Cidadania no séc. XXI: Os desafios da liberdade

Publicamos a conferência que Paloma Durán, catedrática de Filosofia do Direito, proferiu no Congresso UNIV 2011. Esta conferência trata dos desafios da liberdade no séc. XXI e destaca a importância da liberdade para melhorar a sociedade em que vivemos.

Em primeiro lugar gostaria de agradecer às pessoas e entidades que organizaram este Congresso UNIV 2011 por terem me convidado a participar e pela oportunidade de ter este debate com universitárias de todo o mundo.

Esta universalidade é o ponto de partida perfeito para falar do tema que me propuseram: A cidadania no início do séc. XXI, não isenta de desafios mas também de dificuldades. Dizia Jefferson no diálogo entre a cabeça e o coração que recolhe na sua Autobiografia: nada que nos possa ser tirado é realmente nosso, e utilizava esta referência como argumento para a defesa da liberdade intelectual.

Parece-me que não atraiçoo o seu pensamento se utilizo esta afirmação como estribilho e fundamento de toda a minha intervenção. A liberdade interior é a pauta da nossa conduta, é provavelmente o único lugar vedado que nos confirma como seres livres e que explica a abordagem à cidadania que gostaria de propor.

A liberdade requer a verificação de alguns pressupostos que passam pela responsabilidade pessoal, a qual tem uma dupla dimensão: na conduta individual e na conduta de cada ser humano no grupo social.

Clara Campoamor, deputada espanhola, defensora do sufrágio universal e, por conseguinte, do reconhecimento do direito de voto para todas as pessoas, afirmava que a única maneira de amadurecer no exercício da liberdade é caminhar dentro dela. Mas esse exercício exige uma “educação da liberdade” porque se esta não existir, corre-se o risco, já detectado por Aristóteles, de identificar liberdade com libertinagem.

Não me parece arriscado afirmar que na Grécia antiga a lição oferecida sobre o exercício da liberdade e a democracia passa necessariamente – como indica Jacqueline Romilly – por uma formação e educação de qualidade, não tanto política, mas cívica, concordando com Platão que, ao inculcar o sentido dos valores autênticos, teremos pessoas de bem e bons cidadãos. Analisar o desafio que é o exercício da liberdade não é tarefa fácil. Para abordar o tema irei estruturar esta intervenção em três partes.

Na primeira parte gostaria de apresentar um retrato da sociedade atual, na segunda analisar o sentido da liberdade e o seu exercício, e na última gostaria de me deter no que significa a cidadania como desafio e como exercício da própria liberdade.

A sociedade da primeira década do séc. XXI

Considero que este é um título ambicioso sobretudo porque qualquer diagnóstico social global requer muitos matizes. Ainda que, como afirmava H. Arendt, atualmente qualquer coisa que acontecer em um país é possível em qualquer outro. A situação na sociedade ocidental apresenta um perfil diferente daquele das sociedades orientais e, sem dúvida, as sociedades dos países em desenvolvimento têm características diferentes daquelas dos países desenvolvidos.

Mas, apesar das diferenças culturais e históricas, mantém-se uma pergunta comum a todo o ser humano, e que é se, no começo deste novo milênio, é possível alcançar uma filosofia universalmente válida que possa expressar uma concepção comum a todos os seres humanos. A necessidade de liberdade e do seu exercício parece universal. Neste sentido, Bento XVI refere explicitamente que se fizeram aquisições importantes que podem aspirar a ter uma validade universal, ainda que a sua concretização não seja idêntica em todos os contextos históricos: Por exemplo, o fato de a religião não poder ser imposta pelo Estado e só se pode aceitar livremente o respeito pelos direitos fundamentais da pessoa, iguais para todos, com a separação de poderes e da fiscalização do poder.

A sociedade em que vivemos é a melhor no sentido de que é aquela em que nos cabe viver. Por essa razão não vale a pena fazer balanços apocalípticos da situação atual, mas sim observar as suas luzes e sombras. E, sobretudo, questionar e debater o papel que cada um deve desempenhar neste jogo vital, aceitando, como nos lembra o Romano Pontífice, que avanços importantes foram feitos ainda que existam desafios pendentes.

No tema que nos ocupa, parece-me importante considerar duas questões básicas: qual a situação da liberdade pessoal e em que termos se entende a cidadania ou a atitude vital de quem se sente responsável por este mundo e pela sociedade em vive.

a) Sobre a liberdade

Parto do princípio de que a primeira pergunta que me poderiam colocar é o que se entende por liberdade, pergunta que historicamente tem feito correr rios de tinta e a que dificilmente posso responder em poucas páginas. Mas o que é fácil de constatar, no dia-a-dia, é o contraste ou a contradição a que se referia Arendt, entre a consciência de que somos livres e responsáveis, e que a experiência no mundo exterior em que as orientações são causais, ou seja, obedecem ao princípio da causalidade.

Será a liberdade uma miragem? Contrariamente a uma primeira resposta fácil, a liberdade se apresenta a nós no espaço político não como um problema, mas sim como um fato, e em nenhum caso, nos mesmos termos, de outras questões da vida política como a justiça ou o poder. A razão de ser da política é a liberdade e o campo a que se aplica é o da ação. Precisamente, esta forma da liberdade manifesta-se na dimensão “externa” da pessoa diferenciando-a da liberdade interior a que antes me referia e que é justamente o espaço em que a pessoa pode “escapar” da possível coação externa e sentir-se verdadeiramente “livre”.

De modo que a “ciência da vida” (continua Arendt) é saber distinguir entre esse âmbito exterior no qual nem todo o ser individual tem poder e o interior, no qual cada um dispõe conforme entende. Contudo, esta aproximação apresenta algumas dificuldades no tema que nos ocupa. Sobretudo, porque o indivíduo não divide o seu ser em função do âmbito em que atua, mas mantém a sua unidade e identidade, o que levaria a afirmar que o exercício da liberdade não pode ser separado na sua dimensão interna e externa ainda que, na prática, estejam em campos diferentes.

Assumir a separação levaria, em todo o caso, a aceitar as fórmulas vigentes de manifestação da liberdade através de um sistema democrático, aceitando a denominada democracia formal na qual prima o processo de tomada de decisões sobre o conteúdo das mesmas, de modo que são as maiorias, no caso parlamentares, que assumem o protagonismo nesse processo, prescindindo da liberdade individual que é a única capaz de questionar a justiça ou injustiça das decisões tomadas.

O séc. XX deixou-nos uma herança de benefícios e inconvenientes. A luta pela igualdade, a defesa dos direitos e liberdades individuais, o reconhecimento da autodeterminação dos povos, o processo de democratização de todas as sociedades, a informação global, os avanços científicos e as novas tecnologias; a proteção do ambiente, a recuperação das liberdades civis, o reconhecimento dos direitos sociais e um sem fim de outros fatores positivos que, sem dúvida, melhoraram a sociedade humana em que vivemos.

O reconhecimento da igualdade de todos os seres humanos e, consequentemente, da sua dignidade, eliminando o fator histórico do condicionalismo da posição social, é a mudança que leva Spaeman a aplaudir a justiça pelo reconhecimento do respeito a cada ser humano pelo fato de o ser.

Nesse mesmo séculocometeram-se os maiores atropelos e as maiores barbaridades contra o ser humano. Esta dicotomia abre a questão do erro da separação entre a dimensão externa e interna do exercício da liberdade. Provavelmente não se pode falar de uma verdade política, mas pode explorar-se a dimensão da liberdade como verdade para todo o ser humano, na medida em que a liberdade é uma característica da vontade que diferencia o ser humano de tudo o mais que existe e que levou João Paulo II a afirmar que a liberdade é a medida do amor de que somos capazes.

Foi precisamente em 1981, em um dos primeiros encontros de João Paulo II com o Congresso UNIV, que o Papa propôs o processo da liberdade como uma tarefa pessoal, a que chamou de esforço de liberdade que abre à consciência a responsabilidade moral de cada ser humano. A tarefa que se abre ante vós – dizia João Paulo II – é sobretudo esta: que a experiência da liberdade se fundamente e se aprofunde no terreno daquelas verdades últimas que explicam ao homem o sentido da própria existência e do seu destino,e determinam a razão das suas escolhas.

De fato, a vida exemplar de João Paulo II confirma o seu empenho neste esforço levou a Igreja o reconhecesse como beato no dia 1 de Maio, aqui em Roma com o apoio e o afeto do mundo inteiro e de pessoas com variadíssimas posições ideológicas e religiosas. O certo é que, como também afirmava João Paulo II, levando em consideração o contraste vivido durante o século XX, impulsionou o atual milênio para uma proposta de liberdade identificada e reduzida - porque confunde liberdade com a exclusiva capacidade de escolha, desprovida de referências.

Como já afirmei, a liberdade é uma característica da vontade, mas esta, não é arbitrária, mas encontra-se condicionada pelo próprio conhecimento. De modo que, quanto mais bem formada estiver a pessoa, mais capacidade tem a sua vontade, e, consequentemente, mais perfeito pode ser o exercício da liberdade. E isso significa que a liberdade não supõe uma escolha neutra ou sem limites.

É mais livre o ser humano que sabe escolher o melhor, isto é, aquilo que mais se adequa à sua condição e que o faz identificar-se mais com a sua realização como ser humano. Por isso, a ligação entre a liberdade, a educação e a formação é direta.

Não com qualquer educação, mas com aquela que responde melhor à condição humana e à própria dignidade. Quem recebe uma educação que prescinde do significado da própria pessoa não terá recursos suficientes para escolher livremente aquilo que pode aperfeiçoá-la.

E, por isso, não saberá dar resposta aos desafios que a sociedade lhe coloca e a tudo o que encontrar no seu caminho e que escapar às suas decisões. Ao contrário, a educação para ser melhor permitirá que a responsabilidade não seja sempre assacada aos outros, mas à minha resposta pessoal diante de tudo o que me acontece. Por esta razão, a verdadeira liberdade é sempre responsável na medida em que toda ação – dependendo ou não exclusivamente de mim – traz consigo a minha resposta pessoal que depende exclusivamente da minha liberdade e que, sem dúvida, gera “esse esforço da liberdade” a que se referia João Paulo II.

Esta projeção tem uma consequência imediata e importante e que é: o mundo em que vivo, com as relações que gera e as consequências que exercem na minha própria vida, exige uma resposta livre da minha parte, que me torna responsável por esse mundo e me pede uma reflexão estritamente pessoal.

Neste sentido, não resisto em trazer à colação o editorial de Abril de 2011 da revista Commonwealth sobre religião, política e cultura. Esse texto fazia uma análise do último tsunami vivido no Japão, que comoveu o mundo, tal como sucedeu com o de 1755, em Lisboa, embora as condições mediáticas fossem bem diferentes. O editorial traçava um balanço das diferentes respostas ante a situação dramática e não deixava de lado os que, inclusivamente, questionavam a bondade de Deus diante desse tipo de tragédias naturais. Ao mesmo tempo em que apelava à bondade do coração humano, capaz de reagir imediatamente para socorrer as vítimas e ajudar os necessitados, concluindo nos seguintes termos: para construir o mundo moderno pomos a nossa fé na tecnologia, na experiência e na nossa capacidade para controlar as forças da natureza. Em resultado disso, muito se conseguiu. Os terremotos, tsunamis e catástrofes são lembranças amargas de que o nosso controle é limitado e com frequência ilusório. Para perseverar, temos de pôr a nossa confiança em algo mais.

Há muitas circunstâncias e acontecimentos que não dependem de nós, mas o que depende de cada pessoa é a resposta estritamente individual e única a tudo o que acontece. Fazendo o balanço da situação atual, pode se dizer que, juntamente com os avanços científicos e tecnológicos, com a consolidação da democracia no âmbito político e, em geral, com os avanços positivos na melhoria social, revela um déficit claro na liberdade individual enquanto não se reconhecer a realidade pessoal e social em que cada ser humano vive.

Em virtude deste fato, seguramente o primeiro desafio da séc. XXI passa por redescobrir a liberdade individual que, como assinalava S. Josemaria, requer entre outras coisas - largueza de horizontes, entusiasmo reto e sadio para renovar o pensamento tradicional, atenção cuidadosa às orientações da ciência e do pensamento contemporâneo e uma atitude positiva e aberta face à transformação atual das estruturas sociais e das formas de vida.

Por isto, a liberdade não se esgota na capacidade de escolha. Excede-a. Requer esse “esforço” de que falava João Paulo II, que é uma tarefa exclusivamente pessoal. E pressupõe, em todo o caso, uma atitude que não isola a pessoa, mas que a enquadra na sociedade e no mundo em que “lhe coube viver”. De algum modo, trata-se de recuperar aquele anúncio que se tornou famoso nos Estados Unidos durante a corrida à eleição presidencial dos anos 60 e que bem poderia enquadrar a atitude da pessoa livre: Não pergunte o que a América pode fazer por você, mas pergunte o que você pode fazer pela América.

b) Sobre a cidadania

O retrato da situação atual em matéria de cidadania é consequência do que foi apresentado sobre a liberdade. Quando falo de cidadania, refiro-me à posição desse ser individual e livre relativamente à sociedade em que vive.

Neste sentido, parecem-me especialmente significativas as duas referências dos pais da União Europeia que também foram usados no processo de independência americana: a primeiraé que quem não está disposto a dar encontra facilmente razões para não dar; a segunda é que se o nosso país tivesse sido governado pelas cabeças e não pelos corações quando sofria injustiças à ponta da baioneta, onde estaríamos agora?

Curiosamente, na sociedade atual dão-se dois fenômenos que poderiam ser contraditórios. Por um lado existe um desinteresse notório por aquilo que diz respeito à coisa pública; por outro, despertou a sensibilidade solidária que reclama o terceiro lema da revolução francesa, até agora marginalizado do debate entre liberdade e igualdade. Muitas pessoas dispostas a colaborar na reconstrução do Japão não estariam dispostas a colaborar para a consolidação das instituições do seu próprio país ou a fazer parte da associação de estudantes da Universidade em que estudam. Por que este desinteresse pela prática da “cidadania”? Ainda que possa ser um pouco pretensioso apresentar uma resposta válida, existem alguns fatores claros.

Em primeiro lugar, faltam cidadãos exemplares no exercício da sua cidadania, que ponham o bem da sociedade por cima do interesse próprio; falta também transparência na gestão da diversidade e, em consequência, no uso e distribuição dos recursos públicos; falta a educação do pluralismo como riqueza e não como um problema, de modo que, com muita frequência, se conclui que só se pode dialogar com quem pensa o mesmo que nós; falta tolerância às convicções dos outros e, ocasionalmente, faltam argumentos para sustentar as próprias, com a consequência de se identificar a tolerância com a falta de convicções em lugar de aceitar que só quem tem convicções pode ser tolerante.

Falta, em última análise, o que Elliot e também Strauss qualificavam como uma verdadeira educação liberal, entendendo por tal uma educação por e para a liberdade que permita o exercício de uma cidadania plural que supere o relativismo, como propunha Rhonheimer. Em todo o caso, merece a pena ter em conta que a educação na liberdade não é sinônimo de neutralidade nem de assepsia de valores. Como foi dito, é necessário um “esforço de liberdade” que passa por entrar nos problemas do mundo em que se vive e apresentar respostas adequadas.

Neste sentido, a Universidade tem um papel essencial como escola de valores, mas é também um apelo à pessoa que lhes dá vida mas sem esquecer o compromisso que isso implica. Nesta linha comentava S. Josemaria no discurso acadêmico que pronunciou no dia 9 de Maio de 1974: A Universidade sabe que a necessária objetividade científica afasta justamente toda a neutralidade ideológica, toda a ambiguidade, todo o conformismo, toda a covardia: o amor à verdade compromete a vida e todo o trabalho do cientista e sustém a sua honradez em face de possíveis situações incômodas porque a essa retidão comprometida não corresponde semprea uma imagem favorável na opinião pública.

As ausências assinaladas são reais e condicionam a posição respeitante à sociedade em que se vive e à gestão da coisa pública. O retrato proposto pode parecer patético mas, em nenhum caso, pessimista porque, como já foi afirmado, esta é a melhor das sociedades porque é a que nos coube viver e recebemos “em herança” para recuperar o sentido da liberdade humana e alentar com a sua posição vital que é melhor uma sociedade em que se respeite o ser humano que aquela em que este é coisificado.

Mas, às disfunções na concepção e vivência da liberdade e também da cidadania, torna-se necessário apresentar alternativas, e a isso tentarei dedicar a segunda e a terceira parte da minha intervenção.

Uma proposta sobre a liberdade

De certo modo, pode se dizer que a liberdade e o exercício da cidadania não podem separar-se. A cidadania exige o exercício da liberdade na esfera social e por isso vão unidas. Mas gostaria, neste capítulo, de referir-me ao significado que tem a própria liberdade como pressuposto da melhoria da sociedade. É muito frequente apelar a circunstâncias externas para justificar a conduta própria. E não é menos repetida a fórmula de centrar a conversa e o debate no que “fazem os outros” para explicar e justificar as formas individuais de responder à sociedade que “os outros consolidaram”.

Esta atitude fica mais reforçada pelo fato de parecer que as posições e modos de organização “dos outros”, que não coincidem com os nossos, colocam a pessoa em uma situação de “vitimismo” que, na realidade, justifica o que poderíamos chamar de “preguiça social” e, na realidade, encobre a passividade mais própria do ceticismo de quem não se importa com o que está ocorrendo. Mas, nesse processo, houve um “salto” porque não arriscou a própria liberdade.

Dissemos que a pessoa livre é aquela cuja vontade está formada e educada para ser melhor, isto é, adequar a própria conduta e modos pessoais à pauta do ser humano perfeito que, no caso do cristão, é Jesus Cristo.

Para isto exige-se uma atitude plenamente ativa de cada pessoa - que é o ponto de partida para educar-se e formar-se melhor e, em consequência, decidir melhor. De forma que o que nos rodeia - a sociedade, o modo de funcionamento das instituições - não seja uma desculpa ou um obstáculo para o exercício da liberdade proposto, mas seja exatamente essa sociedade em que vivemos e que de algum modo “está à espera” de cidadãos e cidadãs livres cujo contributo é precisamente uma escola para todos os outros. Assim o propunha João Paulo II em uma das suas reuniões com o Congresso UNIV em 1990: Sede com as vossas vidas um exemplo atraente e sincero, o que claramente implica um convite a mostrar com a própria vida a atração do bem.

As circunstâncias sociais não são um obstáculo, mas uma herança maravilhosa para a qual contribuiremos com as nossas propostas e sugestões de uma vida vivida livremente, isto é, com a concepção do ser humano que a verdadeira humanidade exige. Assim se entende a exigência de João Paulo II, em 1985, ao sugerir uma nova recristianização da Europa, apelando à necessidade de “pessoas peritas em humanidade” que conheçam bem o coração humano e que sejam capazes de fazer cultura e vida das suas convicções.

Obviamente, este desafio não é para pusilânimes ou para pessoas débeis, é um desafio para corações capazes de acolher a mensagem e de entender os riscos e dificuldades em viver uma vida plena. Assim entende-se melhor a mensagem de Bento XVI quando afirma: o que mais precisamos neste momento da História é de pessoas que, através de uma fé iluminada e vivida, apresentem Deus a este mundo como uma realidade credível. O testemunho negativo de cristãos que falavam de Deus mas viviam de costas voltadas para Ele, obscureceu a imagem de Deus e abriu as portas à descrença. Precisamos de pessoas que tenham o seu olhar dirigido para Deus para aprender d’ Ele o verdadeiro humanismo.

Este trabalho é estritamente pessoal porque exige a tarefa atraente de fundir a cabeça com o coração, assumindo pessoalmente o universal e tornando próprias as propostas gerais que racionalmente possamos acolher. Só assim mudaremos o mundo. Para isto não há necessidadede grandes revoluções, mas sim o atrevimento e a coragem da mudança individual que, quando é verdadeira e consequentemente livre, tem repercussão nessa sociedade recebida em herança. Esta foi a proposta de João Paulo II num dos últimos encontros com o Congresso UNIV, no ano de 2001: Faz parte do realismo cristão compreender que as grandes mudanças sociais são fruto de opções diárias pequenas e valentes. O significado do exercício da verdadeira liberdade supõe sempre uma mudança pessoal e tem repercussão social.

O murmúrio mais débil pode silenciar um exército quando diz a verdade. Esta afirmação que constitui o desfecho de um dos filmes com maior sucesso dos últimos anos, nos Estados Unidos e na Europa, abre uma janela à esperança e, sobretudo, ao desafio da própria formação e educação para mudar a sociedade tornando-a melhor, mais verdadeira.

Uma proposta sobre a cidadania

A viagem recente do Romano Pontífice ao Reino Unido foi classificada por muitos como um fato histórico não só pelas implicações de uma visita oficial àquele país, mas pelo conteúdo das suas mensagens e pela beatificação do Cardeal Newman, originalmente anglicano, convertido ao catolicismo e, sem dúvida alguma, iniciador dessa “minoria criativa” de que atualmente fala Bento XVI fala.

Quando o Cardeal Newman se converteu ao catolicismo escreveu a sua famosa Ideia de Universidade, e esse texto converteu-se em uma espécie de defesa da educação dentro de uma possível Universidade católica na Irlanda que, de qualquer modo, seria a primeira instituição educativa criada nesse âmbito à margem das históricas universidades britânicas.

Nesse texto Newman argumentava que em certas ocasiões a desculpa perfeita para a inatividade é o recurso à opinião pública que, com frequência, não está especificada nem concretizada e que é ambivalente. A opinião pública atua especialmente sobre a imaginação, não convence mas impressiona, tem a força da autoridade mais que a da razão, cooperar com ela não é uma decisão inteligente, mas um ato de submissão ou uma crença.

Mas não gostaria de centrar-me na função que hoje em dia tem a opinião pública (como se tratasse de um corpo monolítico ainda que saiba muito bem quais os critérios e os seus autores) mas sim nas propostas que Newman fez sobre a Universidade, que entendo que é o mesmo que perguntarmo-nos sobre o que significa a cidadania neste início deste séc. XXI.

De forma magistral propunha-o S. Josemaria em um discurso acadêmico no ano de 1974: A Universidade não vira as costas a nenhuma incerteza, a nenhuma inquietação, a nenhuma necessidade dos homens. Não é sua missão apresentar soluções imediatas. Mas, ao estudar com profundidade científica os problemas, remove também os corações, sacode a passividade, desperta forças que dormitam e forma cidadãos dispostos a construir uma sociedade mais justa. Contribui assim com o seu trabalho universal para derrubar barreiras que dificultam o entendimento mútuo entre os homens, para aligeirar o medo de um futuro incerto, para promover – com o amor à verdade, à justiça e à liberdade – a paz verdadeira e a concórdia dos espíritos e das nações.

Newman acentuava explicitamente a essência da Universidade na comunicação e circulação do pensamento através do encontro pessoal em um ambiente aberto. Em primeiro lugar, para comunicar e fazer circular o pensamento há que pensar e saber como transmitir esse pensamento. Não pretendo propor uma “estratégia” de conduta que sirva de receita mágica para a atuação na vida pública. Apenas referir que esse exercício de pensar e comunicar requer um perfil pessoal e vital de que ficam à margem as pessoas tíbias e medíocres.

Afirmava-o João Paulo II ao explicar a origem das Jornadas Mundiais da Juventude: é evidente que o problema fundamental da juventude é profundamente pessoal. A juventude é o período da personalização da vida humana. É também o período da comunicação: os jovens sabem que têm de viver para os outros e com os outros, sabem que a sua vida tem sentido na medida em que é um dom gratuito ao próximo.

A comunicação e o pensamento não podem ser aprendidos apenas nos livros. Exigem necessariamente uma referência feita vida, não de qualquer modo, mas sim mostrando através da própria opção vital essa aproximação ao pensar e conhecer que se compartilha com os outros em um clima de diálogo e de respeito. Por isso não basta “pensar a liberdade” é necessário vivê-la. E vivê-la implica um desafio eminentemente pessoal que transcende o que nos rodeia, as circunstâncias ou, melhor ou pior, o ubi em que cada pessoa se encontra. Neste sentido, essa necessidade de colocar a dimensão da liberdade em termos pessoais remete-a para um nível mais profundo que o ético, o político ou o jurídico.

Leva-nos à dimensão da verdade moral que se ajusta no nosso coração onde a liberdade se decide pelo bem ou pelo mal. Enquadram-se aqui perfeitamente as declarações de Bento XVI ao afirmar o seguinte: O rosto do outro se apresenta com toda a carga de uma chamada da minha liberdade para que o acolha e cuide dele, para que aprecie todo o valor que ele encerra em si mesmo e não na medida em que possa acomodar-se ao meu próprio interesse. A verdade moral, como verdade do valor único e irrepetível da pessoa, criada à imagem e semelhança de Deus, é uma verdade carregada de exigências para a minha liberdade. A decisão de o olhar de frente é a decisão de converter-me, de deixar-me interpelar, de sair de mim e dar espaço ao outro. Por conseguinte, também a percepção do valor moral depende em boa parte de uma decisão secreta da liberdade que aceita dar-se conta do fato em si mesmo e, portanto, abrir-se à provocação e mudar de atitude.

O exercício da cidadania, portanto, passa pela própria liberdade que leva ao reconhecimento da outra pessoa e a respeitá-la em uma decisão vital. Este trajeto, que de algum modo configura a disposição pessoal para o exercício da cidadania, manifesta-se depois na dimensão social da própria vida. Para me referir a ela remeto para S. Josemaria, precursordestes encontros do Congresso UNIV desde a década de 60 e que proferiu em Outubro de 1967 uma homília na Santa Missa que então celebrou no campus da Universidade de Navarra, intitulada posteriormente Amar o mundo apaixonadamente. Nesse texto, S. Josemaria enumera as quatro condições para o exercício da cidadania.

Em primeiro lugar, amar o mundo em que vivemos. Como disse no início desta apresentação, a sociedade em que existimos é a melhor porque é aquela em que vivemos e que a recebemos com a atitude de “pertence-me”. Não é um ambiente estranho ou adverso nem está “em oposição” à minha vida.

É o meu mundo, a minha sociedade e, portanto, o primeiro degrau de uma cidadania do séc. XXI é aceitar a “herança”, não em termos passivos e cépticos, mas de modo pleno, amando esse mundo para o qual cada pessoa pode contribuir com o exercício de uma liberdade madura que torna cada ser humano melhor. Esta abordagem exige uma decisão da vontade que só é exequível quando se possui essa dimensão educativa e formativa a que antes nos referíamos, que forja o perfil do coração e nos remete de novo para a constatação de que as mudanças requerem a cabeça mas também o coração.

O que acontece no mundo não é “alheio” à pessoa uma vez que, de qualquer forma, o mundo é seu e em termos cristãos, como dizia S. Josemaria “é bom porque saiu das mãos de Deus”.

Em segundo lugar, a pessoa procura adquirir uma preparação profissional e intelectual. Também neste projeto é recorrente a desculpa daquilo que se recebe ou não no âmbito universitário, atribuindo ao nível ou aos conteúdos do ensino a responsabilidade da própria aprendizagem. Dizia Newman desenvolvendo a sua ideia de Universidade que, na natureza e nas coisas, a grandeza e a Universidade vão de mãos dadas. Esta paridade exige que se faça nossa a atração da grandeza que advém precisamente de uma formação profissional e intelectual excelente, e o que nas palavras de Strauss, não é simplesmente informação.

Uma educação na cultura e para a cultura que facilita um sistema democrático no qual os adultos desenvolveram a inteligência e no qual não terão lugar os cidadãos que nada leem, a não ser as editorias de esportes e a humorística do jornal, que não são certamente o sal da terra, mas são o sal da democracia moderna.

Essa preparação profissional e intelectual é a antítese da cultura de massas que – também segundo Strauss – pode ser adquirida a baixo custo pelos talentos mais medíocres, sem esforço intelectual e moral. De maneira que a preparação seria uma parte da educação liberal que lembra a grandeza humana aos membros de uma democracia que têm ouvidos para ouvir. Felizmente, existe formação universitária em quase todos os países do mundo em um processo de globalização em que se fomenta – pelo menos teoricamente – o intercâmbio de formação e conhecimento. Mas, mesmo nos casos em que essa experiência está assegurada, é necessário apelar à responsabilidade pessoal na aquisição da educação e formação universitárias de acordo com as necessidades e exigências da sociedade em que vivemos.

Por esta razão, viver a cidadania exige a disposição de “procurar ser o melhor” não só para escapar à mediocridade, mas para melhorar também a sociedade que a pessoa “fez sua” e pela qual é responsável.

Em terceiro lugar, S. Josemaria afirma que a pessoa que exerce essa cidadania forma com plena liberdade os seus próprios critérios sobre os problemas do meio em que se insere. Esta afirmação não é trivial pois implica questões vitais de iniludível importância. Primeiro, requer o conhecimento dos problemas do meio em que se vive, o que confirma essa atitude do olhar responsável para o mundo, a sociedade e o tempo em que vivemos.

E, deste modo, os problemas do mundo não são alheios à pessoa, não são problemas “dos outros” que devem ser resolvidos pela autoridade social. Pelo contrário, os problemas atuais da pobreza no mundo, do analfabetismo, da falta de comunicação, da marginalização, da tolerância, do primado do relativismo e um grande etc., são problemas meus a que eu devo dar resposta. E por essa razão, conhecendo esses problemas, adoto com total liberdade os critérios de resposta aos mesmos.

Ninguém “me dá” a resposta, não me são dados os critérios de solução. É a pessoa que, livremente, procura as respostas, com a cabeça e o coração e com a formação intelectual e profissional adequadas. Por isso, João Paulo II repetiu em várias ocasiões: para que a fé cristã se faça cultura é necessário que muitas pessoas a tenham feito “sua”. Esse trabalho requer, como já foi referido, corações grandes e generosos e cabeças trabalhadas pelo estudo e pelo esforço.

Por último, a pessoa toma as suas próprias decisões, fruto de uma reflexão pessoal. As respostas e as decisões requerem o exercício da liberdade e da vontade e, em consequência, da educação e da formação, não só para detectar os problemas, mas para saber dar uma resposta pessoal aos mesmos. Estas quatro propostas sobre a cidadania são o que o próprio S. Josemaria qualificou no texto que venho citando: uma doutrina de cidadania livre, de convivência e compreensão.

Em não poucos casos nós nos remetemos a ele, ainda que com outras palavras. Se o individualismo é a causa da atomização da sociedade democrática, é a liberdade que, paradoxalmente, pode restabelecer a interdependência política, fomentando a consciência de que cada indivíduo depende dos outros.

Precisamente porque o mundo em que vivemos é o melhor, só será possível melhorá-lo pelo exercício da liberdade pessoal, mas da liberdade educada, aquela que se apoia em uma educação e preparação moral e intelectual que facilita uma resposta pessoal às questões que se colocam no início deste milênio.

Para terminar, não consigo resistir e incluo uma citação de Jonh Henry Newman que, nos seus discursos sobre a natureza da educação universitária, propõe a formação e a educação liberal para melhorar a sociedade em que vivemos, no sentido de educação liberal como educação para a cultura.

O bem é uma coisa, e o útil outra. Mas estabeleço como princípio que ainda que o útil nem sempre seja bom, o bem é sempre útil. O bem não é somente bom, mas fonte de bens. Este é um dos seus atributos. Nada é excelente, belo, perfeito e desejável por si mesmo que não transborde e o difunda à sua volta. O bem é fecundo. Não só é agradável à vista como também ao gosto. Não só nos atrai, como o bem se comunica. Desperta primeiro a nossa admiração e o nosso amor e depois o nosso desejo e a nossa gratidão, e o faz na proporção da sua intensidade e plenitude. Um grande bem se reparte muito bem. Se a inteligência é uma excelência do nosso ser e o seu desenvolvimento é tão magnífico, não é apenas perfeito, belo e admirável em si mesmo, mas também será útil, no melhor sentido do termo, ao seu possuidor e a todos os que o rodeiam. Não digo útil no sentido vulgar, mecânico e mercantil,mas como um bem, uma bênção ou um tesouro que se difunde, primeiro para quem o possui e, através dele, para o mundo inteiro. Se uma educação liberal é boa deve necessariamente ser útil.

A exigência da liberdade e da cidadania não deixa de ser, portanto, um desafio estritamente pessoal com repercussões sempre longe de um possível terreno baldio. A atração do desafio é desenvolver e consolidar esse “esforço da liberdade” que nos leva a amar o mundo em que vivemos, que é nosso, e a melhorá-lo com o empenho diário para transformá-lo com a própria conduta, isto é, com a cabeça e o coração.

S. Josemaria afirmava magistralmente quando apelava ao sentido genuíno da liberdade cristã: Deus, quando nos criou, correu o risco e a aventura da nossa liberdade. Quis uma história que fosse uma história verdadeira, feita de decisões autênticas, não uma ficção ou um jogo. Cada homem deve fazer a experiência da sua autonomia pessoal com o que isso implica de acaso, de procura e, em ocasiões, de incerteza.

A proposta já está elaborada. Agora se trata de cumpri-la. Utilizando a terminologia de Susanna Tamaro temos de dizer que omelhor está por chegar, portanto, ajam pelo bem. Obrigada.