O “vício” do trabalho e o sentido cristão da atividade profissional

O Papa Francisco pediu que “não falte trabalho a ninguém e que todos sejam remunerados com justiça e possam usufruir da dignidade do trabalho e da beleza do descanso”. Este texto procura ajudar a considerar como a dignidade do trabalho está intimamente vinculada à necessidade do descanso.

La “adicción” al trabajo y el sentido cristiano de la actividad profesional

Na festa de São José Operário, o Papa Francisco pedia que “não falte trabalho a ninguém e que todos sejam remunerados com justiça e possam usufruir da dignidade do trabalho e da beleza do descanso”[1]. Trabalhar é a primeira vocação do homem. “O trabalho manifesta e alimenta a dignidade do ser humano, permite-lhe desenvolver as capacidades que Deus lhe deu, ajuda-o a tecer relações de intercâmbio e ajuda mútua, permite-lhe sentir-se colaborador de Deus para cuidar deste mundo e desenvolvê-lo, fá-lo sentir-se útil à sociedade e solidário com seus seres queridos”[2].

A dignidade do trabalho está intimamente vinculada, entre outros aspectos, à necessidade do descanso. Quando os discípulos voltam de sua primeira pregação, contentes pelos prodígios, Jesus “não se detém em elogios e perguntas, mas preocupa-se com o seu cansaço físico e interior. E por que faz isto? Porque quer alertá-los para um perigo, que está sempre à espreita também para nós: o perigo de nos deixarmos enredar pelo frenesi do fazer, de cairmos na armadilha do ativismo, onde o mais importante são os resultados que alcançamos, e de nos sentirmos protagonistas absolutos. Quantas vezes acontece até na Igreja: estamos atarefados, corremos, pensamos que tudo depende de nós e, no final, corremos o risco de negligenciar Jesus e nos colocarmos a nós mesmos sempre no centro”[3]. Um conselho prático, continuava o Papa: “detenhamos a frenética corrida ditada por nossas agendas. Aprendamos a conceder-nos um descanso, a desligar o celular”. Assim, o descanso “também é um momento propício para a reconciliação, para enfrentar as dificuldades sem fugir delas, para encontrar a paz e a serenidade de quem sabe valorizar tudo de bom que tem”[4].

Vício do trabalho

Não é raro encontrar hoje em dia pessoas que padecem de uma espécie de “vício” do trabalho profissional. Nos casos mais graves fala-se de “síndrome de workaholism”[5]. Trata-se de pessoas que experimentam uma necessidade enorme e incontrolável de trabalhar incessantemente, repercutindo isso em sua saúde, em suas relações familiares e sociais e em seu equilíbrio psíquico. Essas pessoas são desprovidas de um regulador interno que lhes indique quando parar.

Há uma grande diferença entre trabalhar conscienciosamente e ter o vício do trabalho. De vez em quando, todos dedicamos mais horas e esforço ao trabalho do que aos seres queridos ou ao descanso. Começar um novo negócio pode ser, por exemplo, algo que requeira todo o nosso tempo no princípio. Ou um empregado recentemente admitido pode investir longas horas para causar uma boa impressão ao começar em um novo emprego. Esses exemplos são exceções que todos podemos encontrar em alguma época de nossa vida. Os workaholics atuam desta forma o tempo todo, utilizando seu trabalho como uma “fuga”. É possível trabalhar muitas horas, enfrentar uma hipoteca, enviar os filhos à universidade, pagar dois carros e não ser um viciado em trabalho. Trabalhar muitas horas não o converte em um workaholic. Não obstante, se seus amigos ou seres queridos o acusaram de negligência por causa do trabalho ou se você usou ou abusou de sua jornada de trabalho para escapar da intimidade ou das relações sociais talvez você deva fazer um exame mais profundo[6].

Contrariamente à crença popular, o vício do trabalho não consiste unicamente em ampliar de forma desproporcionada a jornada de trabalho, mas ele se manifesta, sobretudo, em uma forma de viver e interpretar a própria atividade profissional. O realmente importante é, por isso, o modo como se considera o trabalho e a capacidade ou incapacidade de desconectar, bem como a perícia para resistir à pressão causada pela concorrência de outras empresas ou a pressão da própria equipe, quer seja porque os outros estendem indefinidamente a sua jornada de trabalho ou pelas expectativas geradas diante do responsável pela equipe.

Uma peculiaridade do vício do trabalho é sua capacidade de contágio ou imposição aos empregados, pondo em risco a sua saúde, bem-estar e o equilíbrio de suas famílias. Nos casos mais extremos esta síndrome pode constituir um verdadeiro transtorno obsessivo- compulsivo, chegando a requerer a intervenção de um especialista. Em todo caso, porém, é necessário que o interessado reflita com profundidade sobre seu projeto vital e sobre o valor das diferentes dimensões de sua vida.

Valor humano e cristão da atividade profissional

As considerações a seguir podem ajudar a refletir serenamente sobre o valor humano e cristão do trabalho. O trabalho profissional – o estudo ou a formação profissional para os mais jovens – é a atividade que ocupa mais horas no dia e no conjunto da vida. Confluem para ele diversas tendências humanas: tendência à atividade, ao desenvolvimento das próprias capacidades, à criatividade, à colaboração social, a configurar o mundo, a melhorar a posição social e econômica, etc., pelo que constitui uma síntese de diferentes objetivos e necessidades, que São Josemaría descreve muito bem numa de suas homilias: “O trabalho, todo o trabalho, é testemunho da dignidade do homem, do seu domínio sobre a criação; é meio de desenvolvimento da personalidade; é vínculo de união com os outros seres; fonte de recursos para o sustento da família; meio de contribuir para o progresso da sociedade em que se vive e para o progresso de toda a humanidade[7]. As raízes antropológicas da necessidade de trabalhar são muito profundas, em virtude do quê, o desemprego, mesmo na hipótese de que não levasse à penúria econômica, tem um efeito devastador sobre a personalidade humana. “Não me cansarei de me referir à dignidade do trabalho. O que dá dignidade é o trabalho. Quem não tem trabalha, sente que algo lhe falta, falta-lhe essa dignidade que o trabalho lhe proporciona e unge de dignidade”[8], afirmava o Papa Francisco.

Além do seu valor antropológico e social, o trabalho tem um profundo significado metafísico e moral. Na perspectiva de uma metafísica criacionista, o trabalho é uma participação na criação e configuração do mundo, concedida por Deus ao homem[9], expressão da dignidade deste último e da confiança divina de que é depositário. Para um cristão o trabalho profissional, além disso, é um meio de santificação e apostolado. O trabalho converte-se em um meio pelo qual Deus nos santifica e é também um modo de transmitir seu Amor[10] ao mundo: tornamos presente o cuidado de Deus para com cada pessoa e, vice-versa, do trabalho dos outros recebemos o seu cuidado amoroso. Deus quer, com efeito, outorgar os seus dons através da mediação de outros homens. É este o sentido cristão de todo trabalho e por esta razão dependemos uns dos outros.

Do ponto de vista moral, o trabalho aparece como uma atividade para a qual confluem quase todas as virtudes éticas: “A fortaleza, para perseverarmos no trabalho, apesar das naturais dificuldades e sem nos deixarmos vencer nunca pelo acabrunhamento; a temperança, para nos gastarmos sem reservas e para superarmos o comodismo e o egoísmo; a justiça, para cumprirmos os nossos deveres para com Deus, para com a sociedade, para com a família, para com os colegas; a prudência, para sabermos em cada caso o que convém fazer e nos lançarmos à obra sem dilações...”[11]. As virtudes sociais e políticas também confluem para o trabalho. Este pode ser fonte de crescimento econômico e social ou meio de exploração do homem pelo homem.

Importância ética do trabalho

A importância ética do trabalho pode se resumir dizendo que a “dignidade do trabalho se baseia no Amor. O grande privilégio do homem é poder amar, transcendendo assim o efêmero e o transitório. Pode amar as outras criaturas, dizer um ‘tu’ e um ‘eu’ cheios de sentido. E pode amar a Deus (...). Por isso o homem não deve limitar-se a fazer coisas, a construir objetos. O trabalho nasce do amor, manifesta o amor, orienta-se para o amor”[12].

Bastam estas breves considerações para perceber que o trabalho considerado retamente é uma das principais formas de amor e de autotranscedência da pessoa humana, e nisto consiste a sua mais profunda dignidade e a chave de sua correta regulação.

Do ponto de vista ético os aspectos mais importantes são três e estão muito relacionados entre si: I) quantidade e qualidade do trabalho, II) motivação pela qual se trabalha e III) coordenação do trabalho com as outras formas do amor e de transcendência da pessoa.

A justiça obriga a trabalhar com a intensidade razoável para cada tipo de trabalho e com a maior correção técnica possível durante o tempo estabelecido pelo contrato trabalhista, pressupondo-se que o contrato seja justo. Em caso de trabalho autônomo, é a virtude ética da laboriosidade que fixa o tempo razoável, respeitando as características do trabalho, as circunstâncias da pessoa e, se for o caso, as disposições legais em vigor.

A motivação pela qual se trabalha admite certa variabilidade. É natural que para algumas pessoas prevaleça o interesse científico ou técnico suscitado pela atividade exercida e para outras, a necessidade de obter mais rendimentos. A motivação pela qual se trabalha não pode, porém, contrariar o significado antropológico, metafísico e moral do trabalho. Se isso acontecesse, a atividade profissional se desvirtuaria, causando danos à própria pessoa, aos outros e à própria atividade. Motivações insuficientes ou incorretas são, por exemplo, trabalhar “porque não há outro remédio” até o ponto de trabalhar com má vontade, o menos possível e com erros ou imperfeições técnicas contínuas, que especialmente em algumas profissões podem ter consequências graves (medicina, etc.); fazer do trabalho um meio de autoafirmação: demonstrar a si mesmo e aos outros o próprio valor ou então a capacidade de vencer a concorrência, trabalhar só por ambição ou pelo desejo de poder; ver no trabalho um meio de refugiar-se ou de desatender outras obrigações. Tais motivações são erradas, entre outras coisas porque situam o trabalho fora do âmbito do amor e da autotranscedência pessoal.

Se o trabalho não fosse encarado como expressão da autotranscedência pessoal e sim como uma forma de autoafirmação ou, pelo menos, como uma forma de satisfação pessoal, como fim de si mesmo ou de compensação de uma carência afetiva ou de caráter, seria muito difícil ou inclusive duramente conflituosa, a coordenação do trabalho com as outras formas de amor e de transcendência pessoal, como a família, as relações sociais (amizade, solidariedade, participação em tarefas de interesse comum), religião, etc. O trabalho nunca deve estar relacionado apenas com ele mesmo, como ensina o Papa Francisco “numa sociedade realmente desenvolvida, o trabalho é uma dimensão essencial da vida social, porque não é só um modo de ganhar o pão, mas também um meio para o crescimento pessoal, para estabelecer relações sadias, expressar-se a si próprio, partilhar dons, sentir-se corresponsável no desenvolvimento do mundo e, finalmente, viver como povo”[13].

Não existe um único modo de coordenar harmonicamente estas atividades, pois a variedade de circunstâncias e de vocações pessoais permite traçar diversos gêneros ou planos de vida moralmente bons. Seja de um modo ou de outro, porém, conseguir uma coordenação que não sacrifique nenhuma das dimensões fundamentais da existência humana é da máxima importância.

E mais, a figura traçada pelo conjunto dessas atividades constitui uma das manifestações mais diretas da orientação moral de fundo que cada um dá à sua vida, já que o tipo de vida que essa orientação profunda visa é o critério que determina as prioridades entre as diversas atividades e, em consequência, a distribuição de tempo, o interesse, a atenção e o esforço vital que se emprega em cada coisa. Tudo isso se refere de modo particular ao trabalho profissional que, pelo tempo e energias que pode exigir, necessita de uma vigilância constante para que não se converta em elemento perturbador de outras dimensões existenciais de igual ou de maior importância. Também pode ser a falta de empenho ou a insatisfação profissional o fator que desencadeie crises morais ou espirituais que se estendam a outros aspectos da vida. Em todo caso, a abertura ao amor e à entrega ou, negativamente, o dobrar-se egoísta sobre si mesmo se forjam na boa ordem das diversas atividades mais do que em hipotéticas opções puramente espirituais.

Cabe dizer, em síntese, que a visão cristã do trabalho profissional, que o vê como um meio de santificação própria e alheia e de enriquecimento do mundo natural e humano, pressupõe que a atividade profissional não fique deformada em sua substância humana e social. E isso depende em última estância de que se resolva adequadamente em uma alternativa radical: ver o trabalho como uma atividade que se refere exclusivamente ao próprio eu ou, pelo contrário, como uma forma de transcendência pessoal para com os outros, a sociedade e em primeiro lugar para com Deus, que nos chama a completar a sua obra criadora.

Angel Rodríguez Luño

[1] Papa Francisco, Missa na capela da Casa Santa Marta, 1º de maio de 2020.

[2] Papa Francisco, Mensagem em vídeo por ocasião do 57° Seminário da Fundação IDEA. 13 de outubro de 2021.

[3] Papa Francisco, Ângelus, 18 de julho de 2021.

[4] Papa Francisco, Audiência Geral, 5 de setembro de 2018.

[5] Expressão cunhada por Wayne Oates, Confessions of a workaholic, World Pub. Co, 1971

[6] Bryan E. Robinson, Chained to the desk: a guidebook for workaholics, their partners and children, and the clinicians who treat them. Introduction, pages 4 and 5, New York University Press, 2011.

[7] São Josemaria, E Cristo que passa, n. 47.

[8] Papa Francisco, Papa Francisco, Mensagem em vídeo por ocasião do 57° Seminário da Fundação IDEA. 13 de outubro de 2021.

[9] Cfr.Ibid. , e também Amigos de Deus, n. 57.

[10] “Agora se poderá compreender ainda melhor que, se algum de vós não amasse o trabalho – aquele que lhe toca! – se não se sentisse autenticamente comprometido numa das nobres obrigações terrenas, para santificá-la, se não tivesse uma vocação profissional, jamais chegaria a calar no cerne sobrenatural da doutrina que este sacerdote lhe expõe, precisamente porque lhe faltaria uma condição indispensável: a de ser um trabalhador” (Amigos de Deus, n. 58).

[11] Cfr.Amigos de Deus, n. 72.

[12] ´´E Cristo que passa, nn. 48 – 49. Cfr. Melendo, T. , La dignidad del trabajo, Rialp, Madri 1992.

[13] Francisco, Enc. Fratelli tutti,3/10/2020, n. 162.

Ángel Rodríguez Luño