O valor da afetividade

Este ano completam-se 50 anos da homilia de São Josemaria Escrivá por ocasião da festa do Sagrado Coração de Jesus: “O coração de Cristo, paz dos cristãos”. Este fato e o contexto do Ano da Misericórdia levou o Autor a refletir e aprofundar no tema da afetividade tal como o apresenta o Fundador do Opus Dei sobretudo nessa homilia.

O lugar da afetividade na vida do cristão

A dimensão afetiva da pessoa possui a mesma dignidade humana de que gozam a inteligência e a vontade, embora esteja numa ordem diferente. Nesta perspectiva decorre uma visão muito positiva da afetividade humana, afastada quer de uma absolutização dos sentimentos, quer de um falso espiritualismo.

A moral católica não vê com receio os sentimentos. Pelo contrário, dá uma importância fundamental a cuidar deles e a educá-los, pois têm uma enorme transcendência na vida moral. Orientar e educar a afetividade supõe um trabalho indispensável de purificação, porque o pecado original introduziu a desordem no coração de todos os homens.

Não te digo, Senhor, que me tires os afetos - porque com eles posso servir-te -, mas que os acrisoles.

Por isso, dizia São Josemaria: “Não te digo, Senhor, que me tires os afetos - porque com eles posso servir-te -, mas que os acrisoles.” (Forja, 750). Para isso, é preciso educar o coração, embora nem sempre seja uma tarefa fácil.

Conseguir esse equilíbrio na educação dos afetos nos ajudaria a precavermo-nos das duas enfermidades que costumam dar-se neste terreno: o perigo do sentimentalismo e o perigo do estoicismo. Perigos que, ao mesmo tempo que se contrapõem, costumam oscilar no tempo e no desenvolvimento das pessoas, como defeitos que se corrigem entre si, sem poder chegar nunca à harmonia. Para São Josemaria, o “sentimentalismo-pietismo” é uma caricatura do verdadeiro amor e piedade. Mas, se teme esse excesso enfermiço de sentimentos, preocupa-lhe mais que a afetividade perca o calor e a vivacidade do amor de Cristo, isto é, que o coração se torne seco, rígido.

“Se não aprendermos de Jesus, não amaremos nunca. Se pensarmos, como alguns, que conservar o coração limpo, digno de Deus, significa não misturá-lo, não contaminá-lo com afetos humanos, então o resultado lógico será tornarmo-nos insensíveis à dor dos outros. Só seremos capazes de uma caridade oficial, seca e sem alma; não da verdadeira caridade de Jesus Cristo, que é ternura, calor humano.” (É Cristo que passa, 167).

São Josemaria e o coração como problema

Em São Josemaria, a afetividade é “um problema necessário”. A sua experiência pessoal e pastoral leva-o a enfrentá-lo sem medos e sem subterfúgios, apesar de saber que está a mover-se em areias movediças.

Para isso, a primeira coisa é saber guardar corretamente o coração, como um tesouro recebido de Deus, como uma parte essencial da nossa imagem e semelhança divina. Era um tema frequentemente tratado na tradição ascética espanhola (Francisco de Osuna, Santa Teresa de Jesus) e francesa (J.B. Chautard).

O tema da “guarda do coração”, ou o “problema dos afetos na vida interior”, foi um tema frequente na vida de São Josemaria desde os começos. Nos seus Apontamentos íntimos, lê-se: “... que o meu pobre coração seja um paraíso, onde vivas Tu: que o meu Anjo da Guarda o guarde, com espada de fogo, com a qual purifique todos os afetos antes de que entrem no meu pobre coração” (1931); “o meu pobre coração está ansioso de ternura. «Se o teu olho te escandaliza, …». Não, não é preciso lançá-lo longe, porque não se pode viver sem coração…” (1932). “Sete ferrolhos no coração: pobre coração” (1935).

Podemos talvez concluir que a reflexão de São Josemaria em torno do mistério do coração humano foi especialmente viva nessa época. A solução a este problema que lhe preocupava encontrou-a no coração de Cristo: só o coração de Cristo, perfeitamente humano e divino, é capaz de harmonizar os desequilíbrios do coração humano.

O Coração de Jesus, paz dos corações

São Josemaria empreendeu o caminho para Deus a partir do relacionamento com a Humanidade Santíssima do Senhor, contemplando especialmente as cenas da sua Paixão.

Ele sublinha o carinho humano de Cristo como o verdadeiro modelo do afeto cristão para com os outros. Mais ainda: à hora de apreciar a pureza desse afeto, tanto dá que se trate de um amor de amizade, ou de um amor conjugal ou de um elevado amor místico.

Nesse relacionamento afetivo com o Coração de Cristo podem encontrar-se duas ideias-mãe: a) é com o mesmo coração que amamos a Deus e aos outros; b) a caridade, se é caridade em Cristo, é também carinho humano.

Nós não possuímos um coração para amar a Deus e outro para querer bem às criaturas

Com efeito, diz: “Nós não possuímos um coração para amar a Deus e outro para querer bem às criaturas: este nosso pobre coração, de carne, ama com um carinho humano que, se estiver unido ao amor de Cristo, é também sobrenatural” (Amigos de Deus, 229).

O ensinamento acerca de um único coração supõe que esse coração não se conforme com um papel secundário – só nalguns momentos, só para alguns assuntos, só para algumas pessoas –. Temos de amar com o mesmo coração, com todo o coração e sem medo ao coração, se queremos amar com o coração que Ele nos deu para O amar a Ele:

“Deus não nos declara que, em lugar do coração, nos dará uma vontade de puro espírito. Não. Dá-nos um coração, e um coração de carne, como o de Cristo. Eu não disponho de um coração para amar a Deus, e de outro para amar as pessoas da terra. Com o mesmo coração com que amei os meus pais e estimo os meus amigos, com esse mesmo coração amo a Cristo, e o Pai, e o Espírito Santo, e Santa Maria" (É Cristo que passa, 166).

Para São Josemaria, será o relacionamento com Cristo e a leitura meditada e contemplada do Evangelho que o ajudarão a formar a sua consciência ante os possíveis enredos do coração. Ele meditava com frequência muitos momentos em que se manifesta como é o amor de Cristo, para poder concluir como São Paulo: “Tende em vós os mesmos sentimentos de Cristo Jesus” (Flp 2, 5). Jesus tinha “um coração de carne como o nosso” (É Cristo que passa, 179). Esse modo tão humano de amar manifesta melhor a sua divindade (cf. É Cristo que passa, 109).

Deste modo, São Josemaria deu paz a muitas pessoas que temiam estar a exceder-se nas suas manifestações de carinho. Sem dúvida, podia dar-se esse excesso; mas pior era a falta de carinho devido. Ilustrava esta necessidade, narrando a queixa resignada de uma doente: “Aqui tratam-me com caridade, mas minha mãe cuidava de mim com carinho” (Amigos de Deus, 229).

“É uma pena não ter coração. São uns infelizes os que não aprenderam nunca a amar com ternura. Nós, os cristãos, estamos enamorados do Amor: o Senhor não nos quer secos, rígidos, como uma matéria inerte. Ele nos quer impregnados do seu carinho! ” (Amigos de Deus, 183).

Conclusão

A conclusão que tiramos, contemplando a vida e os escritos de São Josemaria (especialmente a homilia sobre o Coração de Jesus), é que a sua vida de piedade, o seu relacionamento com a Humanidade Santíssima de Cristo, fazem com que possa pregar sem temores sobre a necessidade de amar humanamente a Deus e aos outros, “com todo o coração de carne”.

A crise atual no mundo dos afetos, essa deficiência de ternura e de carinho que transparece nos nossos dias e a que tem feito frequente referência o Papa Francisco, tem de ser superada em todos os corações, tanto de homens como de mulheres. Também São Josemaria tomou consciência de que, precisamente por esse modo muito mais afetivo que a mulher tem de viver o amor, lhe corresponde a ela mostrar e ensinar ao homem – não só na vida familiar – como é necessário o relacionamento afetivo e carinhoso nas relações com os outros e com Deus:

“A mulher está destinada a levar à família, à sociedade, à Igreja, algo de característico, que lhe é próprio e que só ela pode dar: a sua delicada ternura, a sua generosidade incansável, o seu amor pelo concreto, a sua agudeza de engenho, a sua capacidade de intuição, a sua piedade profunda e simples, a sua tenacidade... A feminilidade não é autêntica se não reconhece a formosura dessa contribuição insubstituível, e se não a inserir na própria vida” (Entrevistas com Mons. Josemaria Escrivá, 87).

Adaptação de um artigo do padre Antonio Schlatter, feita pelo padre Migue Falcão. Texto original: .