"A alma do Padre arrastava o corpo"

Com esta frase de D. Álvaro del Portillo, Francisco Faus manifesta a abnegação e o carinho do Fundador do Opus Dei nos dias em que permaneceu no Brasil. A seguir, alguns trechos selecionados do livro "São Josemaria Escrivá no Brasil" publicado pela Editora Quadrante (http://www.quadrante.com.br).

São Josemaria desce do carro ao chegar ao Sumaré, em São Paulo. 22.05.74.

Esse artigo faz parte das comemorações do jubileu de ouro da chegada dos primeiros fiéis da Prelazia ao Brasil. "ISTO NÃO É TRABALHO"

Estamos na noite de 22 de maio de 1974. O cenário é São Paulo. São Josemaria acabava de chegar ao Brasil, onde permaneceu até 7 de junho.

Eu já não era mais o moço recém-formado que conhecera o Fundador do Opus Dei em Roma. Era sacerdote desde 1955 e contava uma experiência relativamente ampla das almas: do que é, para muitas pessoas, a tristeza e a alegria; do que é, para uns, a queixa amarga e, para outros, a abnegação silenciosa; do contraste entre o complexo de vítima de alguns e a generosidade dos que não se importam em deixar a vida aos pedaços.

São Josemaria desce do carro ao chegar ao Sumaré, em São Paulo. 22.05.74.

Nesses dias brasileiros – atento a captar o exemplo de alguém que já considerava um homem de Deus –, pude comprovar mais uma vez que São Josemaria encaixava no segundo termo de cada um desses binômios: na alegria, na abnegação silenciosa, na generosidade que em nada se poupa.

A estadia do Padre no Brasil foi qualificada, com muita exatidão, como uma "maratona" (à qual iriam seguir–se viagens e numerosas atividades na Argentina, Chile, Peru, Equador e Venezuela). Cada dia tinha um programa muito apertado de pregação, de tertúlias [1], encontros de catequese – sucedendo-se um após o outro – com centenas de pessoas; de conversas com famílias ou com pessoas particulares que queriam abrir-lhe a alma; de dedicação intensa a sacerdotes e leigos, a casais, a estudantes...; de atos litúrgicos, alguns deles muito cansativos...

Na minha idade, muito mais jovem, eu pensava ao vê-lo: "Acho que não aguentaria; eu chegaria à noite estourado". Mas ele fazia isso tudo, e chegava à noite sorrindo, vivaz, alegrando a vida dos que convivíamos com ele na mesma casa, tendo mil detalhes delicados, contando-nos episódios que nos faziam rir ou lembranças interessantes da sua vida...; ou então, aproveitando a caixa de chocolates que alguém trouxera para nos oferecer bombons... E, no meio disso, pedia-nos mais trabalho, mais apostolado...

Já "começou" no primeiro dia. Como chegara tarde da noite no dia 22, pensando no cansaço da viagem, tínhamos preparado para o dia 23 um plano relativamente "moderado" (duas reuniões, uma de manhã e outra à tarde). Pois bem, quando percebeu que era "só isso" que fora planejado, disse-nos, alertando-nos para os próximos dias: "... porque a mim vocês não me vão ter descansado como hoje... Hoje, a única coisa que fiz foi falar com as vossas irmãs [2], com muito gosto!, e com vocês, mas isso não é trabalho: isto é alegria grande, isto é descanso. É estar bem demais!"

A partir de então, não houve outro remédio senão programar-lhe uma "maratona" diária.

"ESTE HOMEM DEVE ESTAR PROSTRADO"

Como é natural, os que o acompanhavam – nomeadamente o Pe. Álvaro del Portillo e o Pe. Javier Echevarria que viajaram com ele, bem como o Conselheiro (hoje seria Vigário Regional) do Opus Dei no Brasil, Pe. Xavier de Ayala –, viviam em constante e discreta solicitude pela sua saúde. Já mencionei que o diabetes, mesmo tendo desaparecido, deixou-lhe como sequela uma insuficiência renal, com os consequentes riscos cardíacos e respiratórios. Nessas condições, uma simples bronquite poderia significar um perigo grave [3].

Procurou-se, por isso, acompanhar o estado físico do Padre com análises frequentes. José Luis, médico, um dos primeiros a começar o trabalho da Obra no Brasil, residia na mesma casa. Fazia anos que ocupava o cargo de chefe do serviço de eletromiografia do Hospital do Servidor Público Estadual de São Paulo. Lá solicitou a um colega muito competente que acompanhasse os resultados das análises clínicas. Esse, depois de examinar os dados, disse-lhe:

– Com certeza esse senhor deve estar prostrado na cama, sem poder-se mexer...

José Luis riu e retrucou, com uma expressão muito sua:

Momento da tertúlia no Palácio Mauá. 02.06.74

– No..., no! Não pára de trabalhar, de falar em público, e de andar de um lado para outro. Está tão ágil de corpo e de espírito como um jovem de trinta anos...

Era verdade. Não sei se o colega acreditou. Sei, sim, que eu - e todos os outros que estávamos com ele - não precisamos de acreditar, porque o víamos. O Pe. Álvaro del Portillo já fazia tempo que ficava assombrado ao ver como, segundo nos dizia, "a alma do Padre arrastava o corpo". E o "arrastava" de uma maneira humanamente inexplicável.

Veio-me ao pensamento a conhecida frase de Santo Agostinho: "Cum enim amatur, aut non laboratur aut ipse labor amatur" – "Quando se ama, ou as coisas não custam trabalho, ou até o trabalho mais penoso é amado". São Josemaria amava, com loucura: a Deus e ao próximo. E seu amor era para ele como as asas da alma que lhe permitiam voar por cima da fraqueza do corpo. Sofria? Evidentemente, sentia as moléstias. Às vezes brincava, referindo-se ao severo regime alimentar que os médicos lhe prescreviam (supressão absoluta do sal e redução de gorduras, açúcar e farinhas, massas e legumes), mas jamais o vi queixar-se de nada.

Entendemos como é um santo? Alguém que, por amar muito, acaba se esquecendo totalmente de si mesmo. Com absoluta sinceridade, Mons. Escrivá podia dizer: "Eu, nem mesmo existo", porque praticava ao pé da letra a abnegação que Jesus pede aos que o seguem: Se alguém quiser vir comigo, renuncie-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me [...]. Porque aquele que tiver sacrificado a sua vida por minha causa, recobrá-la-á (Mt 16, 24-25).

Com grande sinceridade expressava essa convicção – eu nada sou, eu nem mesmo existo –, durante a ação de graças da Santa Missa que celebrou no Centro Universitário do Sumaré em 26 de maio. Terminada a Missa, fazia a sua ação de graças ajoelhado num genuflexório que fora colocado no presbitério, perto do altar. Com o olhar fixo no Sacrário, começou a agradecer a Nosso Senhor, fazendo oração em voz alta:

– "É bom que cada um de nós invoque o seu Anjo da Guarda, para que seja testemunha desse milagre contínuo, dessa união, dessa comunhão, dessa identificação de um pobre pecador – isso é o que é cada um de nós, e sobretudo eu, que sou um miserável – com o seu Deus". "Sabendo que é Ele, saudamo-lo pondo a fronte no chão, em adoração. Serviam! Servirei! Nós queremos servir-Te... E teremos que confessar o nosso nada: Senhor, não posso, não valho, não sei, não tenho, não sou nada! Mas Tu és tudo. E eu sou teu filho e teu irmão".

Prosseguia alegrando-se de, na sua "miséria", poder contar, pela Comunhão dos Santos, com os méritos infinitos de Jesus, com os merecimentos da Mãe de Deus e de São José, com as virtudes dos santos e as de seus filhos ("o ouro de meus filhos", dizia). Nele mesmo só via "as pequenas luzes que brilham na noite da minha vida, pela misericórdia infinita do Senhor e pela minha pouca correspondência. Tudo isto te ofereço, Senhor, juntamente com as minhas misérias, a minha pouquidão, para que – sobre essas misérias – fiques Tu e estejas mais alto".

Adaptado do livro «São Josemaria Escrivá no Brasil, esboços do perfil de um santo», Francisco Faus, " Editora Quadrante", São Paulo, 2007.

Notas:

[1] Reuniões com Mons. Escrivá, de dezenas ou milhares de pessoas, em que, num clima familiar e com um tom cordial e simples, os participantes faziam livremente perguntas, e o Padre respondia impartindo luzes de doutrina católica – uma autêntica catequese –, conselhos de vida cristã e incentivo para viver os ideais de santidade e apostolado.

[2] Referia-se às mulheres do Opus Dei que se ocupavam dos trabalhos de administração doméstica da casa onde residiu em São Paulo.

[3] Cf. Javier Echevarría: Recordações sobre Mons. Escrivá, Editora Quadrante, São Paulo 2001, p. 31.