O que nos diz Nossa Senhora Aparecida?

Mons. Vicente Ancona Lopez escreveu este artigo sobre a devoção à Nossa Senhora Aparecida, no qual reflete sobre o significado da aparição no Vale do Paraíba para o povo brasileiro.

A devoção a Nossa Senhora Aparecida tem um papel muito relevante na história da Igreja no Brasil. A liturgia da festa da Padroeira ressalta essa dimensão histórica na oração coleta:

Ó Deus todo poderoso, ao rendermos culto à Imaculada Conceição de Maria, Mãe de Deus e Senhora nossa, concedei que o povo brasileiro, fiel à sua vocação e vivendo na paz e na justiça, possa chegar um dia à pátria definitiva.

Sim, a liturgia afirma que o Brasil tem uma vocação! Lex orandi, Lex credendi*! Desde a sua descoberta em 1500, os reis da dinastia de Avis projetaram fazer do Brasil uma grande nação cristã. Aquela primeira evangelização levada a cabo por franciscanos, jesuítas, carmelitas, etc. foi muito profunda e a fé cristã faz parte do DNA do nosso país.

São Josemaria visita o Santuário de Nossa Senhora Aparecida, durante sua passagem pelo Brasil, no ano de 1974.

São Josemaria, entusiasmado e surpreendido com a qualidade humana e a sensibilidade cristã dos brasileiros, dizia quando visitou o Brasil e o Santuário da Aparecida em 1974 que o nosso povo estava chamado a ser um grande povo missionário. De fato, transcorridos mais de 40 anos de sua vinda ao Brasil é já um fato de que há um bom contingente de brasileiras e brasileiros (sacerdotes, leigos, religiosos, etc.) que trabalham com entusiasmo pela Igreja nos cinco continentes.

Não é descabido traçar um paralelismo entre o papel de Nossa Senhora Aparecida na história do Brasil e Nossa Senhora de Guadalupe no México. É fato histórico que o milagre de Guadalupe, na aurora da colonização da América, teve enorme influência na conversão dos astecas e na configuração católica da América espanhola.

A devoção à Aparecida veio catalisar e confirmar essa identidade católica do país

Paralelamente, guardando as distâncias, no momento em que a cultura brasileira começava a ter a sua própria personalidade, no ano 1717, quando já se dava aqui essa mistura de europeus, índios e africanos, que configuram a amálgama brasileira, a devoção à Aparecida veio catalisar e confirmar essa identidade católica do país projetada e implantada por Portugal e ameaçada na altura por invasores calvinistas e huguenotes procedentes da Europa.

Mosaico de Calúdio Pastro no Santuário nacional de Aparecida: representa o momento em que os pescadores encontraram corpo e cabeça da imagem de Nossa Senhora.

Quando o pescador João Alves lançou a rede no Rio Paraíba e achou o corpo da imagem, e depois lançou de novo e encontrou a cabeça... vendo o perfeito encaixe das duas peças, ele gritou com entusiasmo para os outros dois pescadores, seu pai Domingos e Felipe Pedroso: “A Virgem Maria está conosco!”

Com o crescimento da devoção a Aparecida, esse grito pode ser aplicado ao Brasil como nação.

É verdade! Nossa Senhora Aparecida está conosco e protege o Brasil!

Nossa Senhora quer que saibamos que Ela tem desígnios especiais para o nosso país e deseja que contemos com sua presença em Aparecida para ajudar-nos a que se cumpram os planos de seu Filho e as bênçãos de Deus Pai para nós brasileiros.

O próprio prodígio do encontro nas redes de João Alves do corpo da imagem antes e da cabeça depois, encaixando-se perfeitamente, e seguido pela pesca abundante é muito significativo.

No corpo encontra-se o coração. E na cabeça a racionalidade.

Nossa Senhora parece querer nos mostrar com esse prodígio que o emocional pode ter excessivo peso na nossa idiossincrasia.

O povo brasileiro é um povo fraterno e de coração generoso e de certeira intuição sapiencial, mas pode faltar-nos mais lucidez racional, projetos a longo prazo e estratégia organizativa.

Somos um povo de grande fé, e essa fé impressiona todos os que visitam Aparecida.

O Cardeal Bergoglio – hoje Papa Francisco - quando foi a Aparecida, ficou encantado com a fé simples e profunda das pessoas.

O Cardeal Bergoglio – hoje Papa Francisco - quando, passou dez dias em Aparecida em 2007, ficou encantado com a fé simples e profunda das pessoas.

Também São Josemaria ao regressar de Aparecida comentou: "Foi um grande consolo para mim ver o amor e a fé com que vocês rezavam lá em cima, naquele santuário. A devoção lá é verdadeiramente espiritual, porque quase não se vê a imagem. Mesmo chegando perto, quase não se vê!".

Viu ali uma fé “quimicamente pura” pois não há na imagem nada de atraente que possa mover o sentimento dos devotos.

Não será precisamente este o sentido da mensagem do prodígio do encontro da imagem sem a cabeça e depois do encaixe perfeito?

Corpo e cabeça. Coração e racionalidade. Nossa Senhora parece querer nos mostrar que o coração precisa ser comandado pela cabeça. A nossa capacidade de amar e sensibilidade religiosa deve ser equilibrada com um conhecimento da fé.

A nossa capacidade de amar e grande sensibilidade religiosa, que poderia ficar estacionada numa piedade sentimental e emotiva, deve ser equilibrada com um maior aprofundamento doutrinal e uma interiorização racional e consistente da nossa fé católica. O coração precisa ser comandado pela cabeça. Nessa altura a “pesca” será abundante. Todos nós, devotos de Aparecida, seremos capazes de transmitir com nossa presença em todos os recantos do país a alegria do Evangelho, levando-a também a outras nações.

Umas palavras de São Josemaria em Sulco descrevem essa realidade que podemos tomar como dirigidas a nós brasileiros: Na tua vida, há duas peças que não se encaixam: a cabeça e o sentimento.

A inteligência - iluminada pela fé - mostra-te claramente não só o caminho, mas a diferença entre a maneira heroica e a maneira estúpida de percorrê-lo. Sobretudo, põe diante de ti a grandeza e a formosura divina das tarefas que a Trindade deixa em nossas mãos.

O sentimento, pelo contrário, apega-se a tudo o que desprezas, mesmo que continues a considerá-lo desprezível (Sulco 166).

A cabeça que se ajusta é a racionalização das paixões pela fé. Essa racionalização obtém-se pela meditação, leitura e com uma maior cultura humana e católica. É o desafio de uma formação mais profunda, que nossos bispos não cessam de apontar.

Papa Bento XVI durante sua passagem pelo Santuário de Nossa Senhora Aparecida, no ano de 2007.

Nessa mesma linha o Papa Bento XVI, na sua memorável visita a Aparecida no dia 12-V-07 nos dizia: O Papa veio a Aparecida com viva alegria para vos dizer primeiramente: "Permanecei na escola de Maria". Inspirai-vos nos seus ensinamentos, procurai acolher e guardar dentro do coração as luzes que Ela, por mandato divino, vos envia lá do alto.

Foi para todos nós motivo de alegria que o Papa Francisco tenha colocado a imagem da Aparecida nos jardins do Vaticano como sinal de devoção à nossa Rainha e Padroeira. A união com o Santo Padre é sinal de que a devoção do povo brasileiro à nossa Mãe Aparecida é uma devoção “com a cabeça no lugar”. Unidos a Ela nos unimos ao Santo Padre, Cabeça da Igreja e garantia da integridade da nossa fé católica.

Mons. Vicente Ancona Lopez


* O adágio antigo: «Lex orandi, lex credendi – A lei da oração é a lei da fé» (Ou: «Legem credendi lex statuat supplicandi – A lei da fé é determinada pela lei da oração» (Próspero de Aquitânia [século V]) indica que a Igreja crê conforme reza. A liturgia é um elemento constitutivo da Tradição santa e viva (cfr. Catecismo da Igreja Católica 1124).