evangelium Matthaei commentarium, IV, 24, 36.

[28] cf. S. Tomás, S. Th., II-II, q. 26, a. 9, co.

[29] trad. de Ernst Burkhart, Javier López, Vida cotidiana y santidad en la enseñanza de san Josemaria, Vol. 2, “El sentido de la filiación divina. Fundamento de la vida cristiana”, p. 138.

[30] S. Josemaria, Apontamentos íntimos, n. 1725, cit. em Andrés Vázquez de Prada, O Fundador do Opus Dei, Quadrante, São Paulo, 2004, p. 508.

[31] S. Josemaria, Carta 1938, cit. em Andrés Vázquez de Prada, Josemaria Escrivá, vol II, Verbo, Lisboa 2002,

[32] Francisco, Evangelii gaudium, 24/11/2013, n. 4.

[33] cf. S. Josemaria, Carta 14-II-1974, n. 4 (AGP, série A. 3, 95-2-4).

[34] S. Josemaria, Cristo que passa, n. 1.

[35] Trad. de Bto Álvaro del Portillo, Carta a S. Josemaria, 13/07/1939, cit. em Javier Medina Bayo, Álvaro del Portillo, Rialp, Madrid 2012, p. 169.

[36] trad. de S. Josemaria, Apontamentos da pregação (AGP, PO1 X-1971, p. 12).

[37] S. Josemaria, Carta 1938, cit. em Andrés Vázquez de Prada, Josemaria Escrivá, vol II, Ed. Verbo, Lisboa, 2002.

[38] S. Josemaria, Carta 1938, cit. em Andrés Vázquez de Prada, Josemaria Escrivá, vol II, Ed. Verbo, Lisboa 2002. Cf. Sl 103 [102] (cit. em Missale Romanum, Missa votiva de Dei Misericordia, antífona ad communionem 17) e Sl 145 [144], 20.

[39] Bto Álvaro del Portillo, Entrevista sobre o Fundador do Opus Dei, realizada por Cesare Cavalleri, Quadrante, São Paulo, 1994, cap. 3.

[40] cf. Bto Álvaro del Portillo, Notas de uma reunião de família (AGP, serie B.1.4, t850902r).

[41] Bto Álvaro del Portillo, Entrevista sobre o Fundador do Opus Dei, realizada por Cesare Cavalleri, Quadrante, São Paulo, 1994, cap. 12.

[42] Ibid., p. 54.

[43] trad. de S. Josemaria, Apontamentos da pregação (AGP, PO1 V-1954, p. 5).

[44] Ibid.

[45] Ibid.

[46] trad. de S. Josemaria, Apontamentos da pregação, (AGP, PO1 I-1963, p. 49).

[47] trad. de S. Josemaria, Apontamentos da pregação (AGP, PO1 I-1963, p. 49).

[48] cf. Statuta, n. 132, §3.

[49] Bto Álvaro del Portillo, Entrevista sobre o Fundador do Opus Dei, realizada por Cesare Cavalleri, Quadrante, São Paulo, 1994, cap. 3.

[50] As cartas que o Padre não pode ler, são lidas por quem recebeu dele este encargo; geralmente é o Diretor espiritual central ou o da respetiva circunscrição, e outros sacerdotes, que o cumprem com carinho, respeito, delicadeza esmerada e absoluta discrição, e informam o Padre.

[51] trad. de Bto Álvaro del Portillo, Tertúlia (AGP, P01 III-1989, pp. 319-320). Cf. Jo 17, 19.

Guillaume Derville (dezembro de 2016)