Jerusalém: na intimidade do Cenáculo

Antes da festa da Páscoa, sabendo Jesus que tinha chegado a sua hora, hora de passar deste mundo para o Pai, tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim.​ (Jo 13, 1). Estas palavras solenes de São João, que são familiares aos nossos ouvidos, introduzem-nos na intimidade do Cenáculo.

Jerusalém no ano 70 e Cidade Antiga na atualidade. Gráfico: J. Gil

Antes da festa da Páscoa, sabendo Jesus que tinha chegado a sua hora, hora de passar deste mundo para o Pai, tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim[1]. Estas palavras solenes de São João, que são familiares aos nossos ouvidos, introduzem-nos na intimidade do Cenáculo.

Onde queres que façamos os preparativos para comeres a páscoa?[2], tinham perguntado os discípulos. Ide à cidade. Um homem carregando uma bilha de água virá ao vosso encontro. Segui-o e dizei ao dono da casa em que ele entrar: “O Mestre manda perguntar: Onde está a sala em que posso comer a ceia pascal com os meus discípulos?” Ele, então, vos mostrará, no andar de cima, uma grande sala, arrumada. Lá fareis os preparativos para nós![3].

Conhecemos os fatos que aconteceram durante Última Ceia do Senhor com os Seus discípulos: a instituição da Eucaristia e dos Apóstolos como sacerdotes da Nova Aliança; a discussão entre eles sobre quem se considerava o maior; o anúncio da traição de Judas, do abandono dos discípulos e das negações de Pedro: o anúncio do Mandamento Novo e o lava-pés; o discurso de despedida e a oração sacerdotal de Jesus…

O Cenáculo já seria digno de veneração só pelo que aconteceu dentro das suas paredes naquela noite, mas foi também ali que Jesus ressuscitado apareceu em duas ocasiões aos Apóstolos, que tinham se escondido dentro com as portas fechadas com medo dos judeus[4]. Na segunda vez, Tomé retificou a sua incredulidade com um ato de fé na divindade de Jesus: Meu Senhor e meu Deus![5]. Os Atos dos Apóstolos transmitiram-nos também que a Igreja, nas suas origens, se reunia no Cenáculo, onde costumavam permanecer. Eram eles: Pedro e João, Tiago, André, Filipe, Tomé, Bartolomeu, Mateus, Tiago, filho de Alfeu, Simão, o Zelador, e Judas, irmão de Tiago. Todos eles perseveravam unanimemente na oração, juntamente com as mulheres, entre elas Maria, mãe de Jesus, e os irmãos dele[6]. No dia de Pentecostes, receberam o Espírito Santo, que os estimulou a partirem para pregar a Boa Nova.

Os evangelistas não nos fornecem dados que permitam identificar este lugar, mas a Tradição situa-o no extremo sudoeste de Jerusalém, sobre uma colina que começou a chamar-se Sião somente na época cristã. Originalmente, este nome aplicava-se à fortaleza jebuseia que Davi conquistou; depois, ao monte do Templo, onde se guardava a Arca da Aliança; e mais tarde, nos salmos e nos livros proféticos da Bíblia, a toda a cidade e seus habitantes. Depois do desterro da Babilônia, o termo adquiriu um significado escatológico e messiânico, para indicar a origem da nossa salvação. Com base neste sentido espiritual, quando o Templo foi destruído no ano 70, a primeira comunidade cristã aplicou-o ao monte onde se encontrava o Cenáculo, pela sua relação com o nascimento da Igreja.

Recebemos o testemunho desta tradição através de Santo Epifânio de Salamina, que viveu em finais do século IV, foi monge na Palestina e bispo em Chipre. Relata que o imperador Adriano, quando foi ao Oriente no ano de 138, “encontrou Jerusalém completamente arrasada e o Templo de Deus destruído e profanado, com exceção de uns poucos edifícios e da pequena igreja dos cristãos, que se encontrava no lugar do Cenáculo, para onde os discípulos foram depois de regressar do monte das Oliveiras, após a subida aos céus do Salvador. Estava construída na zona de Sião que sobreviveu à cidade, com alguns edifícios perto de Sião e sete sinagogas, que perduraram no monte como cabanas; parece que só uma destas se conservou até à época do bispo Máximo e do imperador Constantino”[7].

Este testemunho coincide com outros do século IV: o que foi transmitido por Eusébio de Cesareia, com um elenco de vinte e nove bispos com sede em Sião desde a era apostólica até ao seu tempo; o peregrino anônimo de Bordeaux, que viu ainda a última das sete sinagogas; São Cirilo de Jerusalém, que se refere à igreja superior em que se recordava a vinda do Espírito Santo; e a peregrina Egéria, que descreve uma liturgia celebrada ali em memória das aparições do Senhor ressuscitado.

Por diversas fontes históricas, litúrgicas e arqueológicas, sabemos que durante a segunda metade do século IV a pequena igreja foi substituída por uma grande basílica, chamada Santa Sião, e considerada a mãe de todas as igrejas. Além do Cenáculo, incluía o lugar da Dormição da Virgem, que a tradição situava numa casa próxima; também conservava a coluna da flagelação e as relíquias de Santo Estevão, e no dia 26 de Dezembro comemorava-se ali o rei Davi e São Tiago, o primeiro bispo de Jerusalém. Conhece-se pouco do traçado deste templo, que foi incendiado pelos persas no século VII, restaurado posteriormente e de novo destruído pelos árabes.

Quando os cruzados chegaram à Terra Santa, no século XII, reconstruíram a basílica e deram-lhe o nome de Santa Maria do Monte Sião. Na nave sul da igreja estava o Cenáculo, que continuava a ter dois andares, cada um dividido em duas capelas: no superior, as dedicadas à instituição da Eucaristia e à vinda do Espírito Santo; no inferior, a do lava-pés e a das aparições de Jesus ressuscitado. Nesse andar colocou-se o sarcófago – monumento funerário no qual não está o cadáver da pessoa a quem é dedicado – em honra de Davi. Reconquistada a Cidade Santa por Saladino em 1187, a basílica não sofreu danos, e inclusive eram permitidas as peregrinações e o culto. Contudo, esta situação não durou muito: em 1244, a igreja foi definitivamente destruída e só se salvou o Cenáculo, cujos restos chegaram até nós.

A sala gótica atual data do século XIV e deve-se à restauração realizada pelos franciscanos, os seus legítimos donos desde 1342. Os freis haviam tomado conta do santuário sete anos antes e edificado um convento junto do lado sul. Na mesma data, por bula papal, ficou constituída a Custódia da Terra Santa e foi-lhes cedida a propriedade do Santo Sepulcro e do Cenáculo pelos reis de Nápoles, que por sua vez a tinham adquirido ao sultão do Egito. Não sem dificuldades, os franciscanos viveram em Sião durante mais de dois séculos, até que foram expulsos pela autoridade turca em 1551. Já antes, em 1524, lhes tinha sido usurpado o Cenáculo, que foi convertido em mesquita com o argumento de que ali se encontraria enterrado o rei Davi, considerado profeta pelos muçulmanos. Assim permaneceu até 1948, quando passou para as mãos do estado de Israel, que o administra desde então.

O acesso ao Cenáculo é através de um edifício anexo, subindo uma escadaria interior e atravessando um terraço a céu aberto. Trata-se de uma sala de uns 15 metros de comprimento e 10 de largura, praticamente sem adornos nem mobiliário. Várias pilastras nas paredes e duas colunas no centro, com capitéis antigos reutilizados, sustentam um teto em abóbada. Nos fechos da abóbada ficaram restos de relevos com figuras de animais; entre os quais é visível um cordeiro.

Capitel adornado com o motivo eucarístico do pelicano que alimenta as suas crias. E cordeiro que se encontra num dos fechos das abóbadas.

Alguns acréscimos são evidentes, como a construção feita em 1920, na parede central, para a oração islâmica, que tapa uma das três janelas, ou um baldaquino da época turca sobre a escada que conduz ao nível inferior. Este dossel apoia-se numa pequena coluna cujo capitel é cristão, pois está adornada com o motivo eucarístico do pelicano que alimenta as suas crias. A parede da esquerda conserva partes que remontam à era bizantina; através de uma escada e de uma porta, sobe-se à pequena sala onde se recorda a vinda do Espírito Santo. No lado oposto à entrada, há uma saída para outro terraço, que por sua vez comunica com o telhado e dá para o claustro do convento franciscano do século XIV.

Atualmente não é possível o culto no Cenáculo. Somente São João Paulo II teve o privilégio de celebrar a Santa Missa nesta sala, em 23 de Março de 2000. Quando Bento XVI foi à Terra Santa em Maio de 2009, rezou ali o Regina Coeli com os Bispos do país. Devido à existência do sarcófago em honra de Davi, que se venerava como o túmulo do rei bíblico, muitos judeus vão ao piso inferior para rezar diante desse monumento.

A presença cristã no monte Sião sobrevive na basílica da Dormição de Nossa Senhora – que inclui uma abadia beneditina – e o convento de São Francisco. A primeira foi construída em 1910 em terrenos que Guilherme II, imperador da Alemanha conseguiu. A cúpula do santuário, com um capitel muito esbelto, é visível de vários pontos da cidade. No convento franciscano, fundado em 1936, encontra-se o “Cenacolino” ou igreja do Cenáculo, o lugar de culto mais próximo da sala da última Ceia.

Dom Álvaro no Cenáculo

Nesta capela, Dom Álvaro celebrou a Santa Missa pela última vez em sua vida, na manhã de 22 de março de 1994. Dom Javier Echevarría recordava depois alguns detalhes desse dia, no qual o primeiro sucessor de São Josemaria esteve intensamente recolhido em oração: “Fiquei impressionado pela unção com a qual ele revestiu: estava concentrado, comovido. Ele beijou o peitoral muito profundamente antes de colocar a casula. Depois, pegou o solidéu, também com autêntica unção, para colocá-lo antes de sair”[8]. Alguns poucos fiéis da Obra participaram da Missa, mas Dom Javier ressaltou que “Dom Álvaro celebrou lá pensando em todos”. E continuava: “Ele estava muito consciente da instituição da Eucaristia e do sacerdócio, víamos que celebrava com muita devoção. Percebia-se o cansaço, mas talvez também a emoção de estar naquele lugar santo. Posso assegurar que ele viveu esses momentos com verdadeira intensidade, com verdadeira loucura de amor. Também pensou na reunião dos Apóstolos com Nossa Senhora no Cenáculo, e que daí, partiu Pedro para pregar ao povo, depois da vinda do Espírito Santo”[9].

O que distingue esta noite de todas as outras noites?

Reparai agora no Mestre reunido com os seus discípulos, na intimidade do Cenáculo. Aproxima-se o momento da sua Paixão, e o Coração de Cristo, rodeado daqueles a quem ama, estala em labaredas inefáveis[10]. Ardentemente tinha desejado que chegasse esta Páscoa[11], a mais importante das festas anuais de Israel, na qual se revive a libertação da escravidão no Egito. Estava unida a outra celebração, a dos Ázimos, lembrando os pães sem fermento que o povo levou na sua fuga precipitada do país do Nilo. Ainda que a cerimônia principal daquelas festas fosse uma ceia familiar, esta possuía um forte caráter religioso: “era a comemoração do passado, mas, ao mesmo tempo, também memória profética, quer dizer, anúncio da libertação futura”[12].

A sala do Cenáculo conserva a arquitetura gótica com que foi restaurada no séc. XIV.

Durante essa celebração, o momento relevante era o relato da Páscoa ou hagadá pascal. Começava com uma pergunta do filho mais novo ao pai:

- O que distingue esta noite de todas as noites?

A resposta era uma oportunidade para narrar detalhadamente a saída do Egito. O chefe da família tomava a palavra na primeira pessoa, para simbolizar que não só se recordavam aqueles fatos, mas que se faziam presentes no ritual. Ao terminar, entoava-se um grande cântico de louvor, composto pelos salmos 113 e 114, e bebia-se uma taça de vinho, chamada hagadá. Depois, abençoava-se a mesa, começando pelo pão ázimo. A pessoa que presidia comia-o e dava um pedaço a cada um com a carne do cordeiro.

Uma vez comida a ceia, retiravam-se os pratos e todos lavavam as mãos para continuar a sobremesa. A conclusão solene começava servindo-se o cálice da bênção, taça que continha vinho misturado com água. Antes de bebê-lo, quem presidia, de pé, recitava uma longa ação de graças.

Ao celebrar a Última Ceia com os Apóstolos no contexto do antigo banquete pascal, o Senhor transformou-o e deu-lhe o seu sentido definitivo: “Com efeito, a passagem de Jesus a seu Pai por sua Morte e sua Ressurreição, a Páscoa nova, é antecipada na ceia e celebrada na Eucaristia que realiza a Páscoa judaica e antecipa a Páscoa final da Igreja na glória do Reino”[13]. Quando o Senhor instituiu a Sagrada Eucaristia, na Última Ceia, era de noite(...). Caía a noite sobre o mundo, porque os velhos ritos, os antigos sinais da misericórdia infinita de Deus para com a humanidade se iam realizar plenamente, abrindo caminho a um verdadeiro amanhecer: a nova Páscoa. A Eucaristia foi instituída durante a noite, preparando de antemão a manhã da Ressurreição[14].

Na intimidade do Cenáculo, Jesus fez algo de surpreendente, totalmente inédito: tomando o pão, deu graças, partiu-o e deu-o dizendo: Isto é o meu corpo, que é dado por vós. Fazei isto em memória de mim[15].

As suas palavras exprimem a profunda novidade desta ceia em relação às celebrações pascais anteriores. Quando deu o pão ázimo aos discípulos, não lhes entregou pão, mas sim uma realidade diferente: isto é o meu Corpo. “No pão repartido, o Senhor distribui-Se a Si próprio (…). Dando graças e abençoando, Jesus transforma o pão: já não dá pão terreno, mas a comunhão consigo mesmo”[16]. E ao mesmo tempo que instituiu a Eucaristia, deu aos Apóstolos o poder de a perpetuar, pelo sacerdócio.

Também com o cálice Jesus fez algo de singular relevância: fez o mesmo com o cálice, dizendo: Este cálice é a nova aliança no meu sangue, que é derramado por vós[17].

Diante deste mistério, São João Paulo II dizia: “O que mais Jesus podia fazer por nós? Verdadeiramente, na Eucaristia mostra-nos um amor que vai ‘ao extremo’ (Jo 13, 1), um amor que não conhece medida. Este aspecto da caridade universal do Sacramento eucarístico fundamenta-se nas mesmas palavras do Salvador. Ao instituí-lo, não se limitou a dizer ‘Este é o meu corpo’, ‘este cálice é a Nova Aliança no meu sangue’, mas sim que acrescentou ‘entregue por vós… derramado por vós’ (Lc 22, 19-20). Não afirmou somente que o que lhes dava a comer e a beber era o seu corpo e o seu sangue, mas manifestou-lhes o seu valor sacrificial, fazendo presente de modo sacramental o seu sacrifício, que cumpriria depois na cruz algumas horas mais tarde, para a salvação de todos”[18].

Bento XVI, dirigindo-se aos Bispos da Terra Santa no próprio lugar da Última Ceia, ensinava: “No Cenáculo, o mistério de graça e de salvação, do qual somos destinatários e inclusive arautos e ministros, só pode ser manifestado em termos de amor”[19]: o de Deus, que nos amou primeiro e ficou realmente presente na Eucaristia, e o da nossa resposta, que nos leva a entregar-nos generosamente ao Senhor e aos outros.

Não entendo como se pode viver cristãmente sem sentir a necessidade de uma amizade constante com Jesus na Palavra e no Pão, na oração e na Eucaristia. E entendo perfeitamente que, ao longo dos séculos, as sucessivas gerações de fiéis tenham ido concretizando essa piedade eucarística: umas vezes, com práticas multitudinárias, professando publicamente a sua fé; outras, com gestos silenciosos e calados, na sagrada paz do templo ou na intimidade do coração.

Antes de mais, devemos amar a Santa Missa, que tem que ser o centro do nosso dia. Se vivemos bem a Missa, como não havemos de continuar depois o resto da jornada com o pensamento no Senhor, com o desejo irreprimível de não nos afastarmos da sua presença, para trabalhar como Ele trabalhava e amar como Ele amava? Aprendemos então a agradecer ao Senhor mais outra delicadeza: que não tenha querido limitar a sua presença ao instante do Sacrifício do Altar, mas tenha decidido permanecer na Hóstia Santa que se reserva no Tabernáculo, no Sacrário.

Devo dizer que, para mim, o Sacrário foi sempre Betânia, o lugar tranquilo e aprazível onde está Cristo, onde lhe podemos contar as nossas preocupações, nossos sofrimentos, nossos anseios e nossas alegrias, com a mesma simplicidade e naturalidade com que lhe falavam aqueles seus amigos Marta, Maria e Lázaro. Por isso, ao percorrer as ruas de uma cidade ou de uma aldeia, alegra-me descobrir, mesmo de longe, a silhueta de uma igreja: é um novo Sacrário, uma nova ocasião de deixar que a alma se escape para estar em desejo junto do Senhor Sacramentado[20].


[1] Jo 13, 1

[2] Mc 14,12.

[3] Mc 14, 13-15.

[4] Cf. Jo 20, 19-29.

[5] Jo 20, 28.

[6] At 1, 13-14

[7] Santo Epifânio de Salamina, De mensuris et ponderibus, 14.

[8] Javier Echevarría, Palavras publicadas em Crónica, 1994, p. 391 (AGP, biblioteca, P01).

[9] Ibid., pp. 391-392.

[10] Amigos de Deus, 222

[11] Cf. Lc 22, 15.

[12] Bento XVI, Exort.apost Sacramentum caritatis, 10

[13] Catecismo da Igreja Católica, 1340.

[14] É Cristo que passa, 155.

[15] Lc 22, 19.

[16] Bento XVI Homilia da Missa da Ceia do Senhor, 9-IV-2009.

[17] Lc 22, 20

[18] São João Paulo II, Litt. Enc. Ecclesia de Eucharistia, 17-IV-2003, 11-12.

[19] Bento XVI, Recitação da Regina Coeli com os Ordinários da Terra Santa.

[20] É Cristo que passa, 154