6. A Criação

A doutrina da Criação constitui a primeira resposta às indagações fundamentais sobre nossa origem e nosso fim.

Introdução

1. O ato criador

1.1. “A criação é obra comum da Santíssima Trindade” (Catecismo, 292)

1.2. “O mundo foi criado para a glória de Deus” (Concílio Vaticano I)

1.3. Conservação e providência. O mal.

1.4. Criação e salvação

2. A realidade criada

2.1. O mundo espiritual: os anjos

2.2. O mundo material

2.3. O homem

3. Algumas consequências práticas da verdade sobre a criação


Introdução

A importância da verdade da criação vem de que é “o fundamento de todos os projetos divinos de salvação; (...) o início da história da salvação, que culmina em Cristo” (Compêndio, 51). Tanto a Bíblia (Gn 1,1) como o Credo começam com a confissão de fé no Criador.

Diferentemente dos outros grandes mistérios da nossa fé (a Trindade e a Encarnação), a criação é “a primeira resposta às questões fundamentais do homem acerca sua própria origem e do seu fim” (Compêndio, 51), que o espírito humano se propõe e, em parte, pode também responder, como mostra a reflexão filosófica e os relatos das origens pertencentes às culturas religiosas de tantos povos (cf. Catecismo, 285); não obstante, a especificidade da noção de criação só foi de fato entendida com a revelação judaico-cristã.

A criação é, pois, um mistério de fé e, ao mesmo tempo, uma verdade acessível à razão natural (cf. Catecismo, 286). Esta peculiar posição entre fé e razão faz da criação um bom ponto de partida na tarefa de evangelização e de diálogo que os cristãos estão sempre – particularmente em nossos dias[1] – chamados a realizar, como já fizera São Paulo no Areópago de Atenas (At 17,16-34).

Costuma-se distinguir entre o ato criador de Deus (a criação active sumpta) e a realidade criada, que é efeito de tal ação divina (a criação passive sumpta)[2]. Seguindo este esquema, são expostos a seguir os principais aspectos dogmáticos da criação.

1. O ato criador

1.1. “A criação é obra comum da Santíssima Trindade” (Catecismo, 292)

A Revelação apresenta a ação criadora de Deus como fruto da sua onipotência, da sua sabedoria e do seu amor. Costuma-se atribuir a criação ao Pai (cf. Compêndio, 52), assim como a redenção ao Filho e a santificação ao Espírito Santo. Ao mesmo tempo, as obras ad extra da Trindade (a primeira delas é a criação) são comuns às três Pessoas, e por isso, faz sentido perguntar-se pelo papel específico de cada Pessoa na criação, pois “cada Pessoa divina cumpre a obra comum segundo a sua propriedade pessoal” (Catecismo, 258). Este é o sentido da igualmente tradicional apropriação dos atributos essenciais (onipotência, sabedoria, amor) respectivamente ao agir criador do Pai, do Filho e do Espírito Santo.

No Símbolo Niceno-Constantinopolitano, confessamos a nossa fé “em um só Deus, Pai todo-poderoso, criador do céu e da terra”; “em um só Senhor Jesus Cristo (...) por ele todas as coisas foram feitas”; e no Espírito Santo, “Senhor que dá a vida” (DH 150). A fé cristã fala, portanto, não somente de uma criação ex nihilo, do nada, que indica a onipotência de Deus Pai; mas também de uma criação feita com inteligência, com a sabedoria de Deus – o Logos por meio do qual tudo foi feito (Jo 1, 3) -; e de uma criação ex amore (GS 19), fruto da liberdade e do amor que é o próprio Deus, o Espírito que procede do Pai e do Filho. Consequentemente, as processões eternas das Pessoas estão na base de seu agir criador[3].

Assim, como não há contradição entre a unicidade de Deus e o seu ser três Pessoas, de modo análogo não se contrapõe a unicidade do princípio criador com a diversidade dos modos de agir de cada uma das Pessoas.

“Criador do céu e da terra”

No princípio, Deus criou o céu e a terra. Três coisas são afirmadas nestas primeiras palavras da Escritura: o Deus eterno pôs um começo a tudo o que existe fora dele. Só ele é Criador (o verbo “criar” – em hebraico, “bara” – sempre tem como sujeito Deus). Tudo o que existe (expresso pela fórmula “o céu e a terra”) depende daquele que lhe dá o ser” (Catecismo, 290).

Somente Deus pode criar em sentido próprio[4], o que significa dar origem às coisas do nada (ex nihilo), e não a partir de algo pré-existente; para isso, requer-se uma potência ativa infinita que só Deus possui (cf. Catecismo, 296-298). É congruente (adequado), portanto, apropriar a potência criadora ao Pai, já que Ele é, na Trindade – segundo uma expressão clássica – fons et origo, quer dizer, a Pessoa de quem procedem as outras duas, princípio sem princípio.

A fé cristã afirma que a distinção fundamental, de fato, é a que se dá entre Deus e as criaturas. Isto supôs uma novidade nos primeiros séculos, nos quais a polaridade entre matéria e espírito dava motivo a visões inconciliáveis entre si (materialismo e espiritualismo, dualismo e monismo). O cristianismo rompeu estes esquemas, principalmente com sua afirmação de que também a matéria (do mesmo modo que o espírito) é criatura do único Deus transcendente. Mais tarde, São Tomás desenvolveu uma metafísica da criação que descreve a Deus como o próprio Ser subsistente (Ipsum Esse Subsistens). Como causa primeira, é absolutamente transcendente ao mundo; e ao mesmo tempo, em virtude da participação de seu ser nas criaturas, está presente intimamente nelas, as quais dependem, em tudo, de quem é fonte do ser. Deus é superior summo meo (maior do que o que há de maior em mim) e, ao mesmo tempo, intimior intimo meo (mais íntimo do que o que há de mais íntimo em mim) (Santo Agostinho, Confissões, 3,6,11; cf. Catecismo, 300).

“Por Ele todas as coisas foram feitas”

A literatura sapiencial do Antigo Testamento apresenta o mundo como fruto da sabedoria de Deus (cf. Sab 9,9). “O mundo não é o produto de uma necessidade qualquer, de um destino cego ou do acaso” (Catecismo, 295), mas tem uma inteligibilidade que a razão humana, participando na luz do entendimento divino, pode captar, não sem esforço e em espírito de humildade e de respeito ante o Criador e sua obra (cf. Jo 42,3; cf. Catecismo, 299). Este desenvolvimento chega à sua expressão plena no Novo Testamento: ao identificar o Filho, Jesus Cristo, com o Logos (cf. Jo 1, 1ss), afirma que a sabedoria de Deus é uma Pessoa, o Verbo encarnado, por quem tudo foi feito (Jo 1, 3). São Paulo formula esta relação do criado com Cristo, esclarecendo que todas as coisas foram criadas nele, por ele e para ele (Col 1, 16-17).

Há, pois, uma razão criadora na origem do cosmos (cf. Catecismo, 284)[5]. O Cristianismo tem, desde o começo, uma grande confiança na capacidade da razão humana de conhecer; e uma enorme segurança em que jamais a razão (científica, filosófica etc.) poderá chegar a conclusões contrárias à fé, pois ambas provêm da mesma origem.

Não é raro encontrar pessoas que apresentam falsos dilemas, como, por exemplo, entre criação e evolução. Em realidade, uma epistemologia adequada não só distingue os âmbitos próprios das ciências naturais e da fé, mas, ainda, reconhece, na filosofia, um elemento necessário de mediação, pois as ciências, com seu método e objeto próprios, não cobrem todo o âmbito da razão humana; e a fé, que se refere ao mesmo mundo do qual tratam as ciências, necessita, para formular-se e entrar em diálogo com a racionalidade humana, de categorias filosóficas[6].

É lógico, portanto, que a Igreja, desde o início, buscasse o diálogo com a razão: uma razão consciente de seu caráter criado, pois não se deu a si própria a existência, nem dispõe completamente de seu futuro; uma razão aberta àquilo que a transcende, em suma, a Razão originária. Paradoxalmente, uma razão fechada sobre si, que acredita poder achar dentro de si a resposta às suas interrogações mais profundas, acaba por afirmar a falta de sentido da existência, e por não reconhecer a inteligibilidade do real (niilismo, irracionalismo, etc.).

“Senhor que dá a vida”

“Cremos que o mundo procede da vontade livre de Deus, que quis fazer as criaturas participarem de seu ser, de sua sabedoria e de sua bondade: "Pois tu criaste todas as coisas; por tua vontade é que elas existiam e foram criadas". (Ap 4,11). (...). "O Senhor é bom para todos, compassivo com todas as suas obras"” (Catecismo, 295). Em consequência, “Originada da bondade divina, a criação participa desta bondade: "E Deus viu que isto era bom... muito bom": Gn 1, 4. 10. 12. 18. 21. 31). Pois a criação é querida por Deus como um dom...” (Catecismo, 299).

Este caráter de bondade e de dom livre permite descobrir na criação a atuação do Espírito – que “movia-se sobre as águas” (Gn 1,2) –, a Pessoa Dom na Trindade, Amor subsistente entre o Pai e o Filho. A Igreja confessa sua fé na obra criadora do Espírito Santo, que dá a vida e é fonte de todo bem[7].

A afirmação cristã da liberdade divina criadora permite superar a estreiteza de outras visões que, atribuindo uma necessidade a Deus, acabam por sustentar um certo fatalismo ou determinismo. Não há nada, nem “dentro”, nem “fora” de Deus, que o obrigue a criar. Qual é então o fim que o move? O que se propôs ao criar-nos?

1.2. “O mundo foi criado para a glória de Deus” (Concílio Vaticano I)

Deus criou tudo “não para aumentar sua glória, mas para manifestá-la e comunicá-la” (São Boaventura, Sent., 2,1,2,2,1). O Concílio Vaticano I (1870) ensina que “por sua bondade e pela sua virtude onipotente, não para aumentar a sua felicidade nem para adquirir sua perfeição, mas para a manifestar essa perfeição por meio dos bens que prodigaliza às criaturas, Deus, com vontade plenamente livre, criou simultaneamente no início do tempo ambas as criaturas do nada: a espiritual e a corporal” (DS 3002; cf. Catecismo, 293).

“A glória de Deus consiste em que se realize esta manifesta e esta comunicação de sua bondade em vista das quais o mundo foi criado. Fazer de nós "filhos adotivos por Jesus Cristo: conforme o beneplácito de sua vontade para louvor à glória da sua graça" (Ef 1,5-6): "Pois a glória de Deus é o homem vivo, e a vida do homem é a visão de Deus" (Santo Irineu, Adversus haereses, 4,20,7)” (Catecismo, 294).

Longe de uma dialética de princípios contrapostos (como ocorre no dualismo de tipo maniqueísta, como também no idealismo monista hegeliano), afirmar a glória de Deus como fim da criação não comporta uma negação do homem, mas uma condição indispensável para a sua realização. O otimismo cristão tem as suas raízes na exaltação conjunta de Deus e do homem: “somente se Deus é grande, o homem também é grande”[8]. Trata-se de um otimismo e uma lógica que afirmam a absoluta prioridade do bem, mas que não são, por isso, cegos ante a presença do mal no mundo e na história.

1.3. Conservação e providência. O mal

A criação não se reduz aos começos; uma vez realizada a criação, “Com a criação, Deus não abandona sua criatura a ela mesma. Não somente lhe dá o ser e a existência, mas também a sustenta a todo instante no ser, dá-lhe o dom de agir e a conduz a seu termo” (Catecismo, 301). A Sagrada Escritura compara esta atuação de Deus na história com a ação criadora (cf.Is 44,24; 45,8;51,13). A literatura sapiencial explicita a ação de Deus que mantém suas criaturas na existência. “Como poderia subsistir qualquer coisa, se não o tivésseis querido, e conservar a existência, se por vós não tivesse sido chamada?” (Sab 11,25). São Paulo vai mais longe e atribui esta ação conservadora a Cristo: “Ele existe antes de todas as coisas, e todas as coisas subsistem nele” (Col 1,17).

O Deus dos cristãos não é um relojoeiro ou arquiteto que, após ter realizado sua obra, se desentende dela. Estas imagens são próprias de uma concepção deísta, segundo a qual Deus não se imiscui nos assuntos deste mundo. Mas isto supõe uma distorção do autêntico Deus criador, pois separa drasticamente a criação da conservação e governo divino do mundo[9].

A noção de conservação “faz o papel de ponte” entre a ação criadora e o governo divino do mundo (providência). Deus não só cria o mundo e o mantém na existência, mas, além disso, “conduz as suas criaturas para a perfeição última, à qual Ele mesmo as chamou” (Compêndio, 55). A Sagrada Escritura apresenta a soberania absoluta de Deus e testemunha constantemente o seu cuidado paterno, tanto nas coisas pequenas como nos grandes acontecimentos da história (cf. Catecismo, 303). Neste contexto, Jesus se revela como a providência “encarnada” de Deus, que atende, como Bom Pastor, as necessidades materiais e espirituais dos homens (Jo 10,11.14-15; Mt 14, 13-14, etc.) e nos ensina a abandonar-nos aos seus cuidados (Mt 6,31-33).

Se Deus cria, sustenta e dirige tudo com bondade, de onde provem o mal? “Para esta pergunta tão premente quão inevitável, tão dolorosa quanto misteriosa, não há uma resposta rápida. É o conjunto da fé cristã que constitui a resposta a esta pergunta (...). Não há nenhum elemento da mensagem cristã que não seja, por uma parte, uma resposta à questão do mal” (Catecismo, 309).

A criação não está terminada desde o princípio, mas Deus a fez in statu viae, isto é, em direção a uma meta última por alcançar. Para a realização dos seus desígnios, Deus se serve do concurso das criaturas, e concede aos homens uma participação da sua providência, respeitando sua liberdade, ainda quando atuem mal (cf. Catecismo, 302, 307, 311). Aquilo que realmente surpreende é que Deus “em sua onipotente providência pode tirar um bem das consequências de um mal” (Catecismo, 312). É uma misteriosa e grandíssima verdade que “todas as coisas concorrem para o bem daqueles que amam a Deus” (Rm 8,28)[10].

A experiência do mal parece mostrar uma tensão entre a onipotência e a bondade divinas em sua atuação na história. Aquela recebe resposta, certamente misteriosa, no evento da Cruz de Cristo, que revela o “modo de ser” de Deus, e é, portanto, fonte de sabedoria para o homem (sapientia crucis).

1.4. Criação e salvação

A criação é “o primeiro passo para a Aliança do Deus único com seu povo” (Compêndio, 51). Na Bíblia, a criação está aberta à atuação salvífica de Deus na história, que tem a sua plenitude no mistério pascal de Cristo, e que alcançará sua perfeição final no fim dos tempos. A criação foi feita com vistas ao sábado, o sétimo dia, em que o Senhor descansou, dia em que culmina a primeira criação e que se abre ao oitavo dia em que começa uma obra ainda mais maravilhosa: a Redenção, a nova criação em Cristo (2 Cor 5,7; cfr Catecismo, 345-349).

Assim, fica patente a continuidade e unidade do desígnio divino de criação e redenção. Entre ambos, não há qualquer hiato, mas um vínculo, pois o pecado dos homens não corrompeu totalmente a obra divina. A relação entre ambas – criação e salvação – pode expressar-se dizendo que, de um lado, a criação é o primeiro evento salvífico; e por outro lado, que a salvação redentora possui as características de uma nova criação. Esta relação ilumina importantes aspectos da fé cristã, como a ordenação da natureza à graça, ou a existência de um único fim sobrenatural do homem.

2. A realidade criada

O efeito da ação criadora de Deus é a totalidade do mundo criado, “céus e terra” (Gn 1,1). Deus é “Criador de todas as coisas, das visíveis e das invisíveis, espirituais e corporais; que por sua virtude onipotente, desde o princípio dos tempos e simultaneamente, criou do nada a uma e outra criatura, a espiritual e a corporal, isto é, a angélica e a material, e depois a humana, como comum, composta de espírito e de corpo”[11].

O cristianismo supera tanto o monismo (que afirma que a matéria e o espírito se confundem, que a realidade de Deus e do mundo se identificam), como o dualismo (segundo o qual a matéria e o espírito são princípios originários opostos).

A ação criadora pertence à eternidade de Deus, mas o efeito de tal ação está marcado pela temporalidade. A Revelação afirma que o mundo foi criado como mundo com um início temporal[12], isto é, que o mundo foi criado com o tempo, o qual é indício muito coerente com a unidade do desígnio divino de revelar-se na história da salvação.

2.1. O mundo espiritual: os anjos

“A existência dos seres espirituais, não-corporais, que a Sagrada Escritura habitualmente chama anjos, é uma verdade de fé. O testemunho da Escritura é tão claro quanto a unanimidade da Tradição” (Catecismo, 328). Os dois testemunhos mostram os anjos em sua dupla função de amar a Deus e ser mensageiros de seu desígnio salvador. O Novo Testamento apresenta os anjos em relação a Cristo: criados por Ele e para Ele (Col 1,16), rodeiam a vida de Jesus desde o seu nascimento até a Ascensão, sendo os anunciadores de sua segunda vinda, gloriosa (cf. Catecismo, 333).

Da mesma forma, também estão presentes desde o início da vida da Igreja, que se beneficia de sua ajuda poderosa, e em sua liturgia se une a eles na adoração a Deus. A vida de cada homem está acompanhada desde seu nascimento por um anjo que o protege e conduz à Vida (cf. Catecismo, 334-336).

A teologia (especialmente São Tomás de Aquino, o Doutor Angélico) e o Magistério da Igreja aprofundaram no estudo da natureza desses seres puramente espirituais, dotados de inteligência e vontade, afirmando que são criaturas pessoais e imortais, que superam em perfeição a todas as criaturas visíveis (cf. Catecismo, 330).

Os anjos foram criados em estado de prova. Alguns se rebelaram irrevogavelmente contra Deus. Caídos no pecado, Satanás e os outros demônios – que haviam sido criados bons, mas por si mesmos se fizeram maus – instigaram nossos primeiros pais para que pecassem (cf. Catecismo, 391-395).

2.2. O mundo material

Deus “criou o mundo visível em toda a sua riqueza, diversidade e ordem. A Sagrada Escritura apresenta a obra do Criador, simbolicamente, como uma sequência de seis dias "de trabalho" divino, que terminam com o "descanso" do sétimo dia (Gn 1,1-2,4)” (Catecismo, 337). “Repetidas vezes a Igreja teve de defender a bondade da criação, inclusive do mundo material (cf. DS 286; 455-463; 800; 1333; 3002)” (Catecismo, 299).

“Pela própria condição da criação, todas as coisas estão dotadas de firmeza, verdade e bondade próprias e de uma ordem” (GS 36,2). A verdade e bondade da criação procedem do único Deus Criador, que é, ao mesmo tempo, Trino. Assim, o mundo criado é um certo reflexo da atuação das Pessoas divinas: “em todas as criaturas encontra-se uma representação da Trindade, na forma de um vestígio”[13].

O cosmos tem uma beleza e uma dignidade enquanto obra de Deus. Há uma solidariedade e uma hierarquia entre os seres, o que deve levar a uma atitude contemplativa de respeito para com a criação e as leis naturais que a regem (cf. Catecismo, 339, 340, 342, 354). Certamente, o cosmos foi criado para o homem, que recebeu de Deus a ordem de dominar a terra (cf. Gn 1,28). Tal ordem não é um convite à exploração despótica da natureza, mas um convite para participar no poder criador de Deus: mediante seu trabalho, o homem colabora no aperfeiçoamento da criação.

O cristão participa das justas exigências que a sensibilidade ecológica tem manifestado nas últimas décadas, sem cair em uma vaga divinização do mundo, e afirmando a superioridade do homem em relação aos outros seres, como “ponto culminante da obra da criação” (Catecismo, 343).

2.3. O homem

As pessoas humanas gozam de uma peculiar posição na obra criadora de Deus, ao participar, simultaneamente, da realidade material e da espiritual. Somente do homem a Escritura nos diz que Deus o criou “à sua imagem e semelhança” (Gn 1,26). Ele foi colocado por Deus como cabeça da realidade visível, e goza de uma dignidade especial, pois, “De todas as criaturas visíveis, só o homem é "capaz de conhecer e amar seu Criador" (216); ele é a "única criatura na terra que Deus quis por si mesma" (217); só ele é chamado a compartilhar, pelo conhecimento e pelo amor, a vida de Deus. Foi para este fim que o homem foi criado, e aí reside a razão fundamental da sua dignidade” (Catecismo, 356; cf. ibidem, 1701-1703).

Homem e mulher, em sua diversidade e complementaridade, queridas por Deus, gozam da mesma dignidade como pessoas (cf. Catecismo, 357, 369, 372). Em ambos, ocorre a união substancial do corpo e da alma, sendo esta a forma do corpo. Sendo espiritual, a alma humana é criada imediatamente por Deus (não é “produzida” pelos pais, nem é pré-existente), e é imortal (cf. Catecismo, 366). As duas características (espiritualidade e imortalidade) podem ser mostradas filosoficamente. Portanto, é um reducionismo afirmar que o homem procede exclusivamente da evolução biológica (evolucionismo absoluto). Na verdade, há saltos ontológicos que não podem ser explicados só pela evolução. A consciência moral e a liberdade do homem, por exemplo, manifestam sua superioridade sobre o mundo material, e são sinais de sua especial dignidade.

A verdade da criação ajuda a superar tanto a negação da liberdade (determinismo) como o extremo contrário da exaltação indevida da mesma: a liberdade humana é criada, não absoluta, e existe em mútua dependência da verdade e do bem. O sonho de uma liberdade como puro poder e arbitrariedade corresponde a uma imagem deformada, não só do homem, mas também de Deus.

Mediante sua atividade e seu trabalho, o homem participa do poder criador de Deus[14]. Além disso, sua inteligência e sua vontade são uma participação, uma faísca da sabedoria e do amor divinos. Enquanto o resto do mundo visível é mero vestígio da Trindade, o ser humano constitui uma autêntica imago Trinitatis.

3. Algumas consequências práticas da verdade sobre a criação

A radicalidade da ação divina criadora e salvadora exige do homem uma resposta que tenha esse mesmo caráter de totalidade: “amarás ao Senhor teu Deus com todo o teu coração, com toda tua alma, com todas as tuas forças” (Dt 6,5; cf. Mt 22,37; Mc 12,30; Lc 10,27). Nesta correspondência encontra-se a verdadeira felicidade, a única coisa que torna plena a liberdade.

Por sua vez, a universalidade da ação divina tem um sentido tanto intensivo como extensivo: Deus cria e salva a todo homem e a todos os homens. Corresponder à chamada de Deus para amá-lo com todo nosso ser está intrinsecamente unido a levar o seu amor a todo o mundo[15].

O conhecimento e a admiração do poder, sabedoria e amor divinos levam o homem a uma atitude de reverência, adoração e humildade, a viver na presença de Deus, sabendo-se seu filho. Ao mesmo tempo, a fé na providência leva o cristão a uma atitude de confiança filial em Deus, em todas as circunstâncias: com agradecimento pelos bens recebidos, e com abandono simples diante daquilo que pode parecer mal, pois Deus, dos males, tira bens maiores.

Consciente de que tudo foi criado para a glória de Deus, o cristão procura comportar-se em todas as ações de modo a buscar o fim verdadeiro que enche sua vida de felicidade: a glória de Deus, não a própria vanglória. Esforça-se para retificar a intenção em suas ações, de modo que se possa dizer que o único fim de sua vida é este: Deo omnis gloria![16].

Deus quis colocar o homem à frente de sua criação, outorgando-lhe o domínio sobre o mundo, de maneira que a aperfeiçoe com seu trabalho. A atividade humana pode ser, portanto, considerada como uma participação na obra divina da criação.

A grandeza e a beleza das criaturas suscitam nas pessoas admiração e desperta nelas a pergunta pela origem e destino do mundo e do homem, fazendo-as entrever a realidade de seu Criador. O cristão, em seu diálogo com os que não têm fé, pode suscitar estas perguntas para que as inteligências e os corações se abram à luz do Criador. Da mesma forma, em seu diálogo com pessoas de diversas religiões, o cristão encontra, na verdade da criação, um excelente ponto de partida, pois trata-se de uma verdade em parte compartilhada, e que constitui a base para a afirmação de alguns valores morais fundamentais da pessoa.

Santiago Sanz


Bibliografia básica

Catecismo da Igreja Católica, 279-374.

Compêndio do Catecismo da Igreja Católica, 51-72.

DH, nn. 125, 150, 800, 806, 1333, 3000-3007, 3021-3026, 4319, 4336, 4341.

Concílio Vaticano II, Gaudium et spes, 10-18, 19-21, 36-39.

João Paulo II, Creo en Dios Padre. Catequesis sobre el Credo (I), Palabra, Madri 1996, 181-218.

Leituras recomendadas

Santo Agostinho, Confissões, livro XII.

São Tomás de Aquino, Summa Theologiae, I, qq. 44-46.

São Josemaria, Homilia “Amar o mundo apaixonadamente”, em Entrevistas com Mons. Josemaria Escrivá, 113-123.

Joseph Ratzinger, Creación y pecado, Eunsa, Pamplona 1992.

João Paulo II, Memoria e identidade, Ed. Objetiva, 2005.


[1] Entre muitas outras intervenções, cf. Bento XVI, Discurso aos membros da Cúria Romana, 22-12-05; Fé, Razão e universidade (Discurso em Regensburg), 12-09-06; Ângelus, 28-01-07.

[2] Cf. São Tomás, De Potentia, q. 3, a. 3, co.; o Catecismo segue este mesmo esquema.

[3] Cf. São Tomás, Super Sent., lib. 1, d. 14, q. 1, a. 1, co.: “são a causa e a razão da processão (procedência) das criaturas”.

[4] Por isso se diz que Deus não tem necessidade de instrumentos para criar, já que nenhum instrumento possui a potência infinita necessária para criar. Decorre daí, também, que quando se fala, por exemplo, do homem como criador, ou, inclusive, como capaz de participar do poder criador de Deus, o emprego do adjetivo “criador” não é analógico, mas metafórico.

[5] Este ponto aparece com frequência nos ensinamentos de Bento XVI, por exemplo, na Homilia de Regensburg, 12-09-06; Discurso em Verona, 19-10-2006; Encontro com o clero da diocese de Roma, 22-02-2007 etc.

[6] Tanto o racionalismo cientificista como o fideísmo científico necessitam uma correção por parte da filosofia. Além disso, há que evitar, da mesma forma, a falsa apologética de quem vê forçadas concordâncias, buscando nos dados fornecidos pela ciência uma verificação empírica ou uma demonstração das verdades da fé, quando, na verdade, como dissemos, trata-se de dados que pertencem a métodos e disciplinas distintas.

[7] Cf. João Paulo II, Carta Encíclica Dominum et vivificantem, 18-05-1986, 10.

[8] Bento XVI, Homilia, 15-08-2005.

[9] O deísmo implica em um erro na noção metafísica de criação, pois esta, enquanto doação do ser, leva consigo dependência ontológica por parte da criatura, que não é separável de sua continuação no tempo. Ambas constituem um mesmo ato, ainda que possamos distingui-las conceitualmente: “a conservação das coisas por Deus não se dá por uma ação nova, mas pela continuação da ação que dá o ser, que é certamente uma ação sem movimento e sem tempo” (São Tomás, Summa Theologiae, I, q. 104, a. 1. ad 3).

[10] Em continuidade com a experiência de tantos santos da história da Igreja, esta expressão paulina se encontrava frequentemente nos lábios de São Josemaria, que vivia e animava assim a viver em uma gozosa aceitação da vontade divina (cf. São Josemaria, Sulco, 127; Via Sacra, IX, 4; Amigos de Deus, 119). Por outro lado, o último livro de João Paulo II, Memória e Identidade, constitui uma profunda reflexão sobre a atuação da providencia divina na história dos homens, segundo aquela outra asserção de São Paulo: “Não te deixes vencer pelo mal; antes, vence o mal com o bem” Rm 12, 21).

[11] Concílio Lateranense IV (1215), DH 800.

[12] Assim o ensina o Concílio Lateranense IV e, referindo-se a ele, o Concílio Vaticano I (cf. respectivamente DH 800 e 3002). Trata-se de uma verdade revelada, que a razão não pode demonstrar, como ensinou São Tomás na famosa disputa medieval sobre a eternidade do mundo: cf. Contra Gentiles, lib. 2, cap. 31-38; e seu opúsculo filosófico De aeternitate mundi.

[13] São Tomás, Summa Theologiae, I, q. 45, a. 7, co.; cf. Catecismo, 237.

[14] Cf. São Josemaria, Amigos de Deus, 57.

[15] Que o apostolado é a superabundância da vida interior (cf. São Josemaria, Caminho, 961) se manifesta como o correlato da dinâmica ad intra-ad extra do agir divino, isto é, da intensidade do ser, da sabedoria e do amor trinitário que se extravasa para as criaturas.

[16] Cf. São Josemaria, Caminho, 780; Sulco, 647; Forja, 611, 639, 1051.