Esse artigo faz parte das comemorações do jubileu de ouro da chegada dos primeiros fiéis da Prelazia ao Brasil. "ISTO NÃO É TRABALHO"
Estamos na noite de 22 de maio de 1974. O cenário é São Paulo. São Josemaria acabava de chegar ao Brasil, onde permaneceu até 7 de junho.
Eu já não era mais o moço recém-formado que conhecera o Fundador do Opus Dei em Roma. Era sacerdote desde 1955 e contava uma experiência relativamente ampla das almas: do que é, para muitas pessoas, a tristeza e a alegria; do que é, para uns, a queixa amarga e, para outros, a abnegação silenciosa; do contraste entre o complexo de vítima de alguns e a generosidade dos que não se importam em deixar a vida aos pedaços.
Nesses dias brasileiros – atento a captar o exemplo de alguém que já considerava um homem de Deus –, pude comprovar mais uma vez que São Josemaria encaixava no segundo termo de cada um desses binômios: na alegria, na abnegação silenciosa, na generosidade que em nada se poupa.
A estadia do Padre no Brasil foi qualificada, com muita exatidão, como uma "maratona" (à qual iriam seguir–se viagens e numerosas atividades na Argentina, Chile, Peru, Equador e Venezuela). Cada dia tinha um programa muito apertado de pregação, de tertúlias [1], encontros de catequese – sucedendo-se um após o outro – com centenas de pessoas; de conversas com famílias ou com pessoas particulares que queriam abrir-lhe a alma; de dedicação intensa a sacerdotes e leigos, a casais, a estudantes...; de atos litúrgicos, alguns deles muito cansativos...
Na minha idade, muito mais jovem, eu pensava ao vê-lo: "Acho que não aguentaria; eu chegaria à noite estourado". Mas ele fazia isso tudo, e chegava à noite sorrindo, vivaz, alegrando a vida dos que convivíamos com ele na mesma casa, tendo mil detalhes delicados, contando-nos episódios que nos faziam rir ou lembranças interessantes da sua vida...; ou então, aproveitando a caixa de chocolates que alguém trouxera para nos oferecer bombons... E, no meio disso, pedia-nos mais trabalho, mais apostolado...
Já "começou" no primeiro dia. Como chegara tarde da noite no dia 22, pensando no cansaço da viagem, tínhamos preparado para o dia 23 um plano relativamente "moderado" (duas reuniões, uma de manhã e outra à tarde). Pois bem, quando percebeu que era "só isso" que fora planejado, disse-nos, alertando-nos para os próximos dias: "... porque a mim vocês não me vão ter descansado como hoje... Hoje, a única coisa que fiz foi falar com as vossas irmãs [2], com muito gosto!, e com vocês, mas isso não é trabalho: isto é alegria grande, isto é descanso. É estar bem demais!"
A partir de então, não houve outro remédio senão programar-lhe uma "maratona" diária.
"ESTE HOMEM DEVE ESTAR PROSTRADO"
Como é natural, os que o acompanhavam – nomeadamente o Pe. Álvaro del Portillo e o Pe. Javier Echevarria que viajaram com ele, bem como o Conselheiro (hoje seria Vigário Regional) do Opus Dei no Brasil, Pe. Xavier de Ayala –, viviam em constante e discreta solicitude pela sua saúde. Já mencionei que o diabetes, mesmo tendo desaparecido, deixou-lhe como sequela uma insuficiência renal, com os consequentes riscos cardíacos e respiratórios. Nessas condições, uma simples bronquite poderia significar um perigo grave [3].
Procurou-se, por isso, acompanhar o estado físico do Padre com análises frequentes. José Luis, médico, um dos primeiros a começar o trabalho da Obra no Brasil, residia na mesma casa. Fazia anos que ocupava o cargo de chefe do serviço de eletromiografia do Hospital do Servidor Público Estadual de São Paulo. Lá solicitou a um colega muito competente que acompanhasse os resultados das análises clínicas. Esse, depois de examinar os dados, disse-lhe:
– Com certeza esse senhor deve estar prostrado na cama, sem poder-se mexer...
José Luis riu e retrucou, com uma expressão muito sua:
– No..., no! Não pára de trabalhar, de falar em público, e de andar de um lado para outro. Está tão ágil de corpo e de espírito como um jovem de trinta anos...
Era verdade. Não sei se o colega acreditou. Sei, sim, que eu - e todos os outros que estávamos com ele - não precisamos de acreditar, porque o víamos. O Pe. Álvaro del Portillo já fazia tempo que ficava assombrado ao ver como, segundo nos dizia, "a alma do Padre arrastava o corpo". E o "arrastava" de uma maneira humanamente inexplicável.
Veio-me ao pensamento a conhecida frase de Santo Agostinho: "Cum enim amatur, aut non laboratur aut ipse labor amatur" – "Quando se ama, ou as coisas não custam trabalho, ou até o trabalho mais penoso é amado". São Josemaria amava, com loucura: a Deus e ao próximo. E seu amor era para ele como as asas da alma que lhe permitiam voar por cima da fraqueza do corpo. Sofria? Evidentemente, sentia as moléstias. Às vezes brincava, referindo-se ao severo regime alimentar que os médicos lhe prescreviam (supressão absoluta do sal e redução de gorduras, açúcar e farinhas, massas e legumes), mas jamais o vi queixar-se de nada.
Entendemos como é um santo? Alguém que, por amar muito, acaba se esquecendo totalmente de si mesmo. Com absoluta sinceridade, Mons. Escrivá podia dizer: "Eu, nem mesmo existo", porque praticava ao pé da letra a abnegação que Jesus pede aos que o seguem: Se alguém quiser vir comigo, renuncie-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me [...]. Porque aquele que tiver sacrificado a sua vida por minha causa, recobrá-la-á (Mt 16, 24-25).
Com grande sinceridade expressava essa convicção – eu nada sou, eu nem mesmo existo –, durante a ação de graças da Santa Missa que celebrou no Centro Universitário do Sumaré em 26 de maio. Terminada a Missa, fazia a sua ação de graças ajoelhado num genuflexório que fora colocado no presbitério, perto do altar. Com o olhar fixo no Sacrário, começou a agradecer a Nosso Senhor, fazendo oração em voz alta:
– "É bom que cada um de nós invoque o seu Anjo da Guarda, para que seja testemunha desse milagre contínuo, dessa união, dessa comunhão, dessa identificação de um pobre pecador – isso é o que é cada um de nós, e sobretudo eu, que sou um miserável – com o seu Deus". "Sabendo que é Ele, saudamo-lo pondo a fronte no chão, em adoração. Serviam! Servirei! Nós queremos servir-Te... E teremos que confessar o nosso nada: Senhor, não posso, não valho, não sei, não tenho, não sou nada! Mas Tu és tudo. E eu sou teu filho e teu irmão".
Prosseguia alegrando-se de, na sua "miséria", poder contar, pela Comunhão dos Santos, com os méritos infinitos de Jesus, com os merecimentos da Mãe de Deus e de São José, com as virtudes dos santos e as de seus filhos ("o ouro de meus filhos", dizia). Nele mesmo só via "as pequenas luzes que brilham na noite da minha vida, pela misericórdia infinita do Senhor e pela minha pouca correspondência. Tudo isto te ofereço, Senhor, juntamente com as minhas misérias, a minha pouquidão, para que – sobre essas misérias – fiques Tu e estejas mais alto".
Adaptado do livro «São Josemaria Escrivá no Brasil, esboços do perfil de um santo», Francisco Faus, " Editora Quadrante", São Paulo, 2007.
Notas:
[1] Reuniões com Mons. Escrivá, de dezenas ou milhares de pessoas, em que, num clima familiar e com um tom cordial e simples, os participantes faziam livremente perguntas, e o Padre respondia impartindo luzes de doutrina católica – uma autêntica catequese –, conselhos de vida cristã e incentivo para viver os ideais de santidade e apostolado.
[2] Referia-se às mulheres do Opus Dei que se ocupavam dos trabalhos de administração doméstica da casa onde residiu em São Paulo.
[3] Cf. Javier Echevarría: Recordações sobre Mons. Escrivá, Editora Quadrante, São Paulo 2001, p. 31.