Amigos que vivem nas ruas de Lisboa

Universitários da Residência Universitária Montes Claros, em Lisboa, colaboram quinzenalmente como voluntários com o “Vale de Acór”, instituição para apoio a pessoas com problemas de toxicodependência, alcoolismo e outras formas de dependência. Uma experiência a percorrer histórias de vida sempre singulares e fascinantes.

Weidmam, Salvador, Bernardo, Luís, Lucas e André

“É um pouco chocante, mas marcante. Falamos com pessoas muito diferentes: velhos e novos, bem-dispostos e mal-dispostos, toxicodependentes ou pessoas que simplesmente vivem na rua. Não, não podemos mudar muita coisa; materialmente, não fazemos milagres. Ao menos, estamos ao lado deles, dos problemas e dificuldades, da falta de dignidade com que por vezes os tratam, da fome e do estar só. O que gostamos é que sintam que nós estamos ali de verdade, 100% para eles. Com o que pudermos. Que podem se apoiar em nós”, explica um dos estudantes. “Já me perguntaram «e essas pessoas não cheiram mal?».. Eu só digo que nenhum me cheirou mal; só sinto, às vezes, um certo cheiro de droga e álcool.”

Não é fácil começar a conversa. O ponto de partida é oferecer companhia sem olhar para o relógio. Quando a sintonia se dá - e isso, tem dias - não tardam em abrir-se às histórias de cada qual. Ser-se ouvido é sempre uma ajuda, e deixa de ser difícil sorrir juntos. A sexta-feira foi escolhida para poderem dar mais tempo, sem comprometer a lucidez para o trabalho no dia seguinte.

Luís e Salvador

Cada história de vida é um roteiro original. A seguir ficam pinceladas inacabadas de vidas reais com nomes fictícios, parte do mundo desconhecido que estes universitários estão a desvendar e aqui relatam.

“O Manuel na primeira vez foi impaciente, só nos mandava embora. Quando é assim, não costumamos desistir logo. Com teimosia suave ficamos por perto. A impaciência passou, oferecemos o jantar, e agradeceu muito. Confessou que era grande uma dor que tinha no peito. Gostava, nem mais nem menos, que lhe fizéssemos o milagre de lhe curar a dor. Rezamos ao Espírito Santo. A cura não se deu, que nós saibamos… Falamos sobre o sentido do sofrimento. Aceitou o terço que lhe demos.”

“A Helena vive com o marido. Gostaram do jantar que levamos. Percebendo que éramos cristãos quiseram rezar um Pai-nosso, uma Ave-Maria e um Glória. Um de nós prometeu-lhe um crucifixo. Na vez seguinte, assim que nos viu, a Helena levanta-se e pergunta pelo crucifixo prometido... mas que eu ainda não levava. Perto havia mais duas pessoas a partilhar a mesma velha rua de Lisboa. Todos quiseram rezar conosco, como da outra vez: éramos cinco universitários e os quatro amigos que moram a céu aberto naquele lugar.”

“Encontramos o Fernando fumando heroína. Um de nós ficou uma hora conversando. Deixou a família aos 15 anos, foi para um país europeu, assaltou quatro carros de transporte de valores, esteve preso onde havia 3.500 pessoas numa prisão só para 2.500. Hoje conserta carros com muito sucesso, dado que é um poliglota.”

“O Valentim, sempre o encontramos sob o efeito de maconha. Uma vez, um de nós estava a falar com outra pessoa e ele aparece por trás e toca no ombro: só quer dar um abraço e pergunta quando passámos lá pelo “quarto” dele.”

“O João é um homem que quer mesmo viver na rua, há já 30 anos. É artista. Estando conosco, fez-nos prosa e poesia, cantou, fez imitações e preparou uma quadra para cada um de nós.”

E um dos voluntários reconhece: “saímos com uma espécie de satisfação grata, que acho que não dá para ir buscar em nenhum tipo de divertimento”.