Um “materialismo” cristão

Quinto artigo da série “Como as mãos de Deus”, com textos da pregação de São Josemaria sobre a família.

É lícito, portanto, falar de um materialismo cristão, que se opõe audazmente aos materialismos cerrados ao espírito[1]. Como o fundador do Opus Dei lembrou imediatamente, São Paulo pôde escrever: quer comais quer bebais ou façais qualquer outra coisa, fazei tudo para a glória de Deus[2]. Ou seja, ações tão prosaicas como essas necessidades biológicas podem ser santas quando realizadas corretamente, pois a perfeição do homem é a glória do Criador.

Diante de uma descoberta tão próxima, imediata e acessível, como poderíamos retificar a intenção de alcançar esse fim? A fórmula está no próprio cerne do espírito do Opus Dei, [que] deve levar-nos a realizar o trabalho com perfeição, a amar a Deus e aos homens pondo amor nas pequenas coisas da jornada habitual, descobrindo esse algo divino que se encerra nos detalhes[3].

O segredo está nos detalhes, fazer as coisas que devemos fazer... divinamente, com o primor de um bordado.

O segredo está nos detalhes, no acabamento, na delicadeza, no refinamento..., isto é, fazer as coisas que devemos fazer... divinamente, com o primor de um bordado.

A expressão, esse algo divino” que se repete três vezes ao longo da homilia convoca todos a buscá-lo, e, para que não fiquem dúvidas sobre a universalidade do chamado, um pouco mais tarde sublinha que toda esta doutrina encontra lugar especial no espaço vital em que se enquadra o amor humano[4].

É na criatividade fresca e saborosa que existe no amor entre um homem e uma mulher. É aí que surgirão os detalhes que fazem a vida do outro feliz, quando nos propomos a esquecer a nossa própria. Surpreender uma mãe cansada, no final do dia, para levá-la a um passeio onde ela quiser, não é uma bobagem. Receber o marido com um beijo e um sorriso mesmo que se esteja fritando batatas, não é uma tolice. O gesto de um camponês que limpa o barro de suas botas ao voltar de seu trabalho no campo, não é uma fraqueza. Se um pescador separa o melhor peixe da sua pesca para sua esposa, não está sendo pouco natural.

Esses fatos envolvem a doação de algo que temos em nossas mãos e faz parte de nossa existência. Os seres humanos oferecemos o que temos – pouca coisa - mas é o que temos... e, quando não o fazemos, o próprio Cristo – bem como o nosso cônjuge – sentem falta disso. Basta-nos lembrar a reprovação àquele fariseu que convidou Jesus para almoçar. Entrei em tua casa e não me deste água para lavar os pés (...), não me deste o ósculo (...), não me ungiste a cabeça com óleo[5]. Para que o Senhor precisaria dessas insignificâncias? Para nada, Ele queria que seu anfitrião caprichasse no modo de recebê-lo, porque dessa forma era o seu amigo quem se enriqueceria.

À luz destes ensinamentos, vale a pena pensar que não se trata tanto de afirmar continuamente que “fazemos tudo” pelo nosso cônjuge, mas que desejamos que ele experimente um momento agradável agora. “Dar a vida” pelo outro é um bom desejo, mas nós realmente temos que a dar cortada em muitas fatias, porque é possível que ela jamais nos seja pedida em um só bloco. Dessa forma não nos sentiremos heróis ou vítimas, só teremos que parecer-nos com aqueles grãos de sal que imediatamente se dissolvem, mas são essenciais para realçar os sabores da convivência.

Ao referir-se aos detalhes materiais da vida matrimonial São Josemaria, usa exemplos muito concretos e aponta o motivo que sustenta essa forma de agir. Com linguagem fácil de entender, aconselha às mulheres: Arrume-se, fique bonita, e quando passem os anos, melhore um pouquinho mais a fachadacomo fazemos com as casas. Quanto seu marido agradecerá![6]Mais de uma vez, ao comentar esse ponto, acrescentou: Este é um conselho sacerdotal[7].

A beleza não é uma mera perfeição plástica, mas algo mais radical que vem de dentro para fora

Essa consideração sobre a beleza das mulheres, que aparecerá em outras ocasiões, bem merece um comentário. Fala de um certo dever da mulher de incrementar e depurar a beleza, para oferecê-la à contemplação e à admiração, uma atitude intencionalmente diferente da exposição e provocação. O porte externo de uma mulher, ou emite uma mensagem sobre sua interioridade, ou é uma máscara. A beleza não é uma mera perfeição plástica, mas algo mais radical que vem de dentro para fora: irradia-se. É uma beleza que ao longo dos anos muda de qualidade porque se torna argumentativa e biográfica. É possível encontrar essa beleza sentada em uma cadeira de rodas, no corredor de um hospital.

Por outro lado, essas considerações de São Josemaria não eram frases brilhantes para incentivar os ouvintes, muito menos questões circunstanciais de cosmética ou moda. Tratava-se dessa unidade íntima do divino e do humano que o Senhor quis colocar em sua alma. Talvez, ao usar essas imagens teria diante de seus olhos a figura de sua mãe, Dona Dolores, que nunca descuidou sua discreta elegância. Aqueles que a conheceram em uma idade avançada são unânimes em descrevê-la, tal como mostram as fotografias da época. A qualquer momento estava elegante, não precisava arrumar-se para tirar uma foto.

O Fundador do Opus Dei aprofunda ainda mais nestes aspectos materiais, ao comentar a doutrina sobre o Sacramento do Matrimônio. Na mesma tarde desse domingo, em que celebrou a Eucaristia para os membros da Associação de Amigos da Universidade de Navarra, também se reuniu com alguns deles no teatro Gayarre e lhes dizia: Desejo que vocês considerem algo muito elementar para um cristão: em todos os sacramentos o ministro é o sacerdote; mas não aí [no Matrimônio]. Neste sacramento, o ministro são vocês. Em outros sacramentos, a matéria é o pão, é o vinho, é a água... No Matrimônio a matéria são seus corpos. Lembrem-se do que eu lhes disse esta manhã com palavras de São Paulo: vocês não pertencem um ao outro. Eu vejo o leito matrimonial como um altar: aí está a matéria do sacramento[8].

É difícil estabelecer uma comparação mais ousada, sublime e real do que essa. A inteligência humana depara-se logo com o teto sem chegar a esmiuçar as riquezas do mistério da graça que qualquer sacramento, incluindo o do Matrimônio, encerra. Por exemplo, a referência ao altar, feita por São Josemaria, imediatamente nos recorda a Cruz, porque esta graça do matrimônio cristão é fruto da Cruz de Cristo, fonte de toda a vida cristã[9]. Mas, ao mesmo tempo, a partir daí, as nossas cruzes, incluindo as do próprio leito conjugal, adquirem sentido. Portanto, é seguindo a Cristo, na renúncia a si próprios e tomando a sua cruz (cfr. Mt, 8, 34) que os esposos poderão “compreender” (Cf. Mt 19,11) o sentido original do matrimónio e vivê-lo com a ajuda de Cristo[10]. Mais adiante vamos aprofundar no assunto, mas contemplemos primeiro a ótica para enfocá-lo.

As consequências que se deduzem são fortes o suficiente para transformar a superficialidade das abordagens que às vezes se fazem sobre o matrimônio cristão. É o próprio Cristo que sai ao encontro dos esposos cristãos para restaurar a ordem da Criação, que subsiste, embora seriamente perturbada[11]. Não é estranho que, diante de tanta misericórdia, São Josemaria, em outra de suas homilias, sinta a urgência de dizer: É verdadeiramente infinita a ternura de Nosso Senhor. Reparemos com que delicadeza trata os seus filhos[12].

Nesse mesmo contexto da vida matrimonial e familiar, o Fundador do Opus Dei nos lembra que, em Jesus Cristo, fomos constituídos como sacerdotes da nossa própria existência. Lembra-se assim, das palavras de São Pedro:vos autem genus electum, regale sacerdotium, gens sancta, populus adquisitionis... (1 Pd 2, 9) Vós, porém, sois uma raça escolhida, um sacerdócio régio, uma nação santa, um povo adquirido para Deus...

A sua validade operacional é permanente. Se atuas – vives e trabalhas – de olhos postos em Deus, por razões de amor e de serviço, com alma sacerdotal, ainda que não sejas sacerdote, toda a tua ação cobra um genuíno sentido sobrenatural, que mantém a tua vida inteira unida à fonte de todas as graças[13]. Os antecedentes remontam-se ao século primeiro, mas diante da vívida e simples novidade dessas palavras, todo um panorama se abre.

Ou seja, pais e mães começam a entender que a sua tarefa, os seus filhos, os seus amigos, toda a família, com as alegrias e sofrimentos de cada dia, podem ser oferecidos como uma hóstia que se purifica com o dom do Espírito Santo, para que, unida ao sacrifício de Cristo tenha um valor redentor diante do Pai[14].

No entanto, para oferecer deve-se ter algo, saber encontrar em nosso trabalho diário aquelas ocasiões que às vezes nos escapam através do ralo da superficialidade, e transformá-las em uma dádiva. Devemos ter a coragem de olhar para a nossa vida como uma “tarefa” e descobrir o significado do que acontece conosco para dirigir as coisas ao seu fim. Pode-se oferecer a dor de uma doença, a alegria de uma boa notícia, a satisfação de ter estofado uma poltrona novamente, ou o incômodo de ter que varrer um quarto por onde passaram as crianças. Nada fica fora dessa entrega e desse oferecimento: também a discussão boba do casal, quando soubemos pedir perdão, mesmo que culpa tenha sido do outro.

É necessário trançar o divino com o humano para não caminhar “mancando” pelo mundo: com um pé em cada degrau de nível diferente. Não vivemos uma vida dupla, explicou São Josemaria Escrivá em 1945, descrevendo o espírito de Opus Dei, mas uma unidade de vida, simples e forte, na qual todas as nossas ações se fundem e se compenetram. Quando respondemos generosamente a esse espírito, adquirimos uma segunda natureza: sem perceber, estamos pendentes do Senhor o dia inteiro e nos sentimos obrigados a colocar Deus em todas as coisas, que, sem Ele, nos parecem insípidas[15].

[1] Entrevistas, n. 115.

[2] 1 Cor 10, 31.

[3] Entrevistas, n. 116.

[4] Ibidem. n.121.

[5] Lc 7, 44.

[6] Salvador Bernal, Perfil.

[7] Entrevistas, n.107.

[8] Revista Nuestro Tiempo, 12/1967, p.720.

[9] Cfr. Catecismo da Igreja Católica, n.1615

[10] Ibid.

[11] Cfr. Catecismo da Igreja Católica, n.1608

[12] É Cristo que passa, 78.

[13] Forja, 369

[14] Cfr. CVII. Const.Lumen Gentium, n. 2,11

[15] Citada em: Pedro Rodriguez, Vocación, Trabajo y Contemplación, Eunsa, Pamplona, 1986, p. 212.